DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

POETAS DE QUEM EU GOSTO

RAINER MARIA RILKE

Conheci Rilke muito tarde. Ultrapassara já o promontório dos cinquenta quando a minha amiga Júlia me emprestou um volume de versos que guardava desde os tempos do Curso de Germânicas, em Coimbra. A tradução era de Paulo Quintela.
Espantei-me com a minha própria ignorância. Embora me tivesse entregado à Medicina “em tempo completo prolongado” (quem é que terá inventado esta pérola da linguagem?) nunca deixei de me interessar pela Literatura. Espantei-me e maravilhei-me. Passado o espanto, chegaram as interrogações. Quantas vozes tão altas eu desconheceria?
Bem, havia umas tantas. Com o tempo, fui preenchendo algumas lacunas. Aprendi alguma coisa com a minha filha mais nova. Hão-de restar algumas, o que não me preocupa. Estamos sempre a aprender.




Rainer Maria Rilke foi um dos maiores poetas de língua alemã do século XX. Nasceu em Praga, em 1875. Estudou Literatura, Filosofia e História da Arte nas Universidades de Praga e Munique, mas raramente trabalhou. Viveu quase sempre à custa das amigas. Viajou pela Rússia e habitou em Paris, Munique, Duíno (um castelo junto ao mar Adriático, na região de Trieste, na Itália), antes de se mudar para a Suíça, onde viria a morrer em 1926. Em Paris, foi, durante dois anos, secretário do escultor Auguste Rodin que o terá ensinado a olhar o mundo de forma objectiva e influenciou decisivamente a sua obra. Grato à terra que o acolheu, escreveu poesias em francês.
As Elegias de Duíno são consideradas a obra maior de Rainer Maria Rilke. Foram publicadas em 1922, um ano extraordinário na literatura moderna. No mesmo ano vieram a público Waste Land de T.S. Eliot, Charmes de Paul Valéry e Ulysses de James Joyce.
“Não há um Aquém nem um Além, mas sim a grande Unidade, na qual estão à vontade os Anjos, seres que nos superam”.
Os Anjos das Elegias não são os da mitologia cristã. Seres puros e terríveis, dominam o visível e o invisível e distinguem mal a vida da morte.
Deixo aqui o começo da primeira Elegia.






Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias

dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse

para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua

natureza mais potente. Pois o belo apenas é

o começo do terrível, que só a custo podemos suportar,

e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha

destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.

Por isso me contenho e engulo o apelo

deste soluço obscuro. Ai de nós, mas quem nos poderia

valer? Nem Anjos, nem homens,

e os argutos animais sabem já

que nós no mundo interpretado não estamos

confiantes nem à vontade. Resta-nos talvez

uma árvore na encosta que possamos rever

diariamente, resta-nos a rua de ontem

e a fidelidade continuada de um hábito,

que a nós se afeiçoou e em nós permaneceu.


















A tradução é de Maria Teresa Furtado

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