II
EDUARDO MONDLANE
O MOÇAMBICANO
QUE GOSTAVA DE PLEKHANOV
Eduardo Chivano Mondlane foi executado em Dar-es-Salam, capital da Tanzânia, com recurso a uma bomba enviada por correio.
Morreu em Oyster Bay, na Residencial/Bar da americana Betty King, secretária de sua esposa Janet Mondlane no Instituto Moçambicano. Esse Instituto foi criado por Janet em 1963. Destinava-se a acolher e ensinar os jovens estudantes moçambicanos refugiados na Tanzânia. Paralelamente, dedicava-se à arrecadação de fundos para a FRELIMO. Na altura do crime, Janet encontrava-se na Suíça. Soube da tragédia apenas à noite.
Mondlane modificava pouco as suas rotinas diárias. Quando Janet se ausentava, passava em casa de Betty muito do seu tempo livre. Parecia apreciar as americanas.
O atentado foi planeado com todo o cuidado. A PIDE conseguira infiltrar-se em certos partidos revolucionários moçambicanos e mostrou conhecer bem os hábitos de alguns dos seus dirigentes.
No dia 3 de fevereiro de 1969, Mondlane recolheu a correspondência enviada para aquele “seu” domicílio e abriu uma encomenda armadilhada contendo a tradução francesa das “Obras Escolhidas” do teórico marxista russo George Plekhanov. Consta que a violência da explosão lhe decepou as mãos e lhe separou o tronco em duas partes.
A encomenda armadilhada rebentou às 9 horas da manhã. Nem Betty, nem a maioria dos trabalhadores se encontrava no local. Apenas estava lá o cozinheiro, que ainda teve tempo para servir um chá a Mondlane.
Eduardo Mondlane foi o primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Nasceu em N`wajahani (Manjacaze, província de Gaza), a 20/06/1920. Era o quarto dos 16 filhos de um chefe tradicional moçambicano e trabalhou como pastor de gado até a idade de 12 anos. Falava na perfeição o dialeto local Shangana. Frequentou diversas escolas primárias até se matricular no colégio de uma missão presbiteriana suíça situada próxima de Manjacaze.
Ainda jovem, foi enviado para Lourenço Marques (Maputo) como catequista e pastor da Missão Suíça. A cidade grande alargou-lhe os horizontes e permitiu-lhe entender melhor o fosso existente entre brancos e negros.
Depois de trabalhar durante algum tempo na capital, Eduardo Mondlane mudou-se para a Missão Metodista Episcopal, na província de Inhambane. Ali, os missionários procuravam aproximar-se mais dos jovens negros por meio da introdução de métodos inovadores de educação informal.
Em 1944, Mondlane obteve uma bolsa da Igreja Metodista e viajou para a África do Sul, onde prosseguiu os estudos secundários na Escola da Missão de Lemana, no norte do Transvaal. Enquanto estudava, continuou a trabalhar como catequista.
Permaneceu em Lemana até ao final de 1948, altura em que regressou a Moçambique. Por essa altura, ajudou a fundar o Núcleo de Estudantes Secundários Africanos de Moçambique (NESAM), tendo sido escolhido para primeiro presidente da nova organização. Terminado o ensino secundário, passou um ano na Escola de Trabalho Social Jan H. Hofmeyr, antes de se matricular em Antropologia e Sociologia na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo. Foi expulso pouco tempo depois, quando subiu ao poder o Partido Nacional Sul-africano, que instituiu o apartheid.
Mondlane regressou a Moçambique e voltou a trabalhar como catequista nas missões protestantes. Conseguiu uma bolsa de estudos e, em 1950, matriculou-se no curso de Ciências Históricas e Filosóficas da Universidade de Lisboa. Teve oportunidade de contactar a Casa dos Estudantes do Império e de conhecer Agostinho Neto e Amílcar Cabral.
Durante a estadia na capital portuguesa Eduardo Mondlane terá mostrado menos interesse pelo tema da Negritude que os seus colegas provenientes de outras colónias portuguesas.
