Eram horas de almoço. Martinez procurava mesa num pequeno restaurante do Campo de Santana quando avistou o sargento Madruga, que comia sozinho. Aproximou-se.
– O meu amigo permite que lhe faça companhia?
– Com muito gosto. Sente-se. O cozido não está mau. Que novidades traz?
– Poucas. Fala-se muito, mas ninguém se mexe. Não é como no seu tempo...
Madruga fitou o jovem colega com ar sério.
– O meu tempo é este. Não tenho mais nenhum…
– Peço desculpa. O dia de hoje é tanto meu como seu. Contudo, o senhor viveu mais anos e ganhou outra experiência. Os de 1891 portaram-se melhor do que nós. Como calcula, fala-se muito do 31 de Janeiro. Nunca ouvi o relato da boca de alguém que estivesse lá. Ando há tempos para lhe pedir que me conte como foi esse dia.
Era o tema favorito de Madruga. Embora tivesse acabado mal, fora a manhã mais bonita da sua existência. Meteu na boca a última garfada de carne, limpou os lábios ao guardanapo, bebeu mais um gole de vinho tinto, e começou.
– Nós fomos para a revolução prontos para matar e morrer, mas aquilo quase não passou de um desfile. Às duas da manhã, saímos para a rua com dois regimentos. Estava nevoeiro e fazia frio. Eu estava colocado em Caçadores 9, que tinha o quartel na Rua de S. Bento. Juntámo-nos no Campo de Santo Ovídio[1] com o pessoal de Infantaria 10 e com muitos soldados da Guarda-Fiscal, uns a pé, outros a cavalo. Os sargentos eram unidos e estavam do nosso lado, mas poucos oficiais nos quiseram acompanhar. Vieram apenas o capitão Leitão, o tenente Coelho e o alferes Malheiro.
– Hoje em dia é a mesma coisa. Hão-de ser os sargentos a fazer a República!
Falavam sem se preocuparem muito com os ouvidos dos vizinhos. Era tudo gente do bairro.
– Sempre fomos uma classe à parte. O Exército, sem nós, não é nada...
– Mas não nos dá valor!
– A maior parte dos quartéis fica dentro das cidades. As praças vêm e vão, mas os sargentos ficam. Conhecem a gente das redondezas. Nós e os civis sempre nos sentimos chegados uns aos outros.
– Lemos os mesmos jornais...
– Discutimos política com eles...
– Bem, voltemos ao Porto... Na madrugada do dia 31, houve oficiais talassas que conseguiram impedir o Regimento de Infantaria 18 de se juntar a nós. No entanto, alguns chefes militares não tinham ideias muito claras. Nem queriam estar contra Deus nem contra o Diabo.
– É como hoje. Há muito boa gente que vai esperar pelo dia a seguir à revolta para tomar posição sem se comprometer.
– Houve oficiais superiores que nem souberam, até ser dia, que estávamos na rua. Bom, quando nos pusemos em marcha, íamos cheios de ilusões. Julgávamos que era só chegar fogo a palha seca. Deitávamos os primeiros foguetes e a festa começava...
– Não foi o que aconteceu...
– Não, embora tivéssemos chegado a dispor de superioridade militar. O Governo ficou com a Guarda Municipal e com a artilharia da Foz e da Serra do Pilar. O destacamento de Cavalaria 6 andava por ali, sem saber para que lado cair. Contávamos que bastasse ter os regimentos na rua para que surgissem generais ou coronéis dispostos a comandar-nos. Não apareceram. Nem os civis que se juntaram a nós foram tantos como esperávamos.
– E o Partido Republicano?
– Andava muito dividido e teve pouco a ver com a revolução.
Interromperam a conversa porque entrara um desconhecido na sala e tomara assento em mesa próxima.
– Cuidado, que pode ser bufo, avisou Martinez.
Até o homem sair, falaram de trivialidades. Depois voltaram às recordações do 31 de Janeiro.
– Como é que passou a manhã?
– Não se combatia. Esperava-se. A Guarda Municipal retirou quando viu chegar o Regimento de Infantaria 10, mas voltou a ganhar ânimo e foi rodeando as nossas tropas em Santo Ovídio. O subchefe do Estado-Maior da guarnição do Porto, tenente-coronel Magalhães, atreveu-se a entrar a cavalo no Campo, sem que alguém o impedisse. Quis falar com o capitão Leitão. Levaram-no junto dele. Magalhães tentou convencer o capitão a desistir da revolta, mas o homem era teimoso e estava decidido a seguir em frente.
