DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 21 de março de 2017



CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO


XXX

“ A chuva só molha o sonho, nunca apaga”

O Administrador convocou os quatro vereadores municipais para uma reunião extraordinária. Pretendia a aprovação de uma proposta para a execução de uma estátua no meio da vila.
Todas as propostas vindas dele eram sempre aprovadas por unanimidade. Os vereadores eram conhecidos por tchicocolos porque a tudo diziam que sim, abanando as cabeças para cima e para baixo.
Tchicocolos por quê?
Porque na serra, por detrás da Administração, viviam uns lagartos enormes, quase chegados a sardões, que, quando se apercebiam de algo de anormal, paravam sobre uma pedra e meneavam a cabeça, parecendo dizer que sim.
Foi apresentado o projecto da estátua, incluindo o pedestal. Era a de um tenente da guerra dos mucubais que ostentava uma arma na mão esquerda.
O vereador Filipe comentou:
− A estátua vai ser colocada no meio de quê? Esta vila tem apenas duas ruas, separadas pela linha do caminho-de-ferro.
O Oliveira ajudou:
− E a linha, não a podemos tirar do meio…
− Bem… − disse o Administrador. – Com tantas objeções, quem vai escolher sou eu.
Mandou retirar o Parque Infantil para assentar ali o tal tenente.
A população não gostou. Os miúdos da escola também não. Reuniram-se e decidiram não ir às aulas durante três dias. Terá sido uma das raras greves do Império.
Teimosamente se foi construindo o pedestal, alto demais talvez, porque não ia ser fácil içar a estátua de bronze. Pesava demais.
Os que assistiam à construção diziam:
− Os tchicocolos que ajudem…
Todos estranhavam que o tenente não trouxesse na cabeça um capacete. Ou mesmo um quico daqueles que os militares gostam de usar.
No dia da inauguração, manhã muito cedo, o sipaio subiu ao pedestal e cobriu o tenente com um pano vermelho e verde e atou uma fita na parte de baixo.
A cerimónia foi simples. Discursou o Administrador. Em seguida, desatou a fita e descerrou a bandeira.
Espanto geral! O tenente tinha o cabelo crespo e muito frisado.
Um miúdo da escola disse:
− Com aquela carapinha, parece mesmo o Tamegão.



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