DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 9 de março de 2017


CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO

                             XXIV


“ O amor é como a chuva, ganha cor quando beija a terra”.

Tamegão foi dos poucos negros a ser convidado para o casamento do filho do patrão.
Vestiu casaco e pôs a gravata que o Menino lhe emprestou. Sentiu-se mascarado de branco. Pior eram os sapatos, mordiam demais.
Dona Albertina Menezes comentou:
− Estás bonito, Tamegão.
Estremeceu. Se o senhor Menezes ouvisse não ia se gostar.
Um ano depois, ainda pensava naquele elogio. Tremia sempre. Dona Albertina, essa, nunca mais se lembrou de tal, mas ele, sim.
− Tamegão, vais ao clube amanhã?
− Eu não sei se pode entrar.
− Põe aquela gravata, veste o casaco e diz que eu quero que tu entres.
Tamegão não queria que o sono tomasse conta dele naquela noite. Imaginou dona Albertina passeando descalça por cima da erva tenra, olhando para ele com aquele sorriso que mais outra senhora não tinha. Deu a sua mão à dela com todo o cuidado, sempre pronto a se desculpar se a Senhora não gostasse.
Dona Albertina le disse:
− Essa mão tão macia nem parece de gente da tua raça.
Tamegão começou a sentir uma coisa diferente lá dentro. Quando mais ele apertava aquela mão, mais sentia o aperto da dela, numa correspondência total.
− Isto afinal é o quê?
− Tu sabes bem, respondeu dona Albertina. A partir de agora, não me trates mais por Dona, Tininha chega.
− Eu não pode fazer isso por causa que o senhor Menezes não vai se gostar.
− Não tenhas medo…
Depois, pediu-lhe, abraça-me com força.
Tamegão ainda hoje não sabe de onde lhe vieram tantas forças. Apertou, apertou até se esquecer das diferenças. Seus lábios grossos africanos cobriram por completo os que estavam ali, naquela carinha branca atrevida. Baixou os braços, ele também. Lá no fundo seus dedos se entrelaçavam.
De repente, o capataz:
− Tamegão, tens de acordar. Vamos trabalhar, traz a enxada!
− Eu já vai, senhor Tibúrcio.
“Me desculpa, Tininha, eu logo vai voltar. Não larga as minhas mãos, se quer, eu levo elas comigo”.
Dona Albertina não ouviu. Estava a servir o pequeno-almoço ao Menezes.




Sem comentários:

Enviar um comentário