DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

POETAS DE QUEM EU GOSTO


PABLO NERUDA



Pablo Neruda é pseudónimo. Ricardo Basoalto nasceu em 1904 em Parral, no Chile. Seguiu a carreira diplomática e foi cônsul em Rangun. Conheceu, em Buenos Aires, Garcia Lorca e, em Barcelona, Rafael Alberti. Em 1953 fez construir, em Santiago do Chile, a sua casa depois chamada “La Chascona”, para se encontrar com a sua amante Matilde, a quem dedicou “Os versos do Capitão”.
Marxista e amigo de Salvatore Allende, Neruda faleceu em Santiago em 1973, de cancro da próstata, pouco depois da queda e morte de Allende. Segundo Isabel Allende, terá antes morrido de tristeza. Tinha-lhe sido atribuído, dois anos antes, o Prémio Nobel de Literatura.






OS VERSOS DO CAPITÃO

Este amor nasceu num agosto dum ano qualquer, durante as temporadas que eu fazia, como artista, pelas localidades da fronteira franco-espanhola.
Ele chegava da guerra de Espanha. Não vinha vencido. Era do partido da Pasionaria, alimentava grandes ilusões e esperanças para o seu pequeno e distante país, na América.
Nunca soube se o seu verdadeiro nome era Martínez, Ramírez ou Sánchez. Eu chamava-lhe simplesmente Capitão.
Havia em mim um passado que ele não conhecia. Tinha ciúmes e acessos de fúria incontíveis. Não era capaz de amar de outra maneira.
Escrevia versos que me faziam subir ao céu e baixar ao próprio inferno, com a crueza das suas palavras, que me queimavam como brasas.

Rosario de la Cerda


O VENTO NA ILHA

O vento é um cavalo:
ouve como ele corre
pelo mar, pelo céu.

Quer levar-me: escuta
como percorre o mundo
para levar-me para longe.

Esconde-me em teus braços
por esta noite apenas,
enquanto a chuva abre
contra o mar e contra a terra
a sua boca inumerável.


Escuta como o vento
me chama galopando

para levar-me para longe.


Com tua fronte na minha

e na minha a tua boca,

atados os nossos corpos
ao amor que nos abrasa,
deixa que o vento passe
sem que possa levar-me.


O TEU RISO

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito

brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso

com os olhos cansados
às vezes por ver

que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobre ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.



Referências:
Os versos do capitão
Campo das letras, Porto, 2001.
Tradução de Albano Martins.
Fotos: 5 e 7: do autor
Restantes: Internet

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

FUNCHAL ANTIGO



O fogo nasceu do mar. Retorceu as ondas, libertou-se e procurou o céu. O fumo cobriu as águas. Ao dissipar-se, emergira uma grande massa de rocha preta. Subia centenas de metros acima do oceano. Ali ficou.
Quem a viu primeiro foi uma gaivota.
A chuva, o vento nervoso e o impacto das ondas foram desgastando a pedra. Formou-se areia, cada vez mais fina.
Vieram mais gaivotas. Descansaram na rocha. Algumas fizeram ninho.
As suas fezes amassaram-se com grãozinhos de areia. Constituíram o primeiro solo fértil. Transportavam sementes. Germinaram. Deram flores e frutos. A ilha fez-se verde.
Muitos, muitos anos depois, apareceu ao longe uma vela. Acostou uma embarcação tripulada por homens barbudos. Demorou-se pouco tempo, mas deu notícia do achado. Outros barcos chegaram, e houve gente que escolheu viver ali. Fixaram-se “em hum valle formoso cheyo de funcho até ao mar”.



