DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

                                   
                              AMÍLCAR CABRAL     

                                           LVIII                   

     AMÍLCAR CABRAL – A ALMA E AS CONTRADIÇÕES




Para alguns escritores e jornalistas, Amílcar Cabral foi o maior pensador político africano do seu tempo.
Muitos intelectuais vindos das colónias interiorizaram o marxismo, muito em voga nas universidades europeias que frequentavam. Ora, Karl Marx elaborara as suas teorias a partir do conhecimento da história, da sociologia e da economia das sociedades europeias industrializadas. A África não entrara nas suas contas. Compreende-se que os pensadores negros tenham sentido a necessidade de adaptar o marxismo ao continente africano, em que tanto o proletariado como a burguesia constituíam minorias sociais.
Cabral propôs modificações a aspetos fundamentais da teoria marxista-leninista e houve quem lhe chamasse neomarxista.
A mais importante das suas reflexões diz respeito à luta de classes como motor da história. Na inexistência desse motor, quase todos os povos africanos eram excluídos dela.
«Será que a história só começa a partir do momento em que se desencadeia o fenómeno classe e, consequentemente, a luta de classes?
Responder pela afirmativa seria situar fora da história todo o período da vida dos agrupamentos humanos, que vai da descoberta da caça e, posteriormente, da agricultura nómada e sedentária à criação do gado e à apropriação privada da terra. Mas seria também — o que nos recusamos a aceitar — considerar que vários agrupamentos humanos da África, Ásia e América Latina viviam sem história ou fora da história no momento em que foram submetidos ao jugo do imperialismo.»
A intrusão colonial em África interrompera o processo de desenvolvimento natural dos povos indígenas. Nem Amílcar, nem qualquer teórico da Negritude, se preocupou em quantificar o tempo de evolução que o esperava: séculos ou milénios.
«O nível das forças produtivas, determinante essencial do conteúdo e da forma da luta de classes, é a verdadeira e a permanente força motora da história.»
As trocas culturais tiveram muitas vezes custos sangrentos, mas conduziram a Humanidade para diante. Os países colocados nas charneiras das civilizações chocaram culturas novas. Portugal estava no extremo da Europa. As ideias levavam anos a atravessar a Ibéria, quase sempre transportadas por povos que a história tornara nómadas. Ao contrário, o norte de África entrou cedo na rota das civilizações. A sul, ficavam, primeiro, o deserto e, depois, a inóspita zona equatorial. Durante muitos séculos, uma parte importante da Península Ibérica foi colonizada por africanos.
Depois, a história seguiu o seu curso. Acabaram por ser os portugueses, que não tinham outro horizonte além do mar, os primeiros europeus a fazer chegar ao continente negro novas ideias e novos grilhões.
O colonialismo erodiu as culturas étnicas, mas só o fez muito devagar, começando pela população urbanizada. Os camponeses, mais distantes do colono e menos influenciados por ele, continuaram a ser os guardiões da tradição e do saber antigo. Os indígenas urbanos, muitas vezes descendentes de escravos que não chegaram a ser exportados e ficaram ao serviço dos patrões, assimilaram mais cedo a cultura europeia.
Um negro “assimilado” nem era de cá nem de lá e, às tantas, já não sabia se pertencia ao lado dos brancos ou o ao dos pretos. O apelo do modo de vida dos brancos era forte, mas os patrões não o aceitavam plenamente entre eles. Tratavam melhor a minoria que sabia falar a língua europeia e adotara o modo de vestir e o comportamento dos brancos, mas a cor da pele continuava bem à vista. Os outros negros desconfiavam dessa gente desenraizada.
Cabral não escreveu isso mas terá entendido que, a dada altura, todos, ou quase todos os negros assimilados desejaram ser brancos. Foi uma realidade que Frantz Fanon denunciou como intimamente fraturante.
Em termos históricos, esse fenómeno só atingiu um número importante de negros durante menos de um século. Antes da Conferência de Berlim e da ocupação efetiva do interior dos territórios, os contactos entre as raças davam-se apenas nas feitorias africanas do litoral, sendo muito mais limitados.
Alguns dos filhos das classes médias que iam nascendo nas colónias prosseguiam os estudos na antiga Metrópole. Conheceram o movimento da Negritude. A Negritude permitiu aos intelectuais negros o reforço do amor-próprio através da reafricanização das mentalidades.
Foi a essa pequena burguesia, a este grupo de assimilados, que coube o papel histórico de liderar as lutas de independência das colónias europeias em África. Boa parte dos quadros dirigentes do PAIGC, incluindo o próprio secretário-geral, provinha dela. O peso do pensamento teórico não deixava de assustar Amílcar Cabral. Os vícios da pequena burguesia tinham sido proclamados bem alto pela literatura marxista.  A conclusão de Amílcar foi radical:
«Os pequenos burgueses que construíram a sociedade nova devem suicidar-se como classe política para se integrarem verdadeiramente no meio do povo.»
A elite colonial que assumia a luta revolucionária devia renunciar aos seus privilégios de classe e à cultura assimilada à portugalidade. Era a utopia no seu melhor. Cabral não tinha razão. Até ver, o marxismo falhou em África.
Se alguém tiver necessidade de catalogar a ideologia de Cabral deverá fazê-lo de forma abrangente. O pensamento de Cabral tem tonalidades marxista, democrática e africana negra. Para Amílcar Cabral, a libertação nacional era também um ato de cultura.
Amílcar Cabral foi um homem afável, um teórico com sentido prático que completou a formação intelectual vivendo. Defendeu, mais do que outros, que a guerra de libertação só tinha valor se a provação infligida ao povo servisse para lançar os alicerces de uma nova nacionalidade.
O problema era que, mais do que outros, precisava dela. Cabral renegou a Portugalidade, que se opunha à Negritude. A questão é que as opções dum homem criam uma realidade nova, mas não apagam de todo a anterior. Não é possível amputar um membro nem lançar for metade do coração. Amílcar Cabral combateu o colonialismo. Fê-lo denodadamente, durante uma década, sem nunca deixar de todo de ser português.



Sem comentários:

Enviar um comentário