A seu pedido, mudou-se no ano seguinte para os Estados Unidos e, aos 31 anos, foi admitido no Oberlin College, no Ohio, com uma bolsa de estudos do fundo Phelps Stokes, de Nova Iorque. Em 1953, obteve o bacharelado em Antropologia e Sociologia.
Era um aluno inteligente, aplicado e ambicioso. Prosseguiu os estudos em Illinois, na Northwestern University de Evanston, onde obteve um mestrado. “MA, Mestre de Artes” é um título académico em Ciências Humanas, imediatamente superior a B.Sc. (Bacharel em Ciências). A seguir, conseguiu na Universidade de Harvard um PhD em Sociologia. O título PhD equivale ao doutoramento.
Casou com Janet Rae Johnson, uma americana branca de origem sueca que morava nos subúrbios de Chicago e conhecera num grupo que se dedicava a atividades religiosas.
Mondlane ensinou depois História e Sociologia na Universidade de Syracuse, em Nova Iorque. Foi contatado por Adriano Moreira, mas não se entendeu com ele. Enquanto o ministro português do Ultramar o convidava para colaborar com a administração colonial de Lisboa, Eduardo Mondlane procurava persuadir Moreira a aceitar a independência das colónias que Portugal detinha em África.
Mondlane trabalhou ainda durante algum tempo para as Nações Unidas, como investigador da História recente dos países africanos.
Em 1961, viajou até Moçambique, a convite da Missão Suíça.
Demorou-se lá várias semanas e estabeleceu contactos com diversos dirigentes nacionalistas. Durante a estadia, foi apoiado pela Missão Metodista Episcopal. Os missionários proporcionaram-lhe alojamento e, para lhe facilitar as deslocações, colocaram à sua disposição um automóvel com motorista.
No final da visita, Eduardo Mondlane apresentou um relatório intitulado “Present Conditions in Mozambique”, destinado ao Departamento de Estado dos EUA. O relatório registou o crescimento dos sentimentos antiportugueses em Moçambique e concluiu pela necessidade de procurar uma forma de negociação pacífica entre Moçambique e Portugal, mediada pelos EUA ou pela ONU.
Ao todo, Eduardo Mondlane passou cerca de 11 anos nos EUA. A dada altura, fez campanha a favor de Moçambique, nesse país e na Europa. Pessoas que assistiram às suas palestras descrevem-no como encantador, polido, bem-educado, bem-falante e de boas maneiras. Aparentava uma relação tranquila com as suas raízes e com a sua identidade africana.
A estadia de Mondlane no país natal representou um ponto de viragem na sua vida. Até a década de 60, não lhe eram conhecidos discursos de cariz nacionalista ou anticolonial. A partir dessa altura, o professor universitário assumiu decididamente a luta pela independência do seu povo.
Existiam três organizações que pretendiam lançar em Moçambique a luta armada de libertação nacional: a UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique), a MANU (União Nacional Africana de Moçambique) e a UNAMI (União Nacional Africana para Moçambique Independente), com bases sociais e étnicas próprias e sediadas em países diferentes. Os três movimentos pareciam estar à espera de um líder credível e não deixaram fugir a oportunidade. Conseguiram unir-se sob a direção de Eduardo Mondlane. A fusão foi apadrinhada pelo presidente da Tanzânia, Julius Nyerere e a FRELIMO nasceu em 25 de junho de 1962. Mondlane foi eleito presidente, tendo Uria Simango como vice-presidente. A nova organização sediou-se em Dar-es-Salam.
A intransigência do governo de Salazar quanto à autodeterminação das colónias portuguesas não deixou aos nacionalistas africanos outro caminho que não fosse o da luta armada.
Foram precisos apoios externos. Os primeiros guerrilheiros, entre os quais se contava Samora Machel, foram preparados na Argélia. Os seguintes não precisaram de se deslocar para tão longe: a vizinha Tanzânia deu-lhes hospitalidade e proporcionou-lhes condições de treino.