De manhã cedo, um grupo de estudantes veio juntar-se a nós, dando vivas à República. A malta animou-se. Esperava-se que o Regimento de Infantaria 18 acabasse por aderir ao levantamento. As praças lá permitiram que os civis arrombassem uma porta. Santos Cardoso, um fala-barato em que poucos revoltosos confiavam, entrou no quartel acompanhado do actor Miguel Verdial e começou a arengar aos oficias. A acreditar no que o homem dizia, o rei já tinha fugido para um navio e navegava àquela hora para Inglaterra. Fora proclamada a República! O governo ameaçava expulsar do Exército os oficiais que se lhe opusessem.
A palestra surtiu algum efeito e a confusão instalou-se no Regimento.
Entretanto, a banda de Infantaria 10 desceu a Rua de Almada, a tocar “A portuguesa”. Nós e os civis íamos atrás. Não estávamos alinhados para o combate, mas para um desfile. Ocupámos a Praça de D. Pedro por volta das seis da manhã. A nossa bandeira foi hasteada na Câmara Municipal do Porto. Houve discursos. Ninguém os ouviu, mas não fazia mal. Era a República! Tínhamos governo e tudo!
As horas passaram. A tropa tinha fome. Estavam ali 600 homens, e pouco pão se pôde arranjar. Fui conversando com os colegas. Demos conta que não havia propriamente um plano militar e que nenhum ponto estratégico tinha sido ainda tomado. Começámos a preocupar-nos.
Os nossos oficiais resolveram então formar uma coluna. Subimos a Rua de Santo António[2] em direcção à Batalha. A banda pôs-se outra vez à frente, a dar música ao povo.
A Guarda Municipal tinha-se posicionado no adro da Igreja de Santo Ildefonso. Já não estava sozinha. Do lado do Teatro de S. João, alinhava o destacamento de Cavalaria 6, que acabara por se inclinar para o campo dos talassas. Do outro lado, havia uma centena de praças da Guarda-Fiscal.
– A Guarda-Fiscal estava dividida...
– Sim! Metade alinhou connosco e metade com o Governo. Os municipais, não. Eram quase todos monárquicos. A nossa coluna não pretendia lutar, mas sim chamar para o nosso lado o resto da tropa. Acreditávamos que tanto a população como os soldados queriam mesmo a República. A essa hora, ainda dispúnhamos de vantagem em termos de efectivos. Dificilmente a Guarda Municipal seria capaz de enfrentar dois regimentos do Exército. A ser um ataque, estaria a ser conduzido de forma idiota. Marchávamos em coluna de quatro e subíamos uma rua íngreme, direitinhos às balas do inimigo. Os civis iam-se misturando connosco.
Alguns populares correram à frente da banda e insultaram os soldados da Municipal. Os gajos estavam cheios de medo e dispararam alguns tiros. Foi a debandada. Os civis correram rua abaixo pelo meio da formação, desorganizando completamente a nossa coluna. Alguns militares fugiram também, abandonando as armas. Quando conseguimos reunir de novo a tropa, éramos apenas 150 a defender a República. Retirámos para os Paços do Concelho.
Aos poucos, as tropas governamentais foram aparecendo. As peças trazidas da Serra do Pilar foram apontadas para nós. Era impossível oferecer resistência. Por volta das dez e meia da manhã, acabámos por desistir. A República durara três horas.
– Foi uma oportunidade perdida...
– Hoje, nem disso estou certo. Mesmo que ganhássemos o Porto, que aconteceria com o resto do País, especialmente com Lisboa? Aquilo não passou de um sonho de rapazes generosos. Sob o ponto de vista militar, que era o determinante, a revolução foi muito mal preparada.
– A ver se da próxima fazemos melhor...
– Vamos brindar a isso! – Disse Madruga. Senhor Hernâni! Traga dois copinhos daquela sua aguardente especial!
Depois de beberem, despediram-se. Pairava no ar o aroma a conspiração. Podia ser que a República nem tardasse.
[1] Hoje Praça da República.
