DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 7 de maio de 2013


                                   AMÍLCAR CABRAL

                                           XXVI

                      PRISIONEIROS



Não é conhecido com exatidão o número de militares portugueses capturados pelo inimigo durante a guerra de independência da Guiné. Terão sido cerca de oitenta. O facto de alguns desertores terem sido aprisionados e a incerteza quanto ao paradeiro de muitos desaparecidos complicam as contas. Houve quem tivesse sido arrastados pelas águas durante a travessia dos inúmeros rios e braços de mar da Guiné, quem se perdesse na mata durante o combate e quem tivesse o corpo despedaçado pela explosão de minas de grande potência.
Tanto quanto se sabe, o primeiro militar português aprisionado pelo PAIGC foi o sargento piloto António Lobato. Sobreviveu à queda do seu avião, em maio de 1963, e só viria a ser libertado quando da operação Mar Verde, sete anos depois.
Em 1968, uma emboscada preparada entre Buba e Quebo, perto de Mampatá, permitiu aos guerrilheiros aprisionar oito soldados portugueses. Pouco tempo depois, num ataque perpetrado na região de Bafatá, foram apanhados mais onze militares.
O PAIGC não tinha condições para manter cadeias, mesmo nas zonas “libertadas”. A desproporção entre o número de mortos em combate (2.070, nos 13 anos de guerra) e o escasso número de prisioneiros (80) faz supor que a maioria dos soldados portugueses detidos tenha sido imediatamente eliminada.
Os cativos que não foram passados pelas armas acabaram por ser transferidos para diversos países africanos que apoiavam a guerrilha guineense.
Julga-se que estiveram presos na Guiné-Conakry, nas cadeias de Alfa Yaya e Kindia, 45 militares portugueses, entre os quais se contavam três oficiais. 24 prisioneiros foram resgatados pelas forças de Alpoim Calvão no decurso da operação “Mar Verde”. Na República Democrática do Congo (Kinshasa), na República Popular do Congo (Brazzaville), na Tanzânia e na Zâmbia estiveram detidos mais 26 combatentes metropolitanos.
A literatura oficial do PAIGC louva as condições de detenção dos militares portugueses e o humanismo com que terão sido tratados.

 Estiveram detidos em Conakry mais de vinte militares europeus que tinham alimentação especial, com direito a irem à praia, que não ficava longe, uma vez por semana. No pátio do prédio transformado em prisão, havia um campo para desporto, onde faziam exercícios físicos. Muitos aprenderam a ler e a escrever e no fim já eram eles próprios a escreverem às famílias, o que lhes era facultado com a colaboração da Cruz Vermelha Senegalesa e a Cruz Vermelha Internacional.

Para além da operação “Mar Verde”, Marcelino da Mata participou noutra ação de guerra destinada a libertar soldados portugueses aprisionados pelo inimigo. Esse extraordinário combatente ficou famoso também pela sua bazófia. Os números que refere não podem ser levados sempre a sério. Ouçamo-lo.

Voltei a Binta em 1967. Foi uma das operações que gostei mais de fazer. O tenente-coronel Manuel Ferreira chamou-me e contou-me que a companhia do capitão Fernando Carracha, que estava a fazer operações de patrulha na zona da fronteira, fora toda apanhada à mão pelo PAIGC na véspera – 150 homens apanhados à mão! – e que eu tinha de ir lá buscá-los. Na vila para onde os levaram, além do PAIGC havia 1 batalhão de pára-quedistas senegaleses. Fomos 19 homens, todos muito armados, menos eu que ia vestido com uma tanga igual à que os senegaleses usam naquela zona. Entrei na vila, cheguei perto do arame farpado do quartel senegalês e vi os nossos homens todos sentados na parada, só em cuecas; nem as meias lhes tinham deixado. O primeiro que me reconheceu passou a palavra ao capitão e depois passaram todos uns aos outros. Atirei uma granada ofensiva para o meio da parada e na confusão conseguimos tirar os nossos de lá todos. Mas custou-me chegar à fronteira porque os brancos não estão habituados a andar descalços. A tropa senegalesa fugiu rapidamente, mas o PAIGC vinha atrás de nós. Iam 9 do meu grupo à frente a escoltar os nossos e 10 atrás a aguentar o tiro do inimigo – foi assim até à fronteira e ainda eram mais de 40 km. Pusemos os nossos na fronteira e ainda voltámos para trás para repelir o PAIGC. Nesta operação ganhei a Torre e Espada.»

