CONTOS DE HERTOGENBOSCH
OS MONSTROS
Os monstros de Bosch
fascinam-me. Custa-me encará-los como criaturas maléficas. A serem símbolos de pecados,
sê-lo-ão de faltas veniais.
Desta vez,
pus-me a olhar o painel da esquerda do tríptico dos Santos Eremitas. Na parte
inferior do quadro há uma série de figuras extraordinárias.
Quando se está
muito tempo seguido no museu, é quase impensável não procurar estabelecer
conversa com eles. Como sou escritor, sinto-me igualmente tentado a inventar
diálogos em que participamos todos.
Comecemos pelo
que tem por cabeça um ninho de coruja e por ventre uma cabeça de mulher que
parece barbeada. As pernas descem-lhe das orelhas.
Ao lado, está
uma espécie de pássaro escuro que poderá ser híbrido de caranguejo. Contam-se seis
patas deste lado. As do outro, se as houver, não estão à vista. Tem um bico
comprido e uma flor, que poderá ser um crisântemo, na crista.
Abaixo do
pássaro, está uma espécie de sapo pálido com uma cinta, que parece inúti, a
meio do corpo. Enfeita-se, na cabeça e na cauda, com o que poderão ser picos de
porco-espinho.
Ao cimo, está
outro pássaro, quase todo branco. Parece ter colheres na extremidade do bico. Tem
a parte traseira do corpo colorida e ostenta uma bela cauda em leque. Cobre a
cabeça com um lenço branco que descai para os lados e protege as pernas
compridas com botas de cano alto. Acaba de apanhar um lagarto de cauda
compridíssima e parece preparar-se para o comer.
De costas, está
sentada uma figura que lê um livro. Tem à vista uma perna muito magra. O ombro direito
parece prolongar-se num corpo de peixe. Usa um xaile de pontas aguçadas e tem nas
costas uma espécie de cachimbo pendurado por fios.
Um pássaro
pousado perto espreita o livro, ou escuta a leitura.
Veem-se mais
figuras, monstruosas, mas serão demasiadas para a nossa história. Há que
acomodar os artistas ao enredo. Fiquemos por aqui e ouçamos o que dizem.
Quem primeiro se
pronunciou foi a cabeça da mulher de nariz comprido.
− Vou-me embora.
A conversa não está a ter interesse.
O pássaro branco
acabou de engolir o lagarto. Não tenho a certeza, mas acho que deu um arroto.
Falou-lhe.
− Acho que ainda
é cedo para recolhermos. Tens assim tanto que fazer?
A velha
deteve-se e voltou-se para ele.
− Bem sabes que não faço nada. Aqui no
Inferno, não se trabalha.
O pássaro riu-se,
antes de protestar. Tinha um riso estudado.
− Não? E os
diabos, pobrezinhos… Estão sempre a fazer mal aos condenados.
− Sempre… Até
parece que és cego… É só quando os capatazes estão perto. Gastam a maior parte
do tempo a jogar aos dados e a falar mal uns dos outros. Quem é que quer saber
dos danados?
− Acho que
ninguém.
O
pássaro-caranguejo deu a sua opinião.
− O problema é
serem muitos os condenados. Se desaparecessem uns tantos, ninguém dava por
nada.
O sapo tinha
alma de filósofo. Concordou com ele, de modo geral.
− Tens razão.
Essencialmente, fazem parte da paisagem. No entanto, se um dia abalassem, ias
sentir a falta deles.
− Ninguém abala
deste lugar! – Garantiu a velha.
− Apesar de
haver cá pouca coisa para uma pessoa se entreter…
− Alguns leem –
disse o pássaro branco apontando para o híbrido sentado. – Aquele não larga o
livro, nem para ir à retrete.
− O Jesualdo? –
Interrompeu o sapo. – Conheço-o há muito tempo. Aquele idiota nunca aprendeu a
ler. Enfeita-se com o livro por que acha que, assim, eleva o estatuto pessoal.
− E o pássaro
que está pousado ao lado?
− Esse é
esperto. Aprendi algumas coisas com ele.
− O que é que
aprendeste?
− Ouvi dizer
coisas que estão escritas no livro. O Inferno não existiu sempre. No princípio
era o Verbo e pairava sobre as águas.
− O que é o
Verbo?
− Não sei.
Perguntei ao pássaro e ele também não sabe. Mas deixem-me continuar. A dada
altura, Deus separou a terra das águas.
− E a seguir?
− A seguir, também
não sei. Ou faltam páginas ao livro, ou ele se esqueceu do que leu. Nunca ouvi
falar de um pássaro que tivesse grande memória. No entanto, ouvi dizer que Deus
se zangou com alguns dos seus Anjos e os atirou para o Inferno. É o lugar em
que estamos.
− Será verdade?
− Quem sabe? E
que importância isso tem, agora?
A mulher
entoucada com o ninho de coruja fartou-se da conversa.
− Convosco não
se aprende nada. Vou-me embora.
E lá foi.
Fiquei a vê-la
afastar-se.
Desconhecia a
língua usada no Inferno e surpreendeu-me entendê-la quase na perfeição. Terei
aprendido a ler-lhes os pensamentos.
Uma das coisas
que me encantam nos monstros de Bosch é que não pretendem ensinar-nos nada. Na
verdade, pouco sabem. Falta-lhes a curiosidade que leva os humanos a aprender.
Por vezes, chegamos a saber demais. Alguns de nós acabam mesmo por conhecer os
caminhos diretos para o Inferno.
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