DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O DIA EM QUE DEUS COMEÇOU A DESMONTAR O MUNDO










ESTE LIVRO É CONSTRUÍDO


SOBRE DOIS MODOS
ADVERSOS

DE OLHAR O MUNDO





Como lágrimas que escorrem por um dos lados do rosto e não sabem do sofrer da outra face, há rios que deslizam por vertentes opostas da mesma montanha. Cada um entende apenas a sua encosta.
Os homens gostam de nomear as coisas. Poderemos chamar a um Rio dos Brancos e ao outro Rio dos Negros. África será a designação da cordilheira que os separa e une.
As correntes seguem trajectos com algum paralelismo. Os caudais aproximam-se, uma vez por outra. Tocam-se, mas não juntam as águas.
O primeiro ponto de vista é o de quem partilha as crenças tradicionais africanas e se apercebe da ocorrência de mudanças, lentas mas definitivas, no modo de encarar as relações com os vivos e com os antepassados. O segundo é o do missionário que propaga, em Angola, a sua fé e participa, de certo modo, no processo colonial.
A dada altura da viagem, os personagens que dão voz aos rios apercebem-se do final das suas jornadas. Olham para trás, e vêem que não há retorno possível. O tempo gastou-se. Deus perdeu a paciência.
No entanto, não é o mundo que vai acabar. É apenas a maneira como eles o vêem. A montanha permanece, firme e quase imutável. Os fios de água secam e extinguem-se, para que nasçam outros, que experimentarão percursos novos.
Aqui e ali, o autor faz uso de parábolas. Dá chão ao conjunto das suas narrativas numa região limitada do Sul de Angola, e nem sempre respeita a cronologia. As conclusões poderão (ou não) aproximar-se da evolução do modo de pensar de quem experimentou a mesma vivência noutros países, em épocas diferentes.
Não se apressem a avaliar o estranho viajante que vão acompanhar ao longo do livro! Com o voltar das páginas, mesmo que o não tratem por tu, irão sentir-se próximos dele. Poderão constatar que exagerou quem, ao traduzir o termo “Dumba-ia-munto” para português, escolheu a palavra “diabo”.

(Prólogo de livro a publicar na Primavera)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