Não se conhecem documentos sobre a descoberta da Madeira. Há indicações de que os arquipélagos da Madeira e das Canárias começaram a ser visitados por marinheiros portugueses durante o século XIV. Na carta “de Medici”, desenhada por volta de 1370, já aparecem as indicações de “porto sancto”, “i. de lo legname (madeira) e “i. deserta”.
Em 1433, o rei D. Duarte cedeu o arquipélago da Madeira ao seu irmão D. Henrique. No entanto, a povoação das ilhas terá começado por volta de 1425, antes da autorização do rei. Escreve o infante D. Henrique: “comecei de povoar as minhas ilhas de Madeira haverá ora trinta e cinco anos”, na carta de doação do espiritual das ilhas da Madeira, Porto Santo e Deserta à Ordem de Cristo, datada de 1460. Dois escudeiros da casa do infante, João Gonçalves Zarco e Tristão Teixeira, “desanimados com a proliferação de coelhos que eles mesmo tinham largado na ilha de Porto Santo”, mudaram-se para a Madeira. Zarco viria a conseguir obter a maior capitania da ilha, ficando Tristão Teixeira com a região do Machico.
João Gonçalves Zarco e a sua família instalaram-se na zona do Funchal. A fertilidade dos solos e a existência de um bom porto natural facilitou o desenvolvimento da povoação e da ilha.
Em 1566, as ilhas do Arquipélago foram invadidas por uma armada francesa que partiu de Bordéus. Depois de saquearem Porto Santo, os corsários, comandados por um fidalgo da corte de Carlos IX, ancoraram na praia Formosa e desembarcaram. Os oitocentos homens armados venceram facilmente a resistência com que depararam até à fortificação do Funchal. As peças de artilharia estavam apontadas para o mar e não puderam ser reposicionadas a tempo. O forte foi tomado e, durante quinze dias, os franceses roubaram tudo o que na cidade tinha algum valor.


Casa arrombada, trancas na porta! O arquitecto militar Mateus Fernandes foi enviado, no ano seguinte, para o Funchal e a defesa da cidade foi reformulada.
No século XVII, fixaram-se no Funchal comerciantes ingleses de vinho que iriam deixar a sua marca na economia, na arquitectura e no modo de vida da cidade. Mais tarde, o clima da ilha ganhou fama de favorável à recuperação da tuberculose e foram várias as figuras da grande nobreza europeia que passaram longos períodos de tempo na Madeira. O turismo é ainda hoje a principal fonte de rendimento da Região.




Referências: Albuquerque, Luís de. Os descobrimentos portugueses. Publicações Alfa, Lisboa, 1985.
Wikipedia.
Fotografias: várias fontes.




Também publicado em MILHAFRE





sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

BOCAGE EM MACAU


Manuel Maria Barbosa du Bocage esteve em Macau de Outubro de 1789 a Março de 1790. Viera de Surrate, na Índia, e passara por Cantão.
O poeta procurava dar-se bem com os poderosos. O governador interino, Lázaro da Silva Ferreira, facultou-lhe o regresso a Lisboa. Bocage chegou a Portugal em Agosto de 1790. Agradeceu a Lázaro, com um poema, e retratou noutro o estado da Macau que conhecera:

Um governo sem mando, um bispo tal,
De freiras virtuosas um covil
Três conventos de frades, cinco mil
Nhon`s e chinas cristãos, que obram mui mal.

Uma Sé que hoje existe tal e qual,
Catorze prebendados sem ceitil
Muita pobreza, muita mulher vil,
Cem portugueses, tudo em um curral;

Seis fortes, cem soldados, um tambor,
Três freguesias, cujo ornato é pau,
Um Vigário-Geral, sem promotor,

Dois colégios, e um deles muito mau,
Um senado que a tudo é superior,
É quanto Portugal tem em Macau.

O poder de síntese de Bocage é quase insuperável: traçou nos catorze versos dum soneto a caricatura de uma cidade.
O padre Manuel Teixeira explica a sátira do poeta.
O governador não tinha poder civil: mandava apenas nos soldados e nas fortalezas. Não havia bispo desde 1780. As clarissas eram as únicas pessoas elogiadas pelo poeta. A palavra “covil” referia-se à clausura rigorosa dessas freiras. Os três conventos eram os de São Francisco, Santo Agostinho e São Domingos. Nhons (a palavra significa senhor) eram os mestiços. Os padres censuravam repetidamente a corrupção dos costumes da época.
A Sé Catedral datava de 1622 e não recebera melhoramentos. Prebenda era o direito dum eclesiástico a receber um subsídio, mas o Senado não tinha dinheiro para o pagar.
Os cristãos chinas e portugueses estavam reduzidos à indigência. Em boa parte em resultado da pobreza, havia muita “mulher vil”. Os “portugueses europeus” em 1775 eram apenas 108 e viviam todos na cidade amuralhada.
Cerca de 100 soldados distribuíam-se por seis fortes. As igrejas paroquiais eram pobres e sem valor artístico. O Vigário-Geral era o governador do Bispado. Não houve promotor de justiça do Juízo Eclesiástico nos anos de 1789 e 1790.
O Colégio muito mau era o de S. Paulo, que se encontrava degradado, tendo sido já demolidas algumas oficinas em ruínas. A finalizar, quem mandou sempre em Macau foi o Senado.
A Bocage aconteceu o mesmo que ao seu Portugal: voltou do Oriente tão pobre como partira de Lisboa. Enriqueceu apenas no conhecimento da natureza humana e alargou o espírito no contacto com outras civilizações.