[2] Actual Rua 31 de Janeiro. O nome antigo continua a ser usado.
– O meu amigo permite que lhe faça companhia?
– Com muito gosto. Sente-se. O cozido não está mau. Que novidades traz?
– Poucas. Fala-se muito, mas ninguém se mexe. Não é como no seu tempo...
Madruga fitou o jovem colega com ar sério.
– O meu tempo é este. Não tenho mais nenhum…
– Peço desculpa. O dia de hoje é tanto meu como seu. Contudo, o senhor viveu mais anos e ganhou outra experiência. Os de 1891 portaram-se melhor do que nós. Como calcula, fala-se muito do 31 de Janeiro. Nunca ouvi o relato da boca de alguém que estivesse lá. Ando há tempos para lhe pedir que me conte como foi esse dia.
Era o tema favorito de Madruga. Embora tivesse acabado mal, fora a manhã mais bonita da sua existência. Meteu na boca a última garfada de carne, limpou os lábios ao guardanapo, bebeu mais um gole de vinho tinto, e começou.
– Nós fomos para a revolução prontos para matar e morrer, mas aquilo quase não passou de um desfile. Às duas da manhã, saímos para a rua com dois regimentos. Estava nevoeiro e fazia frio. Eu estava colocado em Caçadores 9, que tinha o quartel na Rua de S. Bento. Juntámo-nos no Campo de Santo Ovídio[1] com o pessoal de Infantaria 10 e com muitos soldados da Guarda-Fiscal, uns a pé, outros a cavalo. Os sargentos eram unidos e estavam do nosso lado, mas poucos oficiais nos quiseram acompanhar. Vieram apenas o capitão Leitão, o tenente Coelho e o alferes Malheiro.
– Hoje em dia é a mesma coisa. Hão-de ser os sargentos a fazer a República!
Falavam sem se preocuparem muito com os ouvidos dos vizinhos. Era tudo gente do bairro.
– Sempre fomos uma classe à parte. O Exército, sem nós, não é nada...
– Mas não nos dá valor!
– A maior parte dos quartéis fica dentro das cidades. As praças vêm e vão, mas os sargentos ficam. Conhecem a gente das redondezas. Nós e os civis sempre nos sentimos chegados uns aos outros.
– Lemos os mesmos jornais...
– Discutimos política com eles...
– Bem, voltemos ao Porto... Na madrugada do dia 31, houve oficiais talassas que conseguiram impedir o Regimento de Infantaria 18 de se juntar a nós. No entanto, alguns chefes militares não tinham ideias muito claras. Nem queriam estar contra Deus nem contra o Diabo.
– É como hoje. Há muito boa gente que vai esperar pelo dia a seguir à revolta para tomar posição sem se comprometer.
– Houve oficiais superiores que nem souberam, até ser dia, que estávamos na rua. Bom, quando nos pusemos em marcha, íamos cheios de ilusões. Julgávamos que era só chegar fogo a palha seca. Deitávamos os primeiros foguetes e a festa começava...
– Não foi o que aconteceu...
– Não, embora tivéssemos chegado a dispor de superioridade militar. O Governo ficou com a Guarda Municipal e com a artilharia da Foz e da Serra do Pilar. O destacamento de Cavalaria 6 andava por ali, sem saber para que lado cair. Contávamos que bastasse ter os regimentos na rua para que surgissem generais ou coronéis dispostos a comandar-nos. Não apareceram. Nem os civis que se juntaram a nós foram tantos como esperávamos.
– E o Partido Republicano?
– Andava muito dividido e teve pouco a ver com a revolução.
Interromperam a conversa porque entrara um desconhecido na sala e tomara assento em mesa próxima.
– Cuidado, que pode ser bufo, avisou Martinez.
Até o homem sair, falaram de trivialidades. Depois voltaram às recordações do 31 de Janeiro.
– Como é que passou a manhã?
– Não se combatia. Esperava-se. A Guarda Municipal retirou quando viu chegar o Regimento de Infantaria 10, mas voltou a ganhar ânimo e foi rodeando as nossas tropas em Santo Ovídio. O subchefe do Estado-Maior da guarnição do Porto, tenente-coronel Magalhães, atreveu-se a entrar a cavalo no Campo, sem que alguém o impedisse. Quis falar com o capitão Leitão. Levaram-no junto dele. Magalhães tentou convencer o capitão a desistir da revolta, mas o homem era teimoso e estava decidido a seguir em frente.