31 de Janeiro de 1891

Eram horas de almoço. Martinez procurava mesa num pequeno restaurante do Campo de Santana quando avistou o sargento Madruga, que comia sozinho. Aproximou-se.
– O meu amigo permite que lhe faça companhia?
– Com muito gosto. Sente-se. O cozido não está mau. Que novidades traz?
– Poucas. Fala-se muito, mas ninguém se mexe. Não é como no seu tempo...
Madruga fitou o jovem colega com ar sério.
– O meu tempo é este. Não tenho mais nenhum…
– Peço desculpa. O dia de hoje é tanto meu como seu. Contudo, o senhor viveu mais anos e ganhou outra experiência. Os de 1891 portaram-se melhor do que nós. Como calcula, fala-se muito do 31 de Janeiro. Nunca ouvi o relato da boca de alguém que estivesse lá. Ando há tempos para lhe pedir que me conte como foi esse dia.
Era o tema favorito de Madruga. Embora tivesse acabado mal, fora a manhã mais bonita da sua existência. Meteu na boca a última garfada de carne, limpou os lábios ao guardanapo, bebeu mais um gole de vinho tinto, e começou.
– Nós fomos para a revolução prontos para matar e morrer, mas aquilo quase não passou de um desfile. Às duas da manhã, saímos para a rua com dois regimentos. Estava nevoeiro e fazia frio. Eu estava colocado em Caçadores 9, que tinha o quartel na Rua de S. Bento. Juntámo-nos no Campo de Santo Ovídio
[1] com o pessoal de Infantaria 10 e com muitos soldados da Guarda-Fiscal, uns a pé, outros a cavalo. Os sargentos eram unidos e estavam do nosso lado, mas poucos oficiais nos quiseram acompanhar. Vieram apenas o capitão Leitão, o tenente Coelho e o alferes Malheiro.
– Hoje em dia é a mesma coisa. Hão-de ser os sargentos a fazer a República!
Falavam sem se preocuparem muito com os ouvidos dos vizinhos. Era tudo gente do bairro.
– Sempre fomos uma classe à parte. O Exército, sem nós, não é nada...
– Mas não nos dá valor!
– A maior parte dos quartéis fica dentro das cidades. As praças vêm e vão, mas os sargentos ficam. Conhecem a gente das redondezas. Nós e os civis sempre nos sentimos chegados uns aos outros.
– Lemos os mesmos jornais...
– Discutimos política com eles...
– Bem, voltemos ao Porto... Na madrugada do dia 31, houve oficiais talassas que conseguiram impedir o Regimento de Infantaria 18 de se juntar a nós. No entanto, alguns chefes militares não tinham ideias muito claras. Nem queriam estar contra Deus nem contra o Diabo.
– É como hoje. Há muito boa gente que vai esperar pelo dia a seguir à revolta para tomar posição sem se comprometer.
– Houve oficiais superiores que nem souberam, até ser dia, que estávamos na rua. Bom, quando nos pusemos em marcha, íamos cheios de ilusões. Julgávamos que era só chegar fogo a palha seca. Deitávamos os primeiros foguetes e a festa começava...
– Não foi o que aconteceu...
– Não, embora tivéssemos chegado a dispor de superioridade militar. O Governo ficou com a Guarda Municipal e com a artilharia da Foz e da Serra do Pilar. O destacamento de Cavalaria 6 andava por ali, sem saber para que lado cair. Contávamos que bastasse ter os regimentos na rua para que surgissem generais ou coronéis dispostos a comandar-nos. Não apareceram. Nem os civis que se juntaram a nós foram tantos como esperávamos.
– E o Partido Republicano?
– Andava muito dividido e teve pouco a ver com a revolução.
Interromperam a conversa porque entrara um desconhecido na sala e tomara assento em mesa próxima.
– Cuidado, que pode ser bufo, avisou Martinez.
Até o homem sair, falaram de trivialidades. Depois voltaram às recordações do 31 de Janeiro.
– Como é que passou a manhã?
– Não se combatia. Esperava-se. A Guarda Municipal retirou quando viu chegar o Regimento de Infantaria 10, mas voltou a ganhar ânimo e foi rodeando as nossas tropas em Santo Ovídio. O subchefe do Estado-Maior da guarnição do Porto, tenente-coronel Magalhães, atreveu-se a entrar a cavalo no Campo, sem que alguém o impedisse. Quis falar com o capitão Leitão. Levaram-no junto dele. Magalhães tentou convencer o capitão a desistir da revolta, mas o homem era teimoso e estava decidido a seguir em frente.