Referências:
Teixeira, Manuel. Macau no século XVIII. Imprensa Nacional, Macau, 1984.

Fotografias:
A China e os Chineses, Auguste Borget. Instituto Cultural de Macau, 1990.
Macau, Daniela Carvalho Faria e Eduardo Grilo, Primeira Impresão Ldª, Macau, sem data.

Já publicado em Milhafre

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

POETAS DE QUEM EU GOSTO

FEDERICO GARCIA lORCA
Lorca nasceu em Fuente Vaqueros (Granada) em 1898. Estudou Direito em Madrid e foi amigo de Luís Buñuel e de Salvador Dali. Após a licenciatura, viveu nos Estados Unidos da América e em Cuba. De regresso a Espanha, criou o grupo de teatro La Barraca. Socialista e homossexual assumido, foi ameaçado pelos conservadores espanhóis após a rebelião de Franco. Refugiou-se em Granada, mas foi preso pouco tempo depois. Segundo um político católico da época, era mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver. No Verão de 1936 foi executado pelos nacionalistas, com um tiro na nuca. Não houve julgamento prévio. O seu corpo foi abandonado na Serra Nevada.
Hoje é considerado por muitos o maior autor espanhol desde Cervantes.
Os dois primeiros poemas que apresento datam de 1921 e o terceiro foi escrito antes de 1924. Federico tinha então vinte e poucos anos anos e ganhava balanço para a produção do assombroso Romancero Gitano que havia de publicar em 1928. A fotografia em que figuram Dali e Federico foi tirada nesse ano. Lorca é o da esquerda.
Os quadros que apresento são de Salvador Dalí (Edição TASCHEN). O pintor e o poeta foram amigos e talvez mais. Dali nega a relação: “Quando Garcia Lorca me quis possuir, recusei, horrorizado”. Aliás, Dalí afirmou sempre que ainda era virgem quando conheceu Gala, musa e mulher da sua vida, roubada ao seu amigo Paul Éluard. A candidez do mestre catalão pode muito bem ser surrealista.



SE HA PUESTO EL SOL

Se ha puesto el sol. Los árboles
meditan como estatuas.
Ya está el trigo segado.
Qué tristeza
de las norias paradas!

Um perro campesino
quiere comerse a Venus y le ladra.
Brilla sobre su campo de pre-beso,
como una grande manzana.

– Los mosquitos – pegasos del rocío –
vuelan, el aire en calma.
La Penélope imensa de la luz
teje uma noche clara.

“Hijas mias, dormid, que viene el lobo”,
las ovejitas balan.
“Ha llegado el otoño, compañeras?”,
dice una flor ajada.

Ya vendrán los pastores con sus nidos
por la sierra lejana!
Ya jugarán los niños en la puerta
de la vieja posada,
y habrá coplas de amor
que ya se saben
de memoria las casas.


HAY ALMAS QUE TIENEN...

Hay almas que tienen
azules luceros,
mañanas marchitas
entre hojas del tiempo,
y castos rincones
que guardan um viejo
rumor de nostalgias
y sueños.

Otras almas tienen
dolientes espectros
de pasiones. Frutas
con gusanos. Ecos
de una voz quemada
que viene de lejos
como una corriente
de sombra. Recuerdos
vacíos de llanto
e migajas de besos.

Mi alma está madura
hace mucho tiempo,
y se desmorona
turbia de misterio.
Piedras juveniles
roídas de ensueño
caen sobre las aguas
de mis pensamientos
Cada piedra dice:
“Dios está muy lejos!”


CAPRICHO

Detrás de cada espejo
hay una estrella muerta
y un arco iris niño
que duerme.

Detrás de cada espejo
hay una calma eterna
y un nido de silencios
que no han volado.

El espejo es la momia
del manantial, se cierra,
como la concha de luz,
por la noche.

El espejo
es la madre-rocío,
el libro que diseca
los crepúsculos, el eco hecho carne.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

POETAS DE QUEM EU GOSTO


Com Poetas de quem eu gosto pretendo partilhar as lembranças de poetas e de poemas que me encantaram. Não tenciono respeitar cronologias, nem me passa pela cabeça alinhar os mestres da palavra e do sentimento segundo qualquer ordem de valor.
Começo com um grande nome chinês. Terá sido porque escrevi há pouco um pequeno artigo sobre a China. Acho que foi o poeta que apelou discretamente a que o reencontrasse, quando eu passeava os olhos pela estante dos versos.
Bai Juyi nasceu no vigésimo dia da Primeira Lua do ano de 772 em Henan, no centro da China. Publicou (com a reserva que a palavra tinha na época) os primeiros poemas em 786. Entrou cedo nos corações chineses. Homem de Estado e do povo, erudito e popular, espanta hoje pela sua quase inacreditável modernidade. Os versos que escolhi foram escritos há mil e duzentos anos.






