DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

27 DE MAIO DE 1977


EM MEMÓRIA DE DOIS AMIGOS


Na madrugada de 27 de Maio de 1977, um grupo armado assaltou a cadeia de S. Paulo. Depois, tomou conta da Rádio Nacional de Angola.
Na vizinhança, tinham-se concentrado algumas centenas de manifestantes. As tropas fiéis a Agostinho Neto e os militares cubanos dispararam sobre os populares e retomaram o edifício. Por volta das 14 horas, ocuparam também o quartel da 9ª Brigada, onde teria estado preso Saidy Mingas.
O exército cubano, que tinha dado um contributo decisivo para o desfecho da guerra civil e constituía a força militar mais poderosa em Angola, apoiou o presidente Neto e garantiu-lhe uma vitória rápida. Foi decretado o recolher obrigatório.

No dia seguinte, foram encontrados na zona da Boavista, dentro de um jipe e de uma ambulância, os corpos de oito pessoas, entre as quais se contavam três membros do Comité Central do M.P.L.A.: Saidy Mingas, ministro das Finanças. Veríssimo da Costa (Nzaji), chefe da Segurança das F.A.P.L.A. e Paulo Mungungu (Dangereux).

Do grupo de vítimas, faziam ainda parte Eurico Gonçalves, comandante do M.P.L.A. que se encontrava doente com filaríase, e Garcia Neto, antigo estudante de Direito da Universidade de Coimbra que vira o Curso interrompido pelos agentes da P.I.D.E. e passara vários anos nos calabouços até ser libertado no dia 26 de Abril de 1974. Os dois últimos, alheios à contenda entre Nito e Neto, foram sacrificados por acaso. Eram amigos um do outro, e do Comandante da Polícia de Luanda, João Saraiva de Carvalho. Tinham vivido juntos em Coimbra, na República do Kimbo dos Sobas. Ao saberem que se estavam a passar movimentações anormais, dirigiram-se a casa do João, para se informarem. Prevenido, o Chefe da Polícia ausentara-se. Os dois visitantes foram apanhados pelos revoltosos, que vinham procurá-lo, e passados pelas armas.

Numa praia de Luanda, apareceram ainda vários cadáveres carbonizados. Havia quem afirmasse que os homens tinham sido queimados vivos.

A vingança não se fez esperar. O ódio soltou-se nas ruas de Luanda e propagou-se a Angola inteira. Os nitistas foram trucidados.
O número total de mortos é desconhecido. Bastantes meses depois, a Amnistia Internacional calculava que tivessem sido executadas, sem julgamento, entre vinte e quarenta mil pessoas, mas ninguém sabe como foram feitas essas contas. Ao que parece, ocorreram fuzilamentos em todas as Províncias. Terão sido muitas vezes precedidos de tortura. Em Luanda, prosseguiram durante meses a fio.
Consta que foram abatidos muitos jovens. Diz-se que alguns nem sabiam quem era Nito Alves. Sem fontes credíveis que permitam uma boa aproximação à verdade histórica, vive-se muito do que se ouve. Terão desaparecido turmas inteiras de alunos das Faculdades de Angola. No Lubango, alguns dirigentes da J.M.P.L.A. poderão ter sido amarrados de pés e mãos e empurrados para o abismo da Tundavala.
O fim de alguns mais conhecidos transpirou, ainda que os relatos disponíveis devam ser encarados com reserva.
A ordem para o fuzilamento de Nito Alves terá partido do Presidente da República Popular de Angola. Escreveu-se que João Jacob Caetano, o Monstro Imortal das lendas da guerra da independência, morreu garrotado. Sita Valles entrou de mão dada com o marido, José Van Dunem, nas instalações do Ministério da Defesa. O casal terá sido enviado para o Forte de S. Miguel. Nenhum dos dois saiu de lá com vida.
A história do 27 de Maio está por fazer. Quem sabe o que se passou, ou esteve ligado ao processo contra-revolucionário, ou dá-se com quem esteve, e cala-se. Há quem sugira que a dissidência de Nito Alves poderia ter tido solução política. Certo é que a repressão foi desproporcionada e que pereceram muitos inocentes.

Uma das consequências da revolta falhada foi a centralização do Poder. O debate político empobreceu no interior do M.P.L.A., em parte por falta de interlocutores. Reduziram-se as possibilidades de exprimir postos de vista diferentes e de defender posições de grupos sociais específicos.






Modificado de: Retornados - O Adeus a África. Editorial Cristo Negro, Lisboa, 2009.



Fotos pequenas: Internet.


Foto grande: festa da minha formatura, em 1967. Eurico Gonçalves é o terceiro da direita, na fila detrás. Garcia Neto é o 2º da esquerda, na fila da frente.





Também publicado em Milhafre.










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