De manhã cedo, um grupo de estudantes veio juntar-se a nós, dando vivas à República. A malta animou-se. Esperava-se que o Regimento de Infantaria 18 acabasse por aderir ao levantamento. As praças lá permitiram que os civis arrombassem uma porta. Santos Cardoso, um fala-barato em que poucos revoltosos confiavam, entrou no quartel acompanhado do actor Miguel Verdial e começou a arengar aos oficias. A acreditar no que o homem dizia, o rei já tinha fugido para um navio e navegava àquela hora para Inglaterra. Fora proclamada a República! O governo ameaçava expulsar do Exército os oficiais que se lhe opusessem.
A palestra surtiu algum efeito e a confusão instalou-se no Regimento.
Entretanto, a banda de Infantaria 10 desceu a Rua de Almada, a tocar “A portuguesa”. Nós e os civis íamos atrás. Não estávamos alinhados para o combate, mas para um desfile. Ocupámos a Praça de D. Pedro por volta das seis da manhã. A nossa bandeira foi hasteada na Câmara Municipal do Porto. Houve discursos. Ninguém os ouviu, mas não fazia mal. Era a República! Tínhamos governo e tudo!
As horas passaram. A tropa tinha fome. Estavam ali 600 homens, e pouco pão se pôde arranjar. Fui conversando com os colegas. Demos conta que não havia propriamente um plano militar e que nenhum ponto estratégico tinha sido ainda tomado. Começámos a preocupar-nos.
Os nossos oficiais resolveram então formar uma coluna. Subimos a Rua de Santo António
[2] em direcção à Batalha. A banda pôs-se outra vez à frente, a dar música ao povo.
A Guarda Municipal tinha-se posicionado no adro da Igreja de Santo Ildefonso. Já não estava sozinha. Do lado do Teatro de S. João, alinhava o destacamento de Cavalaria 6, que acabara por se inclinar para o campo dos talassas. Do outro lado, havia uma centena de praças da Guarda-Fiscal.
– A Guarda-Fiscal estava dividida...
– Sim! Metade alinhou connosco e metade com o Governo. Os municipais, não. Eram quase todos monárquicos. A nossa coluna não pretendia lutar, mas sim chamar para o nosso lado o resto da tropa. Acreditávamos que tanto a população como os soldados queriam mesmo a República. A essa hora, ainda dispúnhamos de vantagem em termos de efectivos. Dificilmente a Guarda Municipal seria capaz de enfrentar dois regimentos do Exército. A ser um ataque, estaria a ser conduzido de forma idiota. Marchávamos em coluna de quatro e subíamos uma rua íngreme, direitinhos às balas do inimigo. Os civis iam-se misturando connosco.
Alguns populares correram à frente da banda e insultaram os soldados da Municipal. Os gajos estavam cheios de medo e dispararam alguns tiros. Foi a debandada. Os civis correram rua abaixo pelo meio da formação, desorganizando completamente a nossa coluna. Alguns militares fugiram também, abandonando as armas. Quando conseguimos reunir de novo a tropa, éramos apenas 150 a defender a República. Retirámos para os Paços do Concelho.
Aos poucos, as tropas governamentais foram aparecendo. As peças trazidas da Serra do Pilar foram apontadas para nós. Era impossível oferecer resistência. Por volta das dez e meia da manhã, acabámos por desistir. A República durara três horas.
– Foi uma oportunidade perdida...
– Hoje, nem disso estou certo. Mesmo que ganhássemos o Porto, que aconteceria com o resto do País, especialmente com Lisboa? Aquilo não passou de um sonho de rapazes generosos. Sob o ponto de vista militar, que era o determinante, a revolução foi muito mal preparada.
– A ver se da próxima fazemos melhor...
– Vamos brindar a isso! – Disse Madruga. Senhor Hernâni! Traga dois copinhos daquela sua aguardente especial!
Depois de beberem, despediram-se. Pairava no ar o aroma a conspiração. Podia ser que a República nem tardasse.