BAI JUYI


SUBINDO AO TERRAÇO DE LINGYING,
OLHANDO PARA NORTE

Subindo à montanha,
entendo a pequenez dos domínios do homem,
olhando na distância,
entendo o vazio das coisas terrenas.
Volto a cabeça, regresso à corte e ao mercado,
como um bago de arroz caindo no grande celeiro.

TRABALHO

Ao nascer do dia, diante de mim, um monte de papéis,
ao pôr-do-sol, diante de mim um monte de papéis.
Passaram a beleza da manhã, o esplendor da tarde,
e eu acorrentado a uma mesa de trabalho.


PENSANDO EM HAN YU

Tem-se esquecido de mim o venerando Han,
talvez por ser um conhecedor, um entendido
e não apreciar o meu vinho vulgar.
Talvez por ser um homem de talento
e sorrir diante de meus humildes poemas.
Depois, habitamos diferentes lugares,
solitários dizemos poesia, bebemos nosso vinho
ele com suas flores, eu com o meu luar,
Uma coisa em comum nos aproxima
o vento da Primavera afaga nossos cabelos brancos como seda.


O DÉCIMO QUINTO VOLUME

Comovente, belo, o meu longo poema Canto do remorso perpétuo,
um modelo de melodia as minhas Dez canções de Shanxi.
Não posso proibir o velho Yuan de roubar minhas rimas,
mas o jovem Li já aprendeu a respeitar minha poesia.

Em vida, passaram ao lado riquezas e honrarias,
mas eu sei, depois de morrer, famosos meus poemas.
Perdoem-me as palavras à toa, a gabarolice,
hoje completei o décimo quinto volume das minhas obras.




Como vemos, o grande Bai Juyi não tinha dúvidas quanto ao
valor da sua obra.

António Trabulo


Fonte: POEMAS DE BAI JUYI. Tradução de António Garcia de Abreu.
Instituto Cultural de Macau, 1991.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

CHINA ANTIGA


Da primeira vez que estive em Macau e olhei para o outro lado do mar, ainda vislumbrei o mistério naqueles montes arborizados e escuros. Era a China, mundo estranho, próximo e distante, atraente e assustador.
Aquela impressão durou pouco. As quimeras desfazem-se quando se tocam. Os mistérios não resistem à lucidez do olhar.
Hoje, pouco resta do antigo Império do Meio.







A China moderna é um País em rápida transformação. Vai ganhando, entre as Nações o espaço a que tem direito pela dimensão do seu território, pela grandeza da sua população e pela organização do trabalho dos seus habitantes. A sua economia é das mais poderosas do mundo. No conjunto das grandes potências, emerge como a potencialmente maior.




O desenvolvimento industrial e a ocidentalização progressiva dos costumes está a proporcionar-lhe o que a sua civilização milenar lhe negou. Há que saudar a libertação de todo um povo da pobreza e a dignificação de quem deu muito ao mundo, mas é difícil não experimentar nostalgia por todo um passado que se perde no nevoeiro do tempo.





As gravuras que se apresentam foram retiradas do livro A China e os Chineses, de Auguste Borget, reeditado pelo Instituto Cultural de Macau em 1990.
Evocam uma China antiga, profunda e imorredoura.




NATAL DE 1884. O NASCER DE UMA CIDADE


SÁ DA BANDEIRA (LUBANGO)