De manhã cedo, um grupo de estudantes veio juntar-se a nós, dando vivas à República. A malta animou-se. Esperava-se que o Regimento de Infantaria 18 acabasse por aderir ao levantamento. As praças lá permitiram que os civis arrombassem uma porta. Santos Cardoso, um fala-barato em que poucos revoltosos confiavam, entrou no quartel acompanhado do actor Miguel Verdial e começou a arengar aos oficias. A acreditar no que o homem dizia, o rei já tinha fugido para um navio e navegava àquela hora para Inglaterra. Fora proclamada a República! O governo ameaçava expulsar do Exército os oficiais que se lhe opusessem.
A palestra surtiu algum efeito e a confusão instalou-se no Regimento.
Entretanto, a banda de Infantaria 10 desceu a Rua de Almada, a tocar “A portuguesa”. Nós e os civis íamos atrás. Não estávamos alinhados para o combate, mas para um desfile. Ocupámos a Praça de D. Pedro por volta das seis da manhã. A nossa bandeira foi hasteada na Câmara Municipal do Porto. Houve discursos. Ninguém os ouviu, mas não fazia mal. Era a República! Tínhamos governo e tudo!
As horas passaram. A tropa tinha fome. Estavam ali 600 homens, e pouco pão se pôde arranjar. Fui conversando com os colegas. Demos conta que não havia propriamente um plano militar e que nenhum ponto estratégico tinha sido ainda tomado. Começámos a preocupar-nos.
Os nossos oficiais resolveram então formar uma coluna. Subimos a Rua de Santo António[2] em direcção à Batalha. A banda pôs-se outra vez à frente, a dar música ao povo.
A Guarda Municipal tinha-se posicionado no adro da Igreja de Santo Ildefonso. Já não estava sozinha. Do lado do Teatro de S. João, alinhava o destacamento de Cavalaria 6, que acabara por se inclinar para o campo dos talassas. Do outro lado, havia uma centena de praças da Guarda-Fiscal.
– A Guarda-Fiscal estava dividida...
– Sim! Metade alinhou connosco e metade com o Governo. Os municipais, não. Eram quase todos monárquicos. A nossa coluna não pretendia lutar, mas sim chamar para o nosso lado o resto da tropa. Acreditávamos que tanto a população como os soldados queriam mesmo a República. A essa hora, ainda dispúnhamos de vantagem em termos de efectivos. Dificilmente a Guarda Municipal seria capaz de enfrentar dois regimentos do Exército. A ser um ataque, estaria a ser conduzido de forma idiota. Marchávamos em coluna de quatro e subíamos uma rua íngreme, direitinhos às balas do inimigo. Os civis iam-se misturando connosco.
Alguns populares correram à frente da banda e insultaram os soldados da Municipal. Os gajos estavam cheios de medo e dispararam alguns tiros. Foi a debandada. Os civis correram rua abaixo pelo meio da formação, desorganizando completamente a nossa coluna. Alguns militares fugiram também, abandonando as armas. Quando conseguimos reunir de novo a tropa, éramos apenas 150 a defender a República. Retirámos para os Paços do Concelho.
Aos poucos, as tropas governamentais foram aparecendo. As peças trazidas da Serra do Pilar foram apontadas para nós. Era impossível oferecer resistência. Por volta das dez e meia da manhã, acabámos por desistir. A República durara três horas.
– Foi uma oportunidade perdida...
– Hoje, nem disso estou certo. Mesmo que ganhássemos o Porto, que aconteceria com o resto do País, especialmente com Lisboa? Aquilo não passou de um sonho de rapazes generosos. Sob o ponto de vista militar, que era o determinante, a revolução foi muito mal preparada.
– A ver se da próxima fazemos melhor...
– Vamos brindar a isso! – Disse Madruga. Senhor Hernâni! Traga dois copinhos daquela sua aguardente especial!
Depois de beberem, despediram-se. Pairava no ar o aroma a conspiração. Podia ser que a República nem tardasse.
[1] Hoje Praça da República.
[2] Actual Rua 31 de Janeiro. O nome antigo continua a ser usado.
Excerto do romance 1910 (Editorial Cristo Negro Lisboa, 2009)
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