DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017


TAMEGÃO


CARLOS NUNES PINTO


X

 “ Nem sempre a gente pode ter, mas quando a gente quer com muita força, a gente tem “




Em Vila Arriaga nada acontecia.
Dias quentes, noites quentes, que duravam o dobro do tempo que o tempo das cidades vizinhas.
Ainda por cima, as autoridades sanitárias debelaram a biliosa. Essas sim, de vez em quando, e não eram poucas as vezes, davam-nos um funeralzito, onde se bebiam uns copos, se contavam umas anedotas e se falava de negócios.
Ainda me lembro da D. Deolinda, mulher do Adolfo e mãe do Armando.
Enquanto velávamos o corpo da velhota, contaram-se tantas anedotas e bebeu-se tanto vinho, que, cerca das quatro da manhã, o Armando teve um ataque de riso tão grande, que disse:
− Quem me dera ter outra mãe para morrer já amanhã!
Certo dia apareceu por ali um homem de aspecto exótico, tanto no vestir como nos gestos. Usava um casaco branco de duas grandes rachas atrás, chapéu branco e alto, laço bastante colorido ao pescoço. Ainda por cima sapatos de tacão alto, para disfarce - pensava ele - da sua baixa estatura. Anunciou que andava por ali para comprar cobras.
Espanto geral na vila. Comprar cobras? O homem deve estar maluco! Ainda disse mais: que pagaria 100$00 por cada uma!!
Num grupo de três comerciantes teve de aparecer a conversa.
O meu pai disse:
− O homem deve ser do circo.
Outro, que era daqueles que tinha muito respeito pela mulher, senão medo, disse:
− Se calhar são para a mulher, deve fazer colecção de animais raros.
Oliveira Caluca, que era um bronco de primeira, disse:
− Cá para mim, o homem engole é cobras vivas!
− Lá está você! − retorquiu o meu pai
O Oliveira Caluca só não asneirava quando escrevia ou lia, porque não sabia fazer nem uma coisa nem outra.
A verdade é que a notícia se espalhou depressa.
Os negros logo imaginaram que bebedeiras apanhariam com o dinheiro das cobras. Só que nunca vi ninguém com tanto medo delas! Andavam sempre de catana nas mãos para as abaterem assim que as avistassem. Não era para menos, porque a picada de algumas era mortal.
O assunto estava complicado.
Posto o problema ao feiticeiro Tamegão, este ficou em silêncio, cinco, dez, quinze minutos, e por fim disse:
− Cobras não se compram nem se vendem, se matam.
- Mas, Tamegão, o homem precisa de cobras, mas é vivas!
Tamegão reflectiu mais um pouco e decidiu:
− Pronto, vou arranjar cobras, vou pedir à cobra-que-fala que vive no buraco da serra.
Sentiu-se um relaxamento geral.
Agarrou numa mochila feita de paus que se entrelaçavam, amarrados por cordas tecidas de cascas de árvores e propunha-se arrancar, quando Tchipiquita o alertou:
− Sem tampa as cobras fogem.
- Comigo, cobra não foge.
A cobra-que-fala não estranhou o pedido, ainda por cima vindo do Tamegão. Arranjou-lhe uma ninhada.
Todos aguardavam com ansiedade.
Chegado, Tamegão agarrou numa cobra de cada vez e foi entregando uma a cada um. As cobras, de tão quietinhas, pareciam hipnotizadas, ou até enfeitiçadas. O medo e a repulsa de eram notórios, mas o dinheiro falou mais alto.
Tamegão fez uma recomendação que caiu que nem uma bomba:
− Todo o dinheiro é para comprar roupas para as mulheres e para os miúdos.
Ninguém gostou.
Lá se foram as bebedeiras, mas quando Tamegão falava, falava mesmo.
Já com o dinheiro, dirigiram-se à primeira loja e compraram, de facto, roupas, como Tamegão ordenara, só que, como não há bela sem senão, ainda sobraram uns troquitos, que, num segredo bem guardado, ainda deu para todos se embebedarem.
Tchipiquita, quando chegou a casa, teve uma surpresa. Viu que a mulher estava feliz. Muito risonha, anunciou:
− Tchipiquita, eu está grávida outra vez.
Tchipiquita estancou.
− E agora? Não comprei roupa para esse miúdo. Tamegão me vai castigar.
Todos os dias definhava. As febres apareceram, a consciência ficou pesada, o medo tomou conta dele. Entrou em depressão e optou pelo suicídio. Beijou a mulher, o que não era hábito, os filhos, e partiu.
Partiu triste até ao precipício mais alto da serra. A areia branca do fundo tinha-se tornado azul, de tão fundo que era. Aproximou-se, rezou qualquer coisa rapidamente e, já tinha dado dois passos, faltando apenas um, quando entre ele e o abismo apareceu o vulto de um bebé que lhe sorria, nu como o Menino Jesus nas palhinhas. Recuou, pensando: se o anjo pode andar nu, se o Menino Jesus pode, o meu filho pode também. Que se lixe o Tamegão!
Tamegão ouviu e calou-se.    


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