O Brasil perdera-se de vez e há muito que a economia portuguesa precisava de outros arrimos. A África constituía o último quintal de Lisboa e seria oportuno olhar a sério para o continente negro.
Portugal tinha mais olhos que barriga. Pretendia conservar um império colonial de uma vastidão desmesurada sem dispor dos meios humanos e técnicos nem das capacidades financeiras indispensáveis para enfrentar a concorrência de nações europeias mais ricas e desenvolvidas.
A Conferência de Berlim abalou profundamente as pretensões portuguesas: os alegados direitos históricos só seriam atendíveis quando corroborados pela “existência de uma autoridade suficiente para fazer respeitar os direitos adquiridos e a liberdade de comércio e de trânsito”. Coincidiu, no tempo, com a criação da Colónia Sá da Bandeira, inserida num tíbio conjunto de medidas destinadas a travar o expansionismo de outros estados europeus.
A Colónia Agrícola Sá da Bandeira foi programada em Lisboa. Os trabalhos de preparação decorreram, em parte, nas secretarias do ministério da Marinha e Ultramar. Nenhuma outra tentativa de fixação de população europeia em Angola merecera antes tanto cuidado. Mesmo assim esbarrou em múltiplas dificuldades.
A instalação foi relativamente pacífica. A zona a ocupar estava quase deserta. Os muílas eram senhores de áreas vastas e não queriam saber daquele pedaço de terra.
A bacia do Lubango situa-se a uma altitude de 1.800 metros e cobre uma área superior a 1.000 hectares. É rodeada por uma cadeia de serras que se abre apenas a Leste. É por ali que entra o vento e sai o rio.
Quem olha em volta, pela primeira vez, fixa os olhos no Sul. A Ponta do Lubango interrompe bruscamente a serra do Mucoto e ganha para sempre espaço em muitos sonhos.
Há pequenos ribeiros que levam água todo o ano. Juntam-se no lugar da Machiqueira, ali bem perto, para formar o Caculovar, que vai desaguar na Itambala (ou Lagoa dos Cavalos-marinhos).
Os colonos foram recrutados na Ilha da Madeira e transportados no navio “Índia”. Desembarcaram em Moçâmedes em 19 de Novembro de 1884 e esperaram durante algumas semanas pela caravana bóer que havia de transportar os seus haveres serra acima.
A primeira leva de colonos subiu a Chela a pé e chegou ao Lubango na véspera do Natal de 1884. Os seus modestos bens, as alfaias agrícolas, os doentes e as crianças de colo viajaram nos carrões bóeres contratados. A viagem demorou nove dias.
As carroças foram descarregadas. Na manhã seguinte, os bóeres voltaram com os carros, serra abaixo, para buscar a gente que ficara.
Os madeirenses deitaram logo mãos à obra. Os primeiros trabalhos foram colectivos. Na margem direita do rio Caculovar abriu-se uma clareira onde foram construídos dois grandes barracões de pau-a-pique, um para os homens e o outro para as mulheres e crianças. Edificaram-se, em acampamento separado, cubatas para instalar o director da Colónia, o médico, a secretaria provisória e a ambulância.
A 16 de Janeiro chegou o resto do pessoal. Eram 220 pessoas, entre homens, mulheres e crianças.
Depois de levantados dois novos barracões, os homens empenharam-se na escavação de uma levada para rega. A chuva atrasou os trabalhos, e a vala, de três quilómetros de extensão, só ficou pronta no fim de Fevereiro.
Acabada a vala, procedeu-se à delimitação do povoado, a uns três quilómetros dos barracões originais. Cada chefe de família recebeu dois hectares de terreno e ergueu uma casa pequena com paredes de pau e argila e tecto de capim. As habitações eram semelhantes às cubatas indígenas, mas tinham base rectangular e dividiam-se em dois compartimentos.
Os problemas começaram cedo. Os cofres do Estado português encontravam-se vazios e o subsídio que devia sustentar os agricultores até às primeiras colheitas revelou-se insuficiente.
A diferença maior no viver dos colonos e dos negros que os rodeavam estava no ensino. Logo no primeiro ano, a escola primária contou com 36 alunos, todos rapazes. A sala de aulas e a capela compartilhavam o mesmo barracão. Uma cortina de pano separava o ensino público do culto divino.
A meio de 1891, a Colónia de Sá da Bandeira contava 1.064 brancos, 12 mestiços e 208 negros.
Fui lá plantado sessenta anos depois. Ali fiz toda a instrução primária e liceal. Foi naquela terra que aprendi a conhecer-me. É a minha cidade.

A fotografia da direita representa uma cabana madeirense da mesma data aproximada.

Referências:
Sá, Albino. A portugalização do Sul de Angola, terceiro período. Boletim da Câmara Municipal de Sá da Bandeira nº 22, Julho/Agosto/Setembro, 1968.
Sousa Dias, Gastão. A cidade de Sá da Bandeira. Edição da Câmara Municipal. Sá da Bandeira, 1957.
Trabulo, António. Os Colonos. Esfera do Caos, Lisboa, 2007.
Fotografias:
Moraes, J.A. da Cunha. Álbum photographico e descriptivo, África Occidental (Mossamedes, Huíla e Humpata), David Corazzi Editor, Lisboa, sem data.


Já publicado em MILHAFRE