DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 15 de abril de 2013


                              AMÍLCAR CABRAL


                                VI


                          A UTOPIA





       Falar de Amílcar Cabral é falar de Cabo Verde e da Guiné, dos sonhos de toda uma época e da sensação de ver deslizar a História enquanto se procura influenciá-la. Será também falar do heroísmo e da morte, da persistência na luta, das frustrações e da vitória, de generosidade e de traição. Há ainda quem julgue que é falar também de sonhos mal sonhados.
Amílcar Cabral nasceu em Bafatá, na Guiné então portuguesa, em 1924. Amílcar era filho de cabo-verdianos emigrados. As origens marcaram-lhe o destino. Nasceu na Guiné, mas nunca foi guineense. O PAIGCV que fundou, juntamente com o seu irmão Luís Cabral e com Fernando Fortes, Júlio de Almeida e Elisèe Turpin, procurava congregar duas realidades diferentes. Para além do anseio de liberdade, pouco ligava os ilhéus de Cabo Verde, culturalmente ligados ao esforço de Portugal para produzir quadros destinados a administrar o Império, aos camponeses culturalmente menos avançados da continental Guiné.
Nos finais dos anos cinquenta do século passado, o ideal do pan-africanismo ganhou força e sobrepôs-se aos nacionalismos incipientes. Nasceram múltiplos projetos de uniões regionais e sub-regionais de várias antigas colónias europeias. Assentavam em razões históricas e na aleatoriedade das fronteiras estabelecidas pelas potências coloniais. Em julho de 1958, num congresso realizado em Cotonou (Benim) foi mesmo proposta a criação dos Estados Unidos de África.
Os exemplos de tentativas federalistas são numerosos e poucas nações africanas lhes terão ficado indiferentes. Ainda em 1958, a Guiné-Conakry e o Gana elaboraram um plano de união. No ano seguinte, o Daomé (atual Benim), o Sudão (atual Mali), o Alto Volta (atual Burkina Faso) e o Senegal integraram-se na chamada Federação do Mail, com Modibo Keita como presidente e Dakar como capital federal. A febre das uniões não terminou aí. Em 1959, foi projetada uma União do Benim, que integraria o Togo, o Níger e o Daomé, e sonhada a criação dos Estados Unidos da África Latina, que deveria agrupar o Congo-Leopoldeville, o Congo-Brazaville, o Chade, a República Centro-Africana, os Camarões, o Gabão e Angola.  No mesmo ano nasceu o projeto duns Estados Unidos da África Central, que juntaria a Libéria, o Gana, a Guiné-Conakry, a Serra Leoa, o Senegal e a Gâmbia.
O único destes devaneios que ganhou raízes e perdurou até aos nossos dias foi a Tanzânia, que resultou da união levada a cabo em 1964 entre o Tanganica e Zanzibar.
Ao procurar unificar Cabo Verde e a Guiné, Amílcar Cabral não estava a inventar nada. Seguia a moda corrente entre os dirigentes independentistas africanos. O seu projeto nasceu provavelmente em 1959, depois da conferência que teve lugar em Accra em dezembro do ano anterior. Em setembro de 59, nasceu o Partido Africano da Independência e União dos Povos da Guiné e Cabo Verde, com a divisa UNIDADE E LUTA. Em junho de 1960, Amílcar Cabral assumiu a coordenação dos diversos movimentos que pretendiam a libertação da Guiné e de Cabo Verde e se encontravam sediados em países vizinhos. A luta contra o colonialismo português tornou-se então eficaz. Começaram os contactos com elementos que habitavam o interior da Guiné e tiveram início as ações de propaganda.
Para tal, foi necessário convencer boa parte dos ilhéus de Cabo Verde de que eram genuinamente africanos. Alguns já pensavam assim. Outros ainda não estarão certos disso, mesmo nos dias de hoje. Foi preciso também persuadir os guineenses de que os cabo-verdianos eram aliados e não adversários. 
Os argumentos de Cabral eram fortes. A língua (o creoulo) era semelhante. Os habitantes das duas colónias portuguesas partilhavam a mesma raiz ancestral (leia-se rácica) e eram dominados pela mesma potência colonial. Os escravos transportados para as ilhas desertas encontradas pelos portugueses a oeste da costa africana seriam maioritariamente originários da Guiné, o que não é fácil de demonstrar, uma vez que os portugueses comerciavam escravos ao longo do vasto litoral africano ocidental e o existiam fronteiras claras com o Senegal e a Guiné-Conakry.
Nem todos concordavam com Amílcar Cabral. Havia quem pensasse que a Guiné-Bissau estava mais próxima da Guiné-Conakry e do Senegal, com quem partilhava mais laços históricos, que do arquipélago cabo-verdiano. Antes de 1879, a Guiné dependia administrativamente de Cabo Verde, sede do Governo-geral. Foi necessário combater os preconceitos que atribuíam aos cabo-verdianos uma atitude geralmente paternalista para com os guineenses e o ódio com que estes retribuíam a colaboração dos ilhéus com as autoridades administrativas portuguesas.
Por outro lado, o crioulo da Guiné era diferente do de Cabo Verde. Na Guiné funcionava como língua franca e em Cabo Verde era uma língua nacional.
As preocupações com a Unidade começaram cedo e foram objeto de debates sucessivos. Já em 1961, os dirigentes do PAIGCV escreviam (documento traduzido do francês):
É loucura pensar que os cabo-verdianos poderiam mandar na Guiné após a independência. Há cerca de 2.000 cabo-verdianos na Guiné, sendo de cerca de 600.000 o número dos guineenses. Será o povo da Guiné que decidirá após a independência quem vai dirigir o país. É evidente que a Guiné será governada pelos seus filhos.
     






                 
                              

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