A guerra começou em setembro de 1964, com o ataque de um grupo reduzido de guerrilheiros ao posto administrativo de Chai, na província de Cabo Delgado, a uma centena de quilómetros da fronteira com a Tanzânia. No entanto, um relatório militar português dá conta de ações violentas ocorridas já em agosto do mesmo ano. Por essa altura, foi assassinado um padre da Missão de Nangolo. Teria sido confundido com um chefe de posto. Estariam em causa iniciativas de guerrilheiros da MANU e da UDENAMO. As tropas portuguesas sofreram as primeiras baixas em 16 de novembro desse ano.
A maior parte das ações militares teve lugar nos distritos do norte do país. A luta armada foi apoiada pela União Soviética, por diversos países ocidentais e por muitos estados africanos. Os guerrilheiros estavam bem armados e cada vez mais bem organizados.
A estratégia da FRELIMO não se limitava às iniciativas militares. Foi organizada uma rede incipiente de comércio para apoiar a população e a guerrilha.
Traduzindo a sua origem como frente de união de vários movimentos com ideologias diversas, a FRELIMO incorporava tendências diferentes. A maioria do Comité Central, com Marcelino dos Santos, Samora Machel e Joaquim Chissano e o próprio presidente, pretendia construir um estado socialista. Outros, como Uria Simango, consideravam preferível a instituição no país novo de um sistema multipartidário.
A luta pela independência não decorreu sem incidentes internos. Um dos opositores à direção da FRELIMO era Lázaro N`Kavandame, secretário da província de Cabo Delgado, uma das primeiras zonas “libertadas”. De etnia maconde, não falava português. Considerava que a maioria dos cargos importantes no Movimento era ocupada por gente vinda do centro e do sul, com condições socioeconômicas mais favoráveis. Na sua opinião, as áreas macondes libertadas deveriam ser administradas pela população local. N`Kavandame foi acusado de desviar em proveito próprio dinheiro do Partido. Acabou por desertar.
Por outro lado, alguns militantes da FRELIMO detestavam Marcelino dos Santos por ele ser mulato e, portanto, “não moçambicano”.
Outro dissidente precoce foi Mateus Gwengere. Era padre católico e ensinava no Seminário da Beira. Juntou-se à FRELIMO no final de 1967 e arrastou para o movimento de libertação um número considerável de jovens provenientes das regiões norte e centro de Moçambique. Passou a dar aulas no Instituto Moçambicano de Dar-es-Salam e fez pouco para passar despercebido. Considerava que o ensino deveria ser ministrado em inglês e não em português e que os quatro professores portugueses do Instituto deveriam ser despedidos. No seu entendimento, até a diretora branca, Janet Mondlane, deveria ser demitida. Gwengere protestou também contra a prática de enviarem quase todos os rapazes para a guerra, em vez de os mandarem estudar para poderem ser quadros políticos da futura nação independente.
Em maio de 1968, ocorreu um motim (alegadamente inspirado pelo padre Mateus Gwengere) e a sede da FRELIMO em Dar-es-Salam foi invadida. Do conflito, resultaram vários feridos e um morto.
Ainda nesse mês, ocorreu uma cisão tribalista, com os macondes a exigirem a independência imediata de Cabo Delgado.
Ao referir N`Kavandame e Gwengere, deve lembrar-se que são os vencedores que escrevem a História e que existem versões diversas sobre os papéis destes homens no processo revolucionário moçambicano.
O II Congresso da FRELIMO foi realizado em julho de 1968, no distrito de Madjedje (Niassa). Reelegeu Mondlane e Simango e decidiram continuar a luta pela «independência total e completa» de Moçambique e não apenas de parte do país. Aprovou também o projeto socialista para a nação vindoura.
Os ventos da História sopravam contra o colonialismo. A luta armada propagou-se a boa parte do território moçambicano.