[1] Hoje Praça da República.
[2] Actual Rua 31 de Janeiro. O nome antigo continua a ser usado.

Excerto do romance 1910 (Editorial Cristo Negro Lisboa, 2009)

domingo, 31 de janeiro de 2010

UM POUCO DE HISTÓRIA DA PESCA DO BACALHAU

I - A EXPANSÃO


A nau de um deles tinha-se perdido
no mar indefinido.
O segundo pediu licença ao Rei
de, na fé e na lei
da descoberta, ir em procura
do irmão no mar sem fim e a névoa escura.

Tempo foi. Nem primeiro nem segundo
volveu do fim profundo
do mar ignoto à pátria por quem dera
o enigma que fizera.

Então o terceiro a El-Rei rogou
licença de os buscar, e El-Rei negou.

Carta de doação de D. Manuel I
a Gaspar Corte Real, em 1500


Pormenor do planisfério anónimo português dito de "Cantino", de 1502

O “terceiro” era Vasqueanes Corte Real. D. Manuel I não permitiu que fosse em busca dos irmãos e chamou a si essa responsabilidade.
A importância crescente da pesca do bacalhau levou o rei, em 1506, a reservar para si o dízimo dos proventos da pesca da Terra Nova nos portos de Aveiro e Viana do Castelo.
Gaspar Corte Real descobriu a Terra Nova por volta do ano 1500. Que significa “descobrir”? Estas paragens foram provavelmente visitadas, séculos antes, por vikings e por pescadores islandeses. Uma ilha, ou a costa de um continente, só pode considera-se descoberta quando quem lá chegar saiba como voltar, e o transmita. Em termos práticos, tal acontece quando é assinalada num mapa e se conhece a latitude, o rumo a seguir e uma estimativa da longitude, uma vez que esta coordenada só ganhou precisão muito tempo mais tarde.
A primeira evidência dessa descoberta é o planisfério “Cantino”. Assinale-se que, nas primeiras cartas, a posição da Terra Nova foi convenientemente deslocada para Leste, de forma a caber na parte do mundo que o Tratado de Tordesilhas reservara aos portugueses.
Não se pode falar dos mares que banham as costas do Canadá sem referir os nomes de Giovanni Cabotto, cujo nome foi anglicizado para John Cabot, e de João Fernandes Lavrador. Ambos partiram do porto de Bristol e navegaram ao serviço de rei Henrique VII de Inglaterra, embora Lavrador tivesse obtido antes do rei D. Manuel autorização para explorar ilhas e terra firme. As viagens do português que deixou o nome ligado à costa do Labrador, terão sido efectuadas após Cabotto desaparecer no mar, em 1498.
A importância do pescado na alimentação fazia-se sentir desde há muito e aumentou com o crescimento demográfico que ocorreu durante o século XV. Não abundavam, na Europa, as fontes de proteínas. Ainda por cima, a igreja católica proibia o consumo de carne nos dias de abstinência, que eram quase 150 por ano.
Os ingleses pescavam bacalhau nos mares da Islândia. Secavam-no a bordo, consumiam-no e comercializavam-no. Portugal tinha bom sal que exportava para a Europa. O intercâmbio com os pescadores ingleses terá começado desse modo. Bascos, portugueses e bretões habituaram-se também a pescar naquelas águas.
A situação geo-estratégica modificou-se. As lutas pelo domínio das áreas geográficas onde existem recursos importantes são tão velhas como as Nações. As áreas de pesca não escaparam aos conflitos. Em 1478, as autoridades dinamarquesas encerraram aos estrangeiros os pesqueiros da Islândia, que então controlavam.
Os pescadores tiveram de procurar outras zonas de pesca. Os portugueses deram com a “terra nova dos baccalhaos”. Dizia-se que havia tanto peixe nos seus bancos que os cardumes chegavam a impedir o avanço dos barcos.
A notícia da abundância de pescado propagou-se e a Terra Nova passou a ser procurada por pescadores de várias nacionalidades. Os portugueses foram os primeiros a instalar colónias fixas na Terra Nova e no Labrador a partir de 1506. O mapa de Cantino de 1502 assinala com nomes portugueses diversos pontos da costa.
As nações europeias foram dando conta da necessidade de povoar as terras recentemente descobertas. A pressão do crescimento demográfico fez--se sentir. Ingleses, franceses e bascos foram tomando posições na região. De início, instalaram-se em torno do estreito de Belle Isle.
A pesca era fonte considerável de riqueza. Companhias bascas e portuguesas exportavam, para a Inglaterra e Irlanda, bacalhau e sal de Setúbal.
Cerca de 1530, um grupo de portugueses partiu de Viana do Castelo em direcção à Terra Nova. Pretendia-se reforçar a colónia que controlava boa parte do litoral da região. O financiamento era feito por comerciantes de Aveiro e da Ilha Terceira. A colónia manteve-se, pelo menos, até 1579, como demonstra a nomeação de um descendente dos Corte Real para a Capitania da Terra Nova. A ocupação era essencialmente sazonal.
Nos primeiros anos do século XVI saíam anualmente, só de Aveiro, 60 navios pesqueiros com destino à Terra Nova. Em 1550, o seu número rondava os 150. Os bacalhoeiros tinham pequena tonelagem. Cada um era tripulado por 20 a 30 homens. A campanha ocupava a Primavera e o Verão. No resto do ano, os barcos eram rentabilizados na navegação de cabotagem.

Referências:
Canas, António José Duarte.
Guerreiro, Inácio.
Matos, Luís Jorge Semedo de.
Salgado, A. Alves.
Varela, Consuelo. (traduzida do espanhol por Eduarda Pinto Basto).
Todos em: Revista Oceanos, nº 45, Janeiro/Março 2001.

Gravuras e fotografias: idem.

Também publicado em Milhafre.











O autor nos Mares da Terra Nova, em 1970

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

POETAS DE QUEM EU GOSTO

RAINER MARIA RILKE

Conheci Rilke muito tarde. Ultrapassara já o promontório dos cinquenta quando a minha amiga Júlia me emprestou um volume de versos que guardava desde os tempos do Curso de Germânicas, em Coimbra. A tradução era de Paulo Quintela.
Espantei-me com a minha própria ignorância. Embora me tivesse entregado à Medicina “em tempo completo prolongado” (quem é que terá inventado esta pérola da linguagem?) nunca deixei de me interessar pela Literatura. Espantei-me e maravilhei-me. Passado o espanto, chegaram as interrogações. Quantas vozes tão altas eu desconheceria?
Bem, havia umas tantas. Com o tempo, fui preenchendo algumas lacunas. Aprendi alguma coisa com a minha filha mais nova. Hão-de restar algumas, o que não me preocupa. Estamos sempre a aprender.




