DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 22 de janeiro de 2017

TAMEGÃO

                                   


Este blogue tem incluído ocasionalmente artigos de amigos e, até, um livro da minha neta Leonor. Chegou a vez do “Tamegão”, uma criação do Nunes Pinto, amigo de longa data.     
 Carlos Nunes Pinto nasceu na Bibala (Vila Arriaga), no sul de Angola. Naquele tempo, a vila estava infestada de paludismo. Se um miúdo, na casa de banho da escola, via sangue na urina, regressava a chorar. Fora marcado pela morte. Era a biliosa, uma complicação grave da malária.
As mães separavam-se dos filhos lactentes e enviavam-nos para Moçâmedes, onde tinham maiores probabilidades de sobreviver. Quando os pais do Carlos viram crescer os dois primeiros filhos, acharam que tinham a descendência assegurada e resolveram arriscar. Geraram outro par de rapazes e criaram-nos ali mesmo. Quem conhece o Carlos, vê que o fizeram bem.
Passavam-se poucas coisas naquela terra encalhada entre o deserto do Namibe e a Serra da Chela. O tempo sobrava. Escorria devagar. Para o entreter, inventavam-se histórias e lembravam-se lendas.
A oralidade dos contos africanos está bem presente nesta obra. O autor aprendeu-a nos serões da Bibala, no tempo em que as pessoas ainda se escutavam umas às outras. Não havia televisão, e os poucos aparelhos de rádio nem sempre funcionavam.
A História é cega. Impôs a sua força. Meio milhão de portugueses deixou África. A grande maioria instalou-se em Portugal. Muitos nunca tinham estado cá. Eram filhos, ou netos de emigrantes. Deixaram quase tudo o que tinham. Trouxeram o saber fazer.
Essa capacidade técnica, em áreas diversas, facilitou a integração e empurrou o País para um salto em frente. Com a descolonização, Portugal ficou mais rico e as antigas colónias mais pobres.
O autor mergulha nas recordações da infância, modifica-as e recreia-se. Procura sistematicamente cruzar dois saberes, o dos brancos e o dos negros. Integrados, poderiam fazer uma Angola melhor. Não aconteceu assim.
Atribuir culpas é tão inútil como julgar a História. Os contos do Tamegão são histórias de amor e de perda. Representam uma tentativa pessoal de reconciliação com o passado. Espero que vos encantem tanto quanto me encantaram.



Dito do Tamegão:


“Verdade às vezes não é verdade, só é verdade aquilo que não é mentira “

I

Quando aquilo que vou contar ocorreu, devia ter eu os meus doze anitos, porque me lembro de ter sido nessa altura que aprendi, em ciências, o ciclo da água.
Sempre ouvi dizer, em Vila Arriaga, que certo dia, quando as chuvas grandes duraram sete dias e sete noites, caíram peixes do céu. Os velhotes diziam que tinha chovido peixes.
Achei que era impossível. Lá chover peixes eu ainda engolia, mas a minha tenra idade não permitia que fosse mais além. Rematei apenas para mim: isto são coisas que a ciência faz para quebrar o encantamento das lendas…
Como se tinha quebrado para mim aquela verdade, repetida durante anos, e como não queria aceitá-la tão facilmente, decidi perguntar-lhe:
− Tamegão, tu te lembras do dia que choveu peixe?
− É verdade, até os filhos dos negros comeu. Caiu tanto peixe lá de cima que ficou todo espalhado na rua (nunca utilizava a palavra Céu, não sei se por ignorância, se por se sentir acima dele – substituía-a por “cima”).
− Menino, choveu tanto, tanto, que rio Giraul engoliu o comboio. O comboio nunca mais passou, não passou muitos meses. Só passava ali − e apontava com o sexto dedo para um lugar onde nem havia via-férrea.
Chamei a sua atenção para isso.
− Se eu viu o fumo como é que não tem linha?!
Nem retorqui, porque me apercebi que o seu tom de voz se tinha alterado.
− Se o menino não acredita, não precisa falar mais.
Fiquei quase sem sangue porque, confesso, também tinha medo do Tamegão.
Tamegão, segundo se dizia, era feiticeiro e virava matchituca em certa fase da lua, não sei se na nova se na cheia.
Teria nascido há mais de noventa anos, não se sabe onde, porque era conhecido que o preto só pinta quanto tem três vezes trinta.
Nasceu com um defeito na mão direita – tinha seis dedos.
Era esse sexto dedo que ficava coberto de pelos na tal fase da lua; não sei que nome teria esse dedo, não era polegar nem indicador. Parece-me que naquele tempo ainda não se dava nome a isso.
Por culpa desse facto, ou talvez pelo aproveitamento que o Tamegão fazia dele, o velho vivia isolado, numa casa de pau-a-pique com três grandes mangueiras nas traseiras (se é que as casas dos negros têm traseiras).
Só a mais de um quilómetro começavam a espalhar-se as cubatas dos outros, porque todos tinham medo do Tamegão.
Não era para menos, porque a morte de algum negro de idade avançada era sempre atribuída aos feitiços e quimbandices do Tamegão. Já o mesmo não se passava com a dos jovens e crianças.
Contava-se que Tamegão sabia ler, porque estava muitas vezes sentado no tronco de uma árvore, de livro na mão.
Julgo que fazia isto para se mostrar superior aos olhos dos outros.
Tanto se falou disso que o Administrador, que já começava a acreditar, mandou que um sipaio o fosse buscar, porque, entretanto, tinha eclodido o terrorismo e era incómodo ter gente letrada na zona.
− É verdade que tu sabes ler?
A vaidade foi mais forte e respondeu que sim.
− Então lê isto! Atirou-lhe um edital para as mãos.
− Esse papel eu não sei, só os livros que o Padre Carlos me mandou eu sei.
− Então onde é que aprendeste a ler esses livros?
− Naquele buraco da Serra, onde tem aquela cobra que fala.
Já sem paciência nenhuma, o Administrador mandou-o em liberdade.
Dizia-se que se alimentava apenas das mangas das suas mangueiras, que começavam a amarelecer em Dezembro. Ficava, no entanto, a dúvida: sobravam muitos meses, mesmo muitos, depois da época das mangas.
Perguntei-lhe se era verdade.
Respondeu-me:
− Ninguém acredita, menino, porque mais ninguém sabe guardar mangas como eu.
Fingi que acreditava, porque os meus verdes anos me levaram a pensar que lá teria o seu processo de conservação. Fosse qual fosse, também não me interessava.
Era talvez mais evoluído do que os brancos que salgavam o peixe e a carne de porco, (tudo isto, é claro, antes do aparecimento das geleiras a petróleo, de torcidas fumarentas e mal cheirosas).
Menos acreditei ainda quando vi ali perto um galo preto e luzidio picando a areia do chão.
− Pelo menos galo tu comes?
− Não, menino, esse galo não tem carne dentro, tem o espírito de um velho que morreu cansado.
Não tinha o direito de duvidar, nem tão pouco o de acreditar.
A tarde tinha passado depressa, ou a noite chegado cedo. Despedi-me, talvez agradecendo.
Quando já me distanciava uns dez metros, ouvi, atrás de mim, um grande vozeirão.

− Há mais – Os meus pés, ainda pequenos, pisaram gelados a terra africana. Na tua escola, cinco e cinco são dez, na minha mão são onze!  


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