Ocorreram mudanças nos comandos militares e nas táticas de combate utilizadas pelos portugueses, mas os resultados mostraram-se limitados. A situação das tropas coloniais no terreno foi-se deteriorando. O desagrado cresceu entre a população branca do território. Em janeiro de 1974, os habitantes da Beira e de Vila Pery manifestaram-se contra a fragilidade das forças militares portuguesas. Foram os chamados “aconcimentos da Beira”. O 25 de Abril já estava a espreitar.
Pouco antes da morte de Mondlane, a FRELIMO contava com perto de sete mil combatentes e controlava algumas áreas rurais do centro e do norte de Moçambique. Os militares portugueses a combater no território seriam mais de 50 mil.
À data do assassinato de Eduardo Mondlane, Joaquim Chissano era o secretário particular do presidente e o director dos serviços de segurança da FRELIMO. Era ele quem abria habitualmente a correspondência. Não o fez naquela manhã.
A encomenda foi preparada pela polícia política portuguesa, a PIDE. Existem informações cruzadas que permitem afirmar com alguma segurança que o homem que fabricou e enviou a bomba que faria Mondlane em pedaços foi o agente da PIDE Casimiro Monteiro, de Lourenço Marques (Maputo).
A PIDE foi ajudada, dentro da FRELIMO, por Lázaro N`Kavandame e por Silvedo Nungu. Estas informações, contudo, não provêm de fontes seguras. Nungu foi preso quando tentou fugir para Moçambique. Tinha sido secretário administrativo do Comité Central e membro da Direção do Departamento de Informação e Propaganda da FRELIMO. Morreu na prisão, no seguimento de uma greve de fome.
A espionagem italiana do Servizio Informazione Difesa (SDI) atribuiu o crime a uma rede envolvendo a PIDE, a AGINTERPRESS, o engenheiro Jorge Jardim, Uria Simango e Robert Leroy, espião em Dar-es-Salam. Estaria em causa o braço português da Gladio. A alegação da eventual participação de Uria Simango no atentado nunca foi levada a sério. Foi, no entanto, recuperada mais tarde, quando a FRELIMO decidiu executar o seu primeiro vice-presidente e o forçou a uma confissão fantasiada.
Segundo o testemunho do chefe de redação do jornal Notícias da Beira, o engenheiro Jorge Jardim compareceu na redação no dia do atentado (facto, ao que parece, inédito) e aguardou várias horas pela chegada duma «importante notícia».
Desconhece-se quem transmitiu à PIDE a informação de interesse de Eduardo Mondlane pela tradução francesa das obras de Plekhanov. O «bufo» teria de ser próximo do presidente da FRELIMO.
Sabe-se que a maçonaria portuguesa tentou recrutar «maçons pretos» em Moçambique. A «Opus Dei», ligada ao fundamentalismo católico, fez também o que pôde para se aproximar dos círculos moçambicanos do Poder. Não há dados que sugiram o envolvimento de qualquer destas organizações no homicídio de Mondlane. Curiosamente, as declarações de Silva Cunha, antigo ministro de Salazar e de Caetano, e de António Vaz, dirigente da PIDE em Moçambique, coincidem no essencial: a eliminação do líder da FRELIMO não era do interesse do governo português. Mondlane seria o «menos mau» e certamente «melhor» que Samora Machel. Nem sempre as orientações políticas e a programação dos serviços secretos coincidem no lugar e no tempo.
Considero curioso o interesse de Mondlane, de reconhecida formação americana, pelo pai ideológico do marxismo russo. Mais velho que Lenine, Plekhanov ainda conheceu pessoalmente Frederick Engels. Opôs-se aos bolcheviques (chegou a chamar a Lenine «alquimista da revolução») e abandonou a Rússia após a Revolução de Outubro. Continuou a escrever e a pensar. Considerava o marxismo uma doutrina mais materialista que idealista e achava que a Rússia teria de passar por um estado capitalista de desenvolvimento antes de se tornar socialista.
A morte de Mondlane afastou a FRELIMO dos americanos, aproximando-a da China. A FRELIMO rejeitou qualquer possibilidade de multipartidarismo em Moçambique. Uria Simango, Joana Simeão e o padre Gwengere terão sido executados em Metelela, no Niassa, entre 1977 e 1984.