Os guerrilheiros capturados pelos portugueses eram considerados fontes privilegiadas de informação e interrogados pela unidade militar. Muitas vezes eram obrigados a servir de guias para localizar as suas bases. Posteriormente, eram entregues ao livre-arbítrio da PIDE. Não sendo considerados prisioneiros de guerra, não lhes eram atribuídos quaisquer direitos e não eram protegidos por leis ou regulamentos. Tanto podiam ser considerados arrependidos, podendo então regressar às terras de origem, como eliminados sem deixar vestígios. 

segunda-feira, 6 de maio de 2013


                   AMÍLCAR CABRAL            

                           XXV   
    

   QUEM TEM MEDO MORRE DEPRESSA

                     (MARCELINO DA MATA)




       A sorte protege mais os prudentes que os audazes e o lema dos "comandos" não corresponde à realidade.  Marcelino da Mata é claramente uma exceção. Participou em inúmeras operações militares tendo sido raramente ferido pelo adversário. Em contrapartida, foi atingido por fogo amigo pelo menos quatro vezes e sofreu ainda dois acidentes de viação de certa gravidade.

Nunca fui ferido em combate, mas fui ferido várias vezes dentro dos quartéis. Apanhei um tiro numa perna quando ia a atravessar uma parada, dado por um tipo que estava sentado à porta da caserna a limpar a arma: fiquei dois dias no quartel; e apanhei três tiros de rajada no ombro, dados por um amigo meu que, na brincadeira, visou baixo de mais. Os grupos que tive foram “Os Roncos” que eram 15 pretos e 15 brancos e davam-se todos como irmãos; comigo tinha que ser assim. Parti a cabeça em Farim em 68, numa noite em que estava num destacamento e havia outro a dois quilómetros que estava a ser atacado. Metemo-nos numa viatura e, num cruzamento, ao virar, o inimigo emboscado deu uma bazucada na roda do jipe: dei seis cambalhotas, bati com a cabeça e parti um braço que ficou com o osso todo esmigalhado; levantei-me e eles começaram a gritar “agarra!”, disparei com o outro braço e fiz dois mortos; eles fugiram e a seguir desmaiei. Puseram-me um bocado de metal. Uns tempos depois um condutor despistou o Unimog, demos várias cambalhotas e o metal entortou; puseram-me outro e noutra operação caí mal ao saltar dum helicóptero, o ferro voltou a entortar e tiveram que me meter outro.

Marcelino da Mata é de etnia papel, tal como Nino Vieira. Nasceu em Tite, em 1940 e teve acesso a uma educação melhor do que a média dos seus conterrâneos. Diz ter feito o sétimo ano, embora não se entenda se incluiu na conta a escolaridade primária.
A sua incorporação no exército é, pelo menos, curiosa. Conta ter entrado para a tropa, em Bolama, em lugar do irmão mais velho e com o nome dele. Tornou-se soldado condutor. Ouçamo-lo:
Fui para a escola de cabos mas como falo muitos dialetos (balanta, mandinga, fula, mandeco, mancai, um pouco de nalu e de beafada), qualquer tropa que ia para o mato em operações me levava como intérprete.
 Comecei a perceber o que estava em causa, quando a guerra começou: eu tinha de lutar de um lado; e esse lado era, e é, Portugal. A princípio não percebia nada de política, mas como não gostava de cabo-verdianos e eles estavam à frente do PAIGC, eu estava contra eles; depois, comecei a não gostar do comunismo. Quando se apanhava alguém no mato, ele ou ela dizia logo que não falava português e então eu perguntava de que etnia era, e interpretava para o oficial comandante. Foi nessas operações em que servia de intérprete que me habituei a estar debaixo de fogo, que comecei a ganhar prática. Apareceu um alferes chamado Maurício Saraiva a pedir voluntários para formar um grupo de “comandos” e eu ofereci-me.

Mal terminou o curso de “comandos”, foi enviado para um navio de guerra e desembarcado na ilha de Como. Começara a operação “Tridente”.

Havia operações de noite e de dia, bombardeamentos de noite e de dia. A ilha estava ocupada pelo PAIGC. Tinha árvores muito cerradas, com mais de 100 metros de altura: isso causava problemas com os bombardeamentos, porque as bombas rebentavam nas copas. De dia, a um metro, não se via ninguém: só dávamos pelo inimigo quando ele abria fogo; a ilha é toda cheia de pântanos. Tínhamos lodo até aos joelhos e água até à cintura.

 É provável que as árvores parecessem mais altas vistas de baixo. Por outro lado, Marcelino da Mata sempre gostou de exagerar. Não se pode acreditar em tudo o que contam guerreiros, pescadores e caçadores.

