DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 1 de março de 2017




CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO


XX




“É assim que se distinguem as raças: os filhos dos negros não têm prendas no Natal.”


Estava a chegar o Natal. Vinha depois do outro e antes de todos os que ainda estavam para chegar.
Na verdade, em todos eles, eu pensava:
“ Onde é que se terá metido o Rei-Mago-Preto que se esquece tanto dos miúdos da sua cor?”
Esta minha pergunta estava envolta em tristeza, já quase à beira da revolta.
Por isso:
Com os troquitos que fui amealhando comprei presentes para os filhos da Luana.
Para o menino ainda bebé, uma chupeta azulinha.
Para o do meio, uma bola.
Para o mais velho, que já andava da escola, um caderno de folhas lisas e uma caixa de lápis de cor.
De propósito, toda a tarde da consoada choveu. E agora?
Olhei o Céu, impaciente e já sem fé, revoltado.
Agorinha mesmo deixou de chover! Fez-me bem este jeito em forma de milagre. O solo secou rápido como sempre seca o chão africano.
As folhas pararam de chorar e eu esgueirei-me pela porta da cozinha. Para correr mais depressa viajei no meu arco empurrado pelo gancho de arame.
– Luana, vim trazer uns presentes para os teus filhos.
– Segunda!  Anda cá depressa. Traz os outros miúdos.
“Por que raio é que aquele miúdo se havia de chamar Segunda?”
Luana parece que adivinhou.
– É porque aqui não pode ter dois Saparalo. Este é mesmo o primeiro que veio.
– E tu, porque é que te chamas Luana?
– Quando eu nasceu a Lua ficou igual ao Sol.
“Lá tinha que vir fantasia africana”, pensei eu.
Luana pôs a chupeta na boquinha do bebé. Em brincadeira do acaso o menino começou logo a chupar.
A mãe, embevecida, murmurou:
– Parece filho do branco.
Segunda começou a fazer riscos na primeira folha do caderno, sem qualquer nexo. Estava era deslumbrado com as cores que iam saindo. Afinal, só conhecia os riscos brancos que o lápis de pedra fazia na lousa da escola.
Tentei por alguma ordem:
– Tens que fazer mesmo um desenho tirado da tua cabeça!
O menino começou a desenhar enquanto eu bebia um refresco de imbunde que Luana preparou para mim.
Fez uma casa com as janelas junto ao telhado (Para todas as crianças são sempre inacessíveis as janelas deste mundo grande).
Fora da casa, três bonecos. Via-se que um era homem porque três risquinhos lhe definiam a barba. O outro, porque não tinha barba, devia ser a mulher dele. O terceiro, tão pequenino, parecia um bebé.
Ao lado, um animal. Porque daquela bola maior desciam quatro riscos – talvez as patas.
Depois disse:
– Vou fazer o Sol.
Fê-lo em forma de estrela.

Afinal, era noite de Natal.

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