DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017


EU E A PESCA

II

Quando voltei do mar, instalei-me em Setúbal. A dada altura, lembrei-me de comprar uma cana pequena e de ir pescar no Rio Sado. Levei comigo a minha filha Marisa, que teria, na altura, uns sete anos. Escolhemos tentar a sorte na muralha, a montante do Clube Naval, onde já se encontrava um pescador.
Abri a embalagem e pus-me a montar o carreto na cana. Era coisa que nunca tinha feito, o que justificava alguma atrapalhação. A minha filha meteu-se com o vizinho.
−Tu não pescas nada. Vais ver o meu pai, daqui a bocado…
O homem procurou ignorar as provocações. A dada altura, sentiu picar e retirou a linha para ver se ainda tinha isco. A Marisa gritou:
− Olha! Pescaste uma minhoca!
Aquilo foi demasiado para o moral do meu vizinho pescador. Recolheu o material e afastou-se. Terá ido procurar um sítio mais sossegado.
A Marisa era uma menina precoce. Ao chegar a casa, fez uma redação. Dizia, mais ou menos isto:
“Fui com o meu pai à pesca, mas só pescámos peixes charrocos. No fim, o meu pai atirou os peixes para o rio e voltámos para casa.”
Os “charrocos” eram cabozes.


A partir de dada altura da minha vida, tive sempre barcos. Entretinha-me a pescar na Baía de Setúbal. Raramente apanhava peixe que se visse, mas importava-me pouco com isso. Não me levantava de madrugada e nunca pescava no inverno. Ia para onde me apetecia. Na maioria das vezes, os peixes escolhiam lugares diferentes dos meus. Ainda por cima, uma boa parte da minha atividade predatória desenrolou-se a bordo de embarcações à vela, mais obedientes aos horários do vento que aos do peixe. A quilha era outro obstáculo de peso. Para chegar aos pesqueiros mais frequentados em Setúbal, teria de fazer um grande desvio, para evitar os bancos de areia frente à Troia.

A bordo do "Gisa", o meu primeiro veleiro

Durante anos a fio, tive o Gisa fundeado em Albarquel, antes das obras que levaram para lá areia, um restaurante e turistas. O Gisa era um veleiro de 6,7 metros, construído em Portugal e fácil de manobrar por um homem só. Deixava um “coco” de fibra de vidro amarrado na praia, para o transbordo. Às quartas-feiras, saía mais cedo do trabalho e, entre abril e setembro, passava no barco duas horas, ao fim da tarde, a fingir que pescava. Ao menos, descontraía-me.
Foi numa dessas tardes que sofri a maior humilhação da minha vida de pescador. Havia ali muito peixe pequeno que picava constantemente. Apesar de usar anzóis diminutos, a maior parte das vezes levavam-me o isco sem se deixarem fisgar. Por essa razão, pescava com duas canas, para ter uma linha no fundo, enquanto punha casulo ou minhoca no anzol da outra.

Estava entretido nessa tarefa quando vi a cana deslizar e mergulhar na água. Um pampo levou-ma. Acho que ainda o ouvi rir-se lá no fundo. 

Sem comentários:

Enviar um comentário