Não é provável que Eduardo Mondlane tenha chegado a conhecer Joana Simeão. Pelo menos, não recolhi qualquer indicação nesse sentido. No entanto, as suas linhas de pensamento não terão estado muito afastadas. Joana foi dirigente da FRELIMO e da COREMO, mas afastou-se das duas organizações. Apelou à «constituição de uma frente interna formada por elementos lúcidos, calmos e frios das comunidades étnicas presentes em Moçambique (negra, mestiça, branca e asiática)» que seria «a voz autêntica vinda do interior de Moçambique e que imporia ao exterior a solução nossa a problemas nossos.» Fundou a Frente Comum de Moçambique (FRECOMO), com o objectivo de aglutinar as forças políticas não-alinhadas com a FRELIMO. Assumiu-se como pacifista e aceitou a política de «autonomia progressiva» delineada por Marcelo Caetano para a independência das colónias portuguesas. Foi ainda vice-presidente do GUMO (Grupo Unido de Moçambique), organização nascida na Beira por iniciativa do advogado negro Máximo Dias. O GUMO acabaria por se esvaziar, com a aproximação de Máximo Dias à FRELIMO.
Após o 25 de Abril, a evolução política em Moçambique não favoreceu o pluralismo democrático. O GUMO pouco poderia durar. Samora Machel e Marcelino dos Santos não perdoaram a Joana Simeão, da etnia Macua (o maior grupo étnico de Moçambique que, curiosamente, nunca apoiou uma guerrilha) a intenção de constituir uma política alternativa à FRELIMO.
O governo português saiu enlameado desta questão. Foram oficiais portugueses do MFA que, a 26 de outubro de 1974, se dirigiram à residência de Ahmed Haider, na cidade da Beira e prenderam Joana Simeão. O MFA actuou a pedido do Governo de Transição de Moçambique, chefiado por Joaquim Chissano. Joana foi transferida para Lourenço Marques (Maputo) e encarcerada na antiga prisão da PIDE, na Machava, então dirigida pelo Batalhão de Cavalaria 8424 das Forças Armadas Portuguesas.
Joana Simeão apelou para o almirante Vítor Crespo, pedindo justiça. O Alto-comissário português achou preferível entregar a detida ao Governo de Transição de Moçambique. Joana foi eliminada.
Encerrado o drama, teve início a comédia.
As autoridades moçambicanas nunca reconheceram a sua execução extrajudicial. Oficialmente, Joana ausentara-se para «parte incerta».
O seu segundo marido, Francisco Joaquim Manuel, acabou por se ligar a outra mulher e, quase trinta anos após a morte de Joana, quis casar de novo. Reclamou a situação legal de viúvo, mas a certidão de óbito de sua esposa não existia. Pelo menos, não foi encontrada. Legalmente, Joana Simeão continuava viva.
Francisco Manuel foi aconselhado a pedir o divórcio, com a alegação de que Joana abandonara o lar. Depois de perseverar por vários anos, acabou por aceitar o conselho. O processo não foi simples. O Ministério Público do Estado que a assassinou encarregou-se oficialmente de sua defesa e levou a tarefa a sério. Afirmou representar uma «ausente» e não uma mulher «em parte incerta», exigindo a absolvição da ré pela acusação de abandono do lar.
No dia 24 de abril de 2006, o Tribunal Judicial da Província de Inhambane, fez publicar no diário «Notícias» uma intimação para a «reacionária» se apresentar no prazo de 20 dias. A notificação foi assinada pelo Presidente do Tribunal, José António Cândido Sampaio, na «Ação Ordinária Declarativa de Divórcio Litigioso nº 19/05».
A intimação não foi transmitida por mesa de pé de galo e Joana Simeão não se apresentou. Após um processo que durou cerca de três anos, o viúvo Francisco Joaquim Manuel conseguiu o estatuto de «divorciado».
