DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 21 de março de 2021


        CONTOS DE HERTOGENBOSCH


            OS MONSTROS





Os monstros de Bosch fascinam-me. Custa-me encará-los como criaturas maléficas. A serem símbolos de pecados, sê-lo-ão de faltas veniais.

Desta vez, pus-me a olhar o painel da esquerda do tríptico dos Santos Eremitas. Na parte inferior do quadro há uma série de figuras extraordinárias.

Quando se está muito tempo seguido no museu, é quase impensável não procurar estabelecer conversa com eles. Como sou escritor, sinto-me igualmente tentado a inventar diálogos em que participamos todos.

Comecemos pelo que tem por cabeça um ninho de coruja e por ventre uma cabeça de mulher que parece barbeada. As pernas descem-lhe das orelhas.

Ao lado, está uma espécie de pássaro escuro que poderá ser híbrido de caranguejo. Contam-se seis patas deste lado. As do outro, se as houver, não estão à vista. Tem um bico comprido e uma flor, que poderá ser um crisântemo, na crista.

Abaixo do pássaro, está uma espécie de sapo pálido com uma cinta, que parece inúti, a meio do corpo. Enfeita-se, na cabeça e na cauda, com o que poderão ser picos de porco-espinho.

Ao cimo, está outro pássaro, quase todo branco. Parece ter colheres na extremidade do bico. Tem a parte traseira do corpo colorida e ostenta uma bela cauda em leque. Cobre a cabeça com um lenço branco que descai para os lados e protege as pernas compridas com botas de cano alto. Acaba de apanhar um lagarto de cauda compridíssima e parece preparar-se para o comer.

De costas, está sentada uma figura que lê um livro. Tem à vista uma perna muito magra. O ombro direito parece prolongar-se num corpo de peixe. Usa um xaile de pontas aguçadas e tem nas costas uma espécie de cachimbo pendurado por fios.

Um pássaro pousado perto espreita o livro, ou escuta a leitura.

Veem-se mais figuras, monstruosas, mas serão demasiadas para a nossa história. Há que acomodar os artistas ao enredo. Fiquemos por aqui e ouçamos o que dizem.

Quem primeiro se pronunciou foi a cabeça da mulher de nariz comprido.

− Vou-me embora. A conversa não está a ter interesse.

O pássaro branco acabou de engolir o lagarto. Não tenho a certeza, mas acho que deu um arroto. Falou-lhe.

− Acho que ainda é cedo para recolhermos. Tens assim tanto que fazer?

A velha deteve-se e voltou-se para ele.

 − Bem sabes que não faço nada. Aqui no Inferno, não se trabalha.

O pássaro riu-se, antes de protestar. Tinha um riso estudado.

− Não? E os diabos, pobrezinhos… Estão sempre a fazer mal aos condenados.

− Sempre… Até parece que és cego… É só quando os capatazes estão perto. Gastam a maior parte do tempo a jogar aos dados e a falar mal uns dos outros. Quem é que quer saber dos danados?

− Acho que ninguém.

O pássaro-caranguejo deu a sua opinião.

− O problema é serem muitos os condenados. Se desaparecessem uns tantos, ninguém dava por nada.

O sapo tinha alma de filósofo. Concordou com ele, de modo geral.

− Tens razão. Essencialmente, fazem parte da paisagem. No entanto, se um dia abalassem, ias sentir a falta deles.

− Ninguém abala deste lugar! – Garantiu a velha.

− Apesar de haver cá pouca coisa para uma pessoa se entreter…

− Alguns leem – disse o pássaro branco apontando para o híbrido sentado. – Aquele não larga o livro, nem para ir à retrete.

− O Jesualdo? – Interrompeu o sapo. – Conheço-o há muito tempo. Aquele idiota nunca aprendeu a ler. Enfeita-se com o livro por que acha que, assim, eleva o estatuto pessoal.

− E o pássaro que está pousado ao lado?

− Esse é esperto. Aprendi algumas coisas com ele.

− O que é que aprendeste?

− Ouvi dizer coisas que estão escritas no livro. O Inferno não existiu sempre. No princípio era o Verbo e pairava sobre as águas.

− O que é o Verbo?

− Não sei. Perguntei ao pássaro e ele também não sabe. Mas deixem-me continuar. A dada altura, Deus separou a terra das águas.

− E a seguir?

− A seguir, também não sei. Ou faltam páginas ao livro, ou ele se esqueceu do que leu. Nunca ouvi falar de um pássaro que tivesse grande memória. No entanto, ouvi dizer que Deus se zangou com alguns dos seus Anjos e os atirou para o Inferno. É o lugar em que estamos.

− Será verdade?

− Quem sabe? E que importância isso tem, agora?

A mulher entoucada com o ninho de coruja fartou-se da conversa.

− Convosco não se aprende nada. Vou-me embora.

E lá foi.

Fiquei a vê-la afastar-se.

Desconhecia a língua usada no Inferno e surpreendeu-me entendê-la quase na perfeição. Terei aprendido a ler-lhes os pensamentos.

Uma das coisas que me encantam nos monstros de Bosch é que não pretendem ensinar-nos nada. Na verdade, pouco sabem. Falta-lhes a curiosidade que leva os humanos a aprender. Por vezes, chegamos a saber demais. Alguns de nós acabam mesmo por conhecer os caminhos diretos para o Inferno.

 

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