DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 17 de março de 2017



CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO

XXVIII




“O nosso corpo treme por causa do sangue que ferve dentro do corpo do outro”

Chipeto empurrou com cuidado a porta da cubata, parecia desconfiado. Tinha razão. Ficou horrorizado com o que viu e, num grito:
− Que é que é isto, Murilo?
O que era vulgar nestas situações era perguntar à mulher. Murilo estremeceu no sentimento de culpa. Tentou levantar-se, mas Domingas apertou-o com força. Murilo perdeu a atitude.
Domingas, mulher do Chipeto, era linda. Era esquia e bamboleava em provocação.
Chipeto era bastante mais velho. Usava mutunga na cintura e um porrinho na mão. Caminhava coxeando e quando se zangava espumava no canto direito dos lábios.
− Murilo, me explica – ordenou Chipeto.
Murilo nada podia explicar. Queria era sair dali. Assustado, olhou de frente para o Chipeto. Nem disse “seja o que Deus quiser” porque esse Deus ele não conhecia.
Chipeto, a gritar, disse:
− Sai já da minha casa!
Foi o que Murilo quis ouvir.
Se Chipeto bateu na mulher, se ralhou, ele não chegou a saber. Admirou-se, isso sim, do silêncio que envolveu o dia.
Pouco tempo depois, viu-se Chipeto passar, coxeando e a espumar, direito ao Posto Administrativo.
− Senhor Chefe, eu vem aqui apresentar queixa.
− Diz lá…
− Eu apanhar Murilo em cima de Domingas.
− Por quê? Caíram os dois?
− Não! Estavam só deitados dentro da cubata.
− E agora? O que é que queres que eu faça? Já cá vieste várias vezes pela mesma razão. Quem tem que resolver isso és tu.
− Mas… Senhor Chefe, eu pode apresentar queixa?
− Está bem. Eu vou mandar chamar o Murilo.
Quando ele chegou, o Chefe ordenou que se sentassem os dois, à sua frente, em bancos separados, como convinha.
Chipeta mostrava-se altivo e controlado, Murilo não.
− Então, como é que vamos resolver a endaca? – Perguntou o Chefe de Posto ao queixoso.
−Tem que pagar!
O Chefe pensou: “já estou farto deste gajo, golpista dum raio!”
− Então, queres que ele pague a tua honra?
− Não, honra não… Eu quer mesmo aqueles três porco que ele tem no curral.
Já os tinha contado… – Pensou o Chefe.
Murilo estremeceu. Era a única coisa de valor que tinha. O Chefe também sabia disso.
− Ouve lá, Chipeto! Um só não chega? Afinal, a Domingas consentia…
−Por causa que estava bêbada!
O Chefe virou-se para Murilo e perguntou:
− Tu podes pagar os três porcos?
− Só pode um, respondeu, a medo, Murilo.
− Pronto! Dás um porco ao Chipeto e fica tudo resolvido.
Quando o Murilo ia a sair, o Chefe disse-lhe:
− Vá lá… Tiveste sorte. Vais pagar barato…

− Um porco é muito… Senhor Chefe, por causa que Domingas estava bêbada.

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