DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017


TAMEGÃO


CARLOS NUNES PINTO


V

 “ Quando a verdade se descuidou, a mentira tomou sexo e se multiplicou.”




Já o sol tinha começado a arrefecer e a lua cumpria sentinelas, pai e filho arrancaram virados ao mato. Caçar era bom para o miúdo se constituir em músculos. Para quê se arrimar em versos, se versos não se come quentes em fogueira de lenha branda?
− É preciso carne no esquecimento da fome
− Então vamos, pai.
Setas de ferro de pontas aguçadas. Na outra ponta, penas de águia da realeza, dentro da aljava, pele de búfalo que se arredondou virado saco. Zagaia de pau feito meia-lua no esticão da corda de sisal, de verde já perdido que de tanta porrada se desfibrou.
Para o filho se minuiram utensílios para lhe dar capacidades de acreditar ser repetição do pai. A mentira levantava poeira invisível nos olhos do sol e nas vergonhas da lua.   
O sol se apagou. A lua, que ainda era nova, não se revelou.
No breu se sumiram na aventura, pai na frente, filho nas pegadas.
Rodopiando em brilho, venenosa cobra se aventurou em beijo, picando a barriga tenra da perna da criança. Picou e repicou, transformando silêncios em gritaria de batuque.
O pai ainda conseguiu ver a criminosa se refugiar no capim seco, produzindo ruídos, arrepiando pêlos.
A criança caiu desamparada na secura da terra, no desânimo do sono da morte.
O pai, no instante, puxou o punhal, cortou o feitio da dentada e chupou veneno que se transformava em cuspo involuntário.
Nos intervalos, gritava:
− Reage na vida, dá pontapé na morte!
Parecia às vezes chorar. Afinal eram apenas restos mal cuspidos do veneno que lhe estavam queimando dentro dos olhos.
− Respira, grita, se movimenta faz favor, meu filho!
O menino abriu os olhitos, já quase revivido.
O pai, no silêncio da noite, chorou lágrimas das alegrias recebidas.
− Pai, alguém me salvou?

− Foi Tamegão, meu filho, eu vi! 

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