Rainer Maria Rilke foi um dos maiores poetas de língua alemã do século XX. Nasceu em Praga, em 1875. Estudou Literatura, Filosofia e História da Arte nas Universidades de Praga e Munique, mas raramente trabalhou. Viveu quase sempre à custa das amigas. Viajou pela Rússia e habitou em Paris, Munique, Duíno (um castelo junto ao mar Adriático, na região de Trieste, na Itália), antes de se mudar para a Suíça, onde viria a morrer em 1926. Em Paris, foi, durante dois anos, secretário do escultor Auguste Rodin que o terá ensinado a olhar o mundo de forma objectiva e influenciou decisivamente a sua obra. Grato à terra que o acolheu, escreveu poesias em francês.
As Elegias de Duíno são consideradas a obra maior de Rainer Maria Rilke. Foram publicadas em 1922, um ano extraordinário na literatura moderna. No mesmo ano vieram a público Waste Land de T.S. Eliot, Charmes de Paul Valéry e Ulysses de James Joyce.
“Não há um Aquém nem um Além, mas sim a grande Unidade, na qual estão à vontade os Anjos, seres que nos superam”.
Os Anjos das Elegias não são os da mitologia cristã. Seres puros e terríveis, dominam o visível e o invisível e distinguem mal a vida da morte.
Deixo aqui o começo da primeira Elegia.






Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias

dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse

para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua

natureza mais potente. Pois o belo apenas é

o começo do terrível, que só a custo podemos suportar,

e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha

destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.

Por isso me contenho e engulo o apelo

deste soluço obscuro. Ai de nós, mas quem nos poderia

valer? Nem Anjos, nem homens,

e os argutos animais sabem já

que nós no mundo interpretado não estamos

confiantes nem à vontade. Resta-nos talvez

uma árvore na encosta que possamos rever

diariamente, resta-nos a rua de ontem

e a fidelidade continuada de um hábito,

que a nós se afeiçoou e em nós permaneceu.


















A tradução é de Maria Teresa Furtado

MAR DO NORTE



Quando vier Abril
intumescer de novo o leme eterno
hei-de buscar o Norte,

reencontrar a máscara polar
onde a palavra do mar
se expressa
dura e branca.

Quando vier Abril,
o sorriso da terra,
e a barca estiver cheia
(presunto, azeite e vinho)
hei-de rumar a Norte!

Que mais posso fazer, se a Primavera urge?

Impossível olhar
a barca abandonada.
Fotografias do autor

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

POR QUE SOU A FAVOR DO ACORDO ORTOGRÁFICO


1º - Porque não somos donos da língua portuguesa. Existem cerca de 225 milhões de lusófonos e nós, em Portugal, somos apenas 10 milhões.
Fundámos a sociedade, mas detemos só 5 por cento das acções. Queremos mandar em quem?
Esse notável instrumento de comunicação representa, a par das Descobertas, um dos nossos maiores legados para a cultura universal. Criámo-la, mas constituímos uma minoria das pessoas que a falam. Ela é já muito maior do que nós. Fernando Pessoa, cidadão da palavra, compreendeu isto quando afirmou, há um século: “A minha Pátria é a Língua Portuguesa”.

2º - Porque considero necessário e útil um instrumento regulador.
As línguas são vivas e tendem a diversificar-se em cada dia que passa. Basta pensarmos no crioulo de Cabo Verde e lembrar os escritos de Mia Couto.
As pressões de outros países sobre os PALOPs não vão deixar de crescer e hão-de ter também repercussão linguística.
Dentro em breve, com acordo ou sem ele, os livros escolares dos PALOPs serão feitos no Brasil, onde os custos de produção são mais reduzidos. As telenovelas brasileiras constituem um instrumento poderoso de divulgação da língua. Não somos suficientemente competitivos nessa área.
Quer nos agrade, quer não, se a língua portuguesa perdurar no mundo, será na versão brasileira.

