DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 23 de março de 2017



CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO


XXXI

“A mágoa é que magoa”
O Administrador teve de partir. Uenda cô puto. 
Quem veio mandar depois foi um preto – se chamava Comandante. Quando viu a tal estátua – símbolo vivo dum colonialismo que se queria morto – arrepiou-se.
Mandou preparar alguns guilhos de aço, afiando-lhes uma das pontas. Deram-lhes uma têmpera na forja da reserva do caminho de ferro. Com a ajuda duma marreta, esburacaram toda a base onde o tenente repousava. Todos os buracos foram carregados com dinamite que uma patrulha tinha roubado das pedreiras do Cuto.
Certa noite, ouviu-se uma ordem:
− Fogo!
Um estrondo enorme fez tremer o chão. Partiu-se toda a base. Algumas pedras se dispersaram, outras, as mais pesadas, ficaram no mesmo lugar. A estátua subiu dois metros e voltou a cair no mesmo sítio. Ficou de pé. Ninguém sabe por quê, mas ficou.
Só já pela manhã o comandante reparou que tudo estava como dantes, ou quase.
− Isto é feitiço, ou quê?
O Flávio, filho do Tchicuta Macongo, que esteve toda a noite escondido por detrás do muro da escola, camuflado pelas folhas dum cajueiro, contou-me:
- Quando se ouviu aquele estrondo, todos os pássaros se levantaram dos galhos onde estavam a dormitar. Assustados, voaram muito alto. Uma chilreada enorme abafou, por completo, o eco que o choque provocou quando embateu no paredão da Chela.
O Tamegão também quis testemunhar:
Nessa noite, eu não conseguia de dormir. Saiu da cubata e viu muita luz lá fora. Todos caminhos se via. Depois, foi na vila, se passou na casa de Luana, já não sabe. Não tinha ninguém na rua. Se alguém via eu, ia contar Tamegão virou matchituca. Eu vi a cabeça sair do corpo do tal tenente, jura mesmo. Depois, parece despedida, uma bola de fogo passou em cima da vila, chocou com a serra pequena, perto do mirante, fez um buraco tão grande que a gente não vê o fundo.
Eu também reparei que nas noites de lua cheia, quando o luar entra a pique, se vê, lá em baixo uma bola a luzir, parece ter uns lábios grossos sempre a sorrir, e uns olhos que nunca mais vão deixar de chorar, digo eu.


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