DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

NATAL DE 1884. O NASCER DE UMA CIDADE


SÁ DA BANDEIRA (LUBANGO)









O Brasil perdera-se de vez e há muito que a economia portuguesa precisava de outros arrimos. A África constituía o último quintal de Lisboa e seria oportuno olhar a sério para o continente negro.
Portugal tinha mais olhos que barriga. Pretendia conservar um império colonial de uma vastidão desmesurada sem dispor dos meios humanos e técnicos nem das capacidades financeiras indispensáveis para enfrentar a concorrência de nações europeias mais ricas e desenvolvidas.
A Conferência de Berlim abalou profundamente as pretensões portuguesas: os alegados direitos históricos só seriam atendíveis quando corroborados pela “existência de uma autoridade suficiente para fazer respeitar os direitos adquiridos e a liberdade de comércio e de trânsito”. Coincidiu, no tempo, com a criação da Colónia Sá da Bandeira, inserida num tíbio conjunto de medidas destinadas a travar o expansionismo de outros estados europeus.
A Colónia Agrícola Sá da Bandeira foi programada em Lisboa. Os trabalhos de preparação decorreram, em parte, nas secretarias do ministério da Marinha e Ultramar. Nenhuma outra tentativa de fixação de população europeia em Angola merecera antes tanto cuidado. Mesmo assim esbarrou em múltiplas dificuldades.
A instalação foi relativamente pacífica. A zona a ocupar estava quase deserta. Os muílas eram senhores de áreas vastas e não queriam saber daquele pedaço de terra.
A bacia do Lubango situa-se a uma altitude de 1.800 metros e cobre uma área superior a 1.000 hectares. É rodeada por uma cadeia de serras que se abre apenas a Leste. É por ali que entra o vento e sai o rio.
Quem olha em volta, pela primeira vez, fixa os olhos no Sul. A Ponta do Lubango interrompe bruscamente a serra do Mucoto e ganha para sempre espaço em muitos sonhos.
Há pequenos ribeiros que levam água todo o ano. Juntam-se no lugar da Machiqueira, ali bem perto, para formar o Caculovar, que vai desaguar na Itambala (ou Lagoa dos Cavalos-marinhos).
Os colonos foram recrutados na Ilha da Madeira e transportados no navio “Índia”. Desembarcaram em Moçâmedes em 19 de Novembro de 1884 e esperaram durante algumas semanas pela caravana bóer que havia de transportar os seus haveres serra acima.
A primeira leva de colonos subiu a Chela a pé e chegou ao Lubango na véspera do Natal de 1884. Os seus modestos bens, as alfaias agrícolas, os doentes e as crianças de colo viajaram nos carrões bóeres contratados. A viagem demorou nove dias.
As carroças foram descarregadas. Na manhã seguinte, os bóeres voltaram com os carros, serra abaixo, para buscar a gente que ficara.
Os madeirenses deitaram logo mãos à obra. Os primeiros trabalhos foram colectivos. Na margem direita do rio Caculovar abriu-se uma clareira onde foram construídos dois grandes barracões de pau-a-pique, um para os homens e o outro para as mulheres e crianças. Edificaram-se, em acampamento separado, cubatas para instalar o director da Colónia, o médico, a secretaria provisória e a ambulância.
A 16 de Janeiro chegou o resto do pessoal. Eram 220 pessoas, entre homens, mulheres e crianças.
Depois de levantados dois novos barracões, os homens empenharam-se na escavação de uma levada para rega. A chuva atrasou os trabalhos, e a vala, de três quilómetros de extensão, só ficou pronta no fim de Fevereiro.
Acabada a vala, procedeu-se à delimitação do povoado, a uns três quilómetros dos barracões originais. Cada chefe de família recebeu dois hectares de terreno e ergueu uma casa pequena com paredes de pau e argila e tecto de capim. As habitações eram semelhantes às cubatas indígenas, mas tinham base rectangular e dividiam-se em dois compartimentos.
Os problemas começaram cedo. Os cofres do Estado português encontravam-se vazios e o subsídio que devia sustentar os agricultores até às primeiras colheitas revelou-se insuficiente.
A diferença maior no viver dos colonos e dos negros que os rodeavam estava no ensino. Logo no primeiro ano, a escola primária contou com 36 alunos, todos rapazes. A sala de aulas e a capela compartilhavam o mesmo barracão. Uma cortina de pano separava o ensino público do culto divino.
A meio de 1891, a Colónia de Sá da Bandeira contava 1.064 brancos, 12 mestiços e 208 negros.
Fui lá plantado sessenta anos depois. Ali fiz toda a instrução primária e liceal. Foi naquela terra que aprendi a conhecer-me. É a minha cidade.

A fotografia da direita representa uma cabana madeirense da mesma data aproximada.

Referências:
Sá, Albino. A portugalização do Sul de Angola, terceiro período. Boletim da Câmara Municipal de Sá da Bandeira nº 22, Julho/Agosto/Setembro, 1968.
Sousa Dias, Gastão. A cidade de Sá da Bandeira. Edição da Câmara Municipal. Sá da Bandeira, 1957.
Trabulo, António. Os Colonos. Esfera do Caos, Lisboa, 2007.
Fotografias:
Moraes, J.A. da Cunha. Álbum photographico e descriptivo, África Occidental (Mossamedes, Huíla e Humpata), David Corazzi Editor, Lisboa, sem data.


Já publicado em MILHAFRE











1 comentário:

  1. Acreditei em Papagaios


    Não estou no Lubango
    e não estou por aqui
    e não sei quando
    desalojado me perdi

    se foi na altura do vento
    ou antes quando começou
    e o milho do conhecimento
    um papagaio o inculcou

    com asas tão bonitas
    que papagaio me tornei
    e voei em suas fitas
    e agora de mim não sei.

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