DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 12 de março de 2017

CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO




XXVII

“No tempo em que os animais já não falavam no resto do mundo, ainda se ouviam em Angola”.

O Tio Cardoso bebia uns copitos a mais, é verdade. Só incomodavam a Tia Angelina, que se fartava, em vão, de ralhar. Para nós era fixe. Quando estava com o grão na asa era divertido, brincava connosco como um garoto.
Trabalhava nos Caminhos de Ferro, era revisor. Dava a ordem de marcha, controlava as cargas e as descargas, os passageiros, etc.
Antes de chegar a Moçâmedes, a última paragem importante era o quilómetro 78, Caracul. Como já não tinha mais nada a fazer dali para diante, enfiava-se no bagaço. Quando lhe perguntavam  por que bebia aquilo numa zona onde o calor era demais, ele respondia:
− A mordedura dum cão cura-se com o pelo do próprio cão.
Era sempre o chefe da estação que o ia acordar no fim da viagem, dizendo-lhe:
− Acorda, Cardoso. A linha acabou aqui.
Acordava, barbeava-se ali mesmo na carruagem e chegava a casa fresquinho, como convinha.
O mano Nando, numa das férias grandes, domesticou um periquito, daqueles verdes com a cabeça vermelha, os republicanos, por culpa das cores. Foi uma oferta do Tamegão que estava muito agradecido por lhe ter ensinado a escrever o nome. O periquito foi apanhado com o visgo da mulemba que o próprio Tamegão sangrou.
Acabadas as férias, o Nando regressou a Moçâmedes mas esqueceu-se de levar o periquito. Em todas as cartas que escrevia à mãe pedia-lhe que o mandasse o  mais depressa possível.
Mas como?
Minha mãe decidiu:
− Carlitos, vais a Moçâmedes no comboio da quinta-feira, que o revisor é o tio Cardoso, e levas o periquito ao teu irmão.
Fiquei radiante, ia dar um passeio e, melhor do que isso, faltava dois dias às aulas.
Lá fui com o bichinho ao ombro também.
Quilómetros depois, não sei como, voou e foi pousar na cobertura da carruagem.
Via-o a tremer, talvez pela deslocação do ar ou, não sei, com medo de cair. Devia ser pela segunda hipótese, porque estávamos em zona desértica e ele devia pressentir que a única comida que havia ali era areia.
− Tio, o periquito fugiu, está em cima da carruagem.
− Tu consegues vê-lo?
− Consigo.
− Então mostra lá.
Examinou a situação e disse:
− Não há nada a fazer, se ele se quiser safar que se agarre.
− Mas, tio, o periquito é do Fernando.
Joguei forte porque sabia que ele tinha um fraquinho por ele e, ainda por cima, era seu afilhado. Ficou calado. Momentos depois, como que falando para si próprio:
− Ai, tens que te agarrar, tens.
Veio-me uma ideia luminosa:
− Tio, tu podes mandar parar o comboio.
− Boa, nem tinha pensado nisso.
Pegou na bandeira vermelha, colocou-a fora da janela e o comboio parou.
Em Angola, até os periquitos faziam parar os comboios.



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