3º - Porque considero melhor existir um mau acordo do que não haver nenhum e deixar a língua à solta, sem nenhum mecanismo que tente, ao menos, regulá-la. São necessárias directrizes que exerçam um papel de contenção e de estruturação nas variantes que estão a nascer espontâneamente, um pouco por toda a parte.
E, tanto quanto sei, o acordo nem é assim tão mau. Não sou linguista e mal me atrevo a meter a foice nesta seara mas, a meu ver, boa parte das alterações propostas vem apenas apressar uma evolução que iria ter naturalmente o mesmo resultado, anos mais tarde. Para que servem as consoantes mudas ou não articuladas?
E não lhe chamem novo! Tem 19 anos, embora tenha sido recentemente ratificado por Portugal. Provavelmente, está ultrapassado. Nos “SMS” dos telemóveis, o K está a fazer ao QU, quando o U não se pronuncia, o mesmo que o F fez ao PH, tempos atrás. Mais tarde ou mais cedo, este fenómeno terá repercussão na escrita formal.

Há questões que ultrapassam os acordos. Em primeiro lugar: quem irá cumpri-lo?
Eu, não! Tenho 66 anos e não vou mudar agora. Sou incoerente? Nem tanto. A mudança deve começar nos bancos da Escola Primária. Será opcional nas Universidades da Terceira Idade… A transição poderá ser fácil se a nova grafia conquistar o seu espaço no Windows.
E os brasileiros? Sabem que são os mais fortes nesta área e que o tempo joga a favor deles. Será que o vão mesmo cumprir?
Tanto dá! Acreditem ou não, tenho poucas saudades do tempo em que farmácia e outras palavras correntes se escreviam com ph.

António Trabulo

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

POETAS DE QUEM EU GOSTO


Alguns dos Vencidos da Vida. Guerra Junqueiro, sem barba, está à direita



GUERRA JUNQUEIRO – UM POETA MENOR?


Abílio Guerra Junqueiro faz parte do grupo relativamente restrito dos poetas que conheceram a glória em vida.
Nasceu em Freixo de Espada à Cinta em 1850 e morreu em Lisboa em 1923. Entre uma data e outra, frequentou a Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra e acabou por se formar em Direito. Foi secretário dos governos civis de Angra do Heroísmo e de Viana do Castelo. Fez-se eleger deputado pelo monárquico Partido Progressista. Participou nas reuniões dos Vencidos da Vida. Após o Ultimatum, cortou relações com Oliveira Martins e dedicou-se à causa da República. Foi Ministro de Portugal na Suíça entre 1911 e 1914. Escreveu muitos livros de versos. Teve ainda tempo de se dedicar à lavoura nas suas terras da Barca de Alva.
Os restos mortais do poeta estão depositados no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa.
Homem impulsivo, de rima fácil e de frases afiadas, poeta satírico e panfletário, ficou conhecido como profeta da República, de quem esperava a cura de todos os males que afligiam Portugal. No entanto, a sua militância política, enquanto poeta, terminou cedo, por volta de 1896, com o livro Pátria. Hoje, acodem-nos mais facilmente à memória os versos intimistas em que combina o panteísmo com uma espécie de cristianismo.
Ainda em vida de Guerra Junqueiro se levantaram contra ele as primeiras vozes críticas. António Sérgio, em 1920, chamou-lhe “grande versejador e pequeno espírito”.
Será um poeta menor? Fernando Pessoa elogiou-o. Muitos admiram nele, como Jacinto do Prado Coelho, “o modo cativante como exprime sentimentos comuns”.
Guerra Junqueiro tratou com ternura e musicalidade a língua portuguesa. As crianças entendem-no. Quantas gerações de adolescentes o terão seguido ao escrevinhar os primeiros versos?






Referências: Dicionário da Literatura, Figueirinhas, Porto, 1992.
Fotografias: várias fontes.









REGRESSO AO LAR

Ai, há quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar!
Foi há vinte? Há trinta? Nem eu sei já quando...
Minha velha ama que me estás fitando,
Canta-me cantigas para me eu lembrar!

Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh! A ingénua alma tão desiludida!
Minha velha ama, com a voz dorida,
Canta-me cantigas de me adormentar!

Trago d`amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!
Minha velha ama que me deste o peito,
Canta-me cantigas para me embalar!

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
Pedrarias d`astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!

Como antigamente, no regaço amado,
(Venho morto, morto!) deixa-me deitar!
Ai, o teu menino, como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!

Canta-me cantigas, manso, muito manso...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minh`alma durma, tenha paz, descanso,
Quanto a Morte, em breve, me vier buscar!