DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A NOITE SANGRENTA


Em Outubro de 1921, os arruaceiros democráticos da Baixa juntaram-se aos sindicalistas e aos liberatistas da GNR numa conspiração contra o governo conservador de António Granjo. Não dispondo de chefes respeitados, apelaram a vários líderes republicanos para se colocarem à frente do movimento. Não tiveram êxito. Mesmo assim, a 19 de Outubro, a GNR e a Marinha revoltaram-se. O Exército não tomou partido.
António Granjo não tinha quem o defendesse. Ao fim da tarde, temendo pela sua vida, pediu protecção a Cunha Leal, um dos seus adversários. O jovem dirigente direitista acolheu-o com galhardia. Foi mesmo ferido, quando um grupo de marinheiros lhe entrou em casa e arrastou para a rua o chefe do governo.
Informaram Granjo de que ia ser conduzido para o cruzador Vasco da Gama, mas a viagem foi mais curta. No Arsenal da Marinha, o primeiro-ministro foi assassinado, a tiro e a golpes de baioneta.
Nessa mesma noite foram colhidas as vidas de José Carlos da Maia e de Machado Santos.
Santos morava na Rua José Estêvão, no Bairro da Estefânia. Foi acordado às duas da manhã por um toque de campainha. A esposa atendeu, enquanto ele se vestia. A senhora perguntou quem era, sem abrir a porta.
- Marinheiros - responderam-lhe. Viemos buscar o Sr. Machado Santos!
- Mas ele não se encontra em Lisboa... - Tentou a mulher iludir os militares.
- Sabemos que está em casa.. Ou abre, ou arrombamos a porta!
Foi disparado um tiro no patamar.
Machado Santos lá apareceu. Deparou com um grupo de marinheiros que lhe apontavam espingardas.
- Que querem de mim?
- Temos ordens de o levar para o Arsenal. O capitão Procópio de Freitas quer falar consigo.
- Se quer falar comigo, que venha cá! Eu sou mais graduado do que ele...
- Se não vem a bem, vai à força!
Era inútil tentar resistir. Machado Santos acabou de se vestir e despediu-se da esposa, lavada em lágrimas. Desceu as escadas, com marinheiros armados à frente e atrás. Fizeram-no entrar para uma camioneta que estava estacionada à porta. O antigo comissário naval sentou-se ao lado do condutor. Era o cabo Olímpio, mais conhecido por "Dente de ouro".
A cena foi presenciada pelas sentinelas do Quartel de Cabeço de Bola, da GNR, que distava 50 metros da residência do herói do 5 de Outubro. Nada fizeram para intervir.
A camioneta desceu para a Avenida Almirante Reis e tomou a direcção do Arsenal da Marinha. Perto do Largo do Intendente, o motor avariou. Machado Santos não chegaria ao Arsenal.
- Desça, comandante! Vamos fuzilá-lo!
O herói da Rotunda bem tentou defender a vida com argumentos. Encostaram-no a uma parede e abriram fogo. Depois, levaram o corpo para a morgue, num carro de aluguer. Quando o entregaram aos maqueiros, viram que ainda se mexia. Acabaram com ele à coronhada.
Machado Santos tinha 46 anos.
A "camionete fantasma" que o transportou e interrompeu o trajecto no Intendente tinha percorrido, nessa noite, muitas ruas de Lisboa. O mesmo bando assassinara, horas antes, José Carlos da Maia.
A conspiração de Outubro de 1921 teve demasiadas cabeças. Consta que, até momentos antes de ser fuzilado, na Avenida Almirante Reis, Machado Santos pensava ser um dos líderes da revolução.
Não se conhece bem a motivação da "Noite Sangrenta". As execuções terão sido alheias ao plano global da revolta. Aparentemente, não foram programadas pelo movimento revolucionário nem encomendadas pelos chefes rebeldes. Tratou-se, provavelmente, de uma vingança dos arruaceiros democráticos. Granjo hostilizara abertamente Afonso Costa nos anos de 1911 e 1912. Machado Santos e Carlos da Maia haviam participado no golpe sidonista de 1917.
Acumulara-se demasiado ódio em alguns corações lisboetas. Os marinheiros não esqueciam punições antigas, que consideravam injustas e humilhantes. Os militares da GNR não perdoavam a perda do prestígio gozado durante a liderança de Liberato Pinto. Os antigos elementos da "formiga branca" tinham raiva aos inimigos de Afonso Costa. Por outro lado, as contas com alguns responsáveis pela repressão sidonista estavam por fazer.
As sementes de violência estavam prontas para eclodir.
Os mortos importantes daquela noite, se é que a morte se importa com alguém, tinham estado todos juntos na revolta de 28 de Janeiro de 1908, quatro dias antes do regicídio.






Fonte: República - Luz e Sombra, de A. Trabulo



Fotografias: net.






Também publicaDO em O BAR DO OSSIAN.






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