Falemos agora de Uria Timóteo Simango. Nasceu em 1926, sendo, portanto, seis anos mais novo que Mondlane. Tem de comum com Eduardo Mondlane o facto de ter sido protegido pelas missões protestantes. Simango foi mesmo pastor presbiteriano. Membro fundador da FRELIMO, foi seu vice-presidente até à morte de Mondlane em fevereiro de 1969, tendo então assumido a presidência do movimento.
O assassinato do presidente desencadeou uma luta pelo poder. A lealdade de Simango à FRELIMO foi questionada e, dois meses mais tarde, Uria Simango viu-se obrigado a partilhar o mando com dois elementos marxistas radicais: Samora Machel e Marcelino dos Santos (personagem que não teria sido do agrado de Mondlane).
O triunvirato (Conselho de Presidência) não poderia durar. Depois de ter publicado um documento muito crítico sobre a situação na FRELIMO, Simango foi demitido e expulso do Comité Central do Movimento. As objeções de Uria Simango respeitavam principalmente ao Instituto Moçambicano e à situação na província de Cabo Delgado, onde, no ano de 1968, dirigentes políticos locais contestavam a liderança de Eduardo Mondlane. Procuraram mesmo impedir a entrada no seu território de qualquer dirigente da FRELIMO, o que contribuiu para a morte de Kankhame, vice-chefe do Estado-maior do partido. Uria Simango concluiu a sua exposição declarando que as tensões existentes desde sempre na FRELIMO tinham permitido a formação de um grupo de dirigentes maioritariamente originários do sul que tomavam as decisões sem reunir o Comité Central. Deixara de haver debates francos dos problemas e reuniões regulares dos Comités Executivo e Central.
Alguns dos apoiantes de Simango foram presos pela polícia da Tanzânia.
O caminho ficou livre para Samora e Marcelino. A questão de qual dos dois deveria dirigir não se poderia colocar, pois Samora era negro e Marcelino dos Santos tinham uma pele bastante clara, o que era determinante num país da África subsaariana.
Em abril de 1970, Simango exilou-se no Egito, onde se juntou a outros dissidentes da FRELIMO para fundar o COREMO, movimento que nunca conheceria grande implantação. Em maio do mesmo ano, o Comité Central revogou o Conselho de Presidência. Samora Machel foi eleito presidente, enquanto Marcelino dos Santos ocupava a vice-presidência. Os cargos eram interinos, devendo manter-se até à realização do Congresso seguinte, o que só aconteceu em 1977, já depois da independência.
Uria Simango regressaria a Moçambique depois da revolução do 25 de Abril em Lisboa. Fundou então o Partido de Coligação Nacional (PCN), a que aderiram várias figuras conhecidas como Paulo Gumane, Joana Simeão e o padre Mateus Gwengere.
A FRELIMO afirmou-se como partido único e herdou o poder do governo português. Quando Moçambique se tornou independente, Samora Machel tornou-se presidente, sendo a vice-presidência ocupada por Marcelino dos Santos, enquanto Graça Machel assumiu a pasta da Educação e Joaquim Chissano se ocupava dos Negócios Estrangeiros. Os dirigentes do PCN foram encarcerados. Nenhum deles sairia vivo da prisão. Terão sido todos executados entre 1977 e 1980, desconhecendo-se a localização de seus restos mortais. Celina, esposa de Simango, foi liquidada depois de 1981.
Uria Simango foi levado para o Centro de Reabilitação e Reeducação de Nachingewa, situado na Tanzânia. Em maio de 1975, foi forçado a fazer uma demorada confissão pública em que se assumia como culpado de uma série de crimes contrarrevolucionários inverosímeis, incluindo a participação no assassinato de Mondlane. Segundo Barnabé Lucas Nkomo, que escreveu o livro «Uria Simango – Um Homem, Uma Causa», Simango e Joana Simeão não terão sido fuzilados, mas queimados vivos com gasolina, juntamente com outros «reacionários».
Durante muitos anos, a FRELIMO recusou rconhecer as execuções extrajudiciais dos seus adversários políticos.
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