    Estivemos lá 75 dias com o meu grupo a trabalhar com o Batalhão de Cavalaria 490 e outras forças. Tivemos algumas baixas, mas limpámos a ilha toda. Houve uma dezena de evacuados por causa da matacanha, um bicho que se mete debaixo das unhas. Eles sofreram 3 ou 4 vezes mais mortos. Deixámos lá ficar uma companhia de caçadores. Conheci lá o comandante Calvão.
O que dava cabo dos brancos era o clima e a água, que não prestava. A maior parte dos brancos que fizeram a tropa na Guiné vieram com o estômago rebentado; a água não prestava, o clima era húmido, havia um calor enorme. Mas, pior do que isso, é que os brancos iam daqui sem conhecer o terreno, sem instrução nenhuma.
A guerra na Guiné fazia-se assim: destruíamos os acampamentos, apanhávamos os gajos e o material.
Saí dos “comandos”. Fui para Farim, no norte, falei com o comandante, tenente-coronel Agostinho Ferreira, do Batalhão 1887. Pedi-lhe para me deixar formar um grupo especial (“Os Roncos”). Na altura a aviação não ia a Farim, a coluna não se fazia, os barcos também não iam lá. Estava tudo bloqueado e o povo tinha fome. Eu formei o grupo, instruí os homens e começámos a atuar. Consegui abrir a estrada para Mansabá, afastei o inimigo e os barcos começaram a atirar. Quando chegou a época do cultivo, abrimos o outro lado do rio, o povo atravessou o rio e começou a cultivar. Na altura o PAIGC estava a dois quilómetros de Farim. Afastei os gajos todos.

O brigadeiro Sá Carneiro deu-me uma Cruz de Guerra de primeira classe e outra de segunda, e vim recebê-las em 1967 ao Terreiro do Paço. Quem me condecorou foi Salazar, que me disse que eu era um herói nacional e que, por aquilo que tinha lido de mim, eu merecia a medalha que tinha no peito. Foi a primeira vez que vim ao Continente e não cheguei a ver Lisboa – foi desembarcar no aeroporto, dormir, ir à parada e voltar a apanhar o avião – porque estava em preparação uma operação de envergadura no Cumbamorie, no norte, com três companhias de tropa e o meu grupo “Os Roncos”. No aeroporto de Bissau estavam à minha espera, vesti o camuflado e meti-me numa avioneta diretamente para Farim. Quando lá cheguei estavam a arrancar para o mato e eu fui com eles. Esta operação era 40 quilómetros dentro do Senegal. O meu grupo empurrava o inimigo para uma clareira, e quando ele chegasse à mata do outro lado deviam estar lá as outras companhias para o limpar. Tinha havido muito tiro, vários tipos atingidos; eles a correr para a mata e nós a deixarmo-nos ficar para trás, para não sermos apanhados pelo fogo da emboscada dos nossos.

Marcelino da Mata diz ter participado em diversas operações militares nos países limítrofes da Guiné-Bissau: Senegal e Guiné-Conacry. As autoridades portuguesas sempre o negaram, receando as repercussões internacionais. De facto, os guerrilheiros do PAIGC atacavam muitas vezes a partir de santuários existentes no exterior da colónia e a lógica da guerra tornava natural que os adversários os perseguissem. Os quarenta quilómetros é que parecem um exagero.

Atuava no máximo com 8 homens. Quando não sabia onde eram os acampamentos, ia até à fronteira do Senegal com uma farda do PAIGC e uma bolsa de enfermeiro, entrava numa povoação e dizia: “Venho do Senegal, sou enfermeiro e fui mandado para a zona tal”. E eles encaminhavam-me até ao acampamento, ficava por lá 2 ou 3 dias, tratava dos homens, dava injeções. Às 5 ou 7 horas da noite ia-me embora e apanhava o meu grupo. Às 5 da manhã já estávamos em cima deles.

Não sabe quantos inimigos abateu. Se fosse um daqueles cobóis do cinema que faziam um risco no cano por cada adversário derrubado, precisaria de uma espingarda bem comprida para caberem lá todos.
De medalha em medalha e de louvor em louvor, a reputação de Marcelino da Mata foi crescendo. A lenda também. Os inimigos receavam-no e os camaradas de armas olhavam-no com respeito. A verdade é que Marcelino ajudou a construir a própria fama. Nunca se coibiu de acrescentar zeros às perdas inimigas.
Foi sendo promovido por valor. Em 1972, era alferes com a especialidade comando. Passa a ser o responsável pelo IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) dos cursos de comandos. Era a última fase de treino, feita no mato em missões reais.

Em 21 de abril de 1971, por proposta do general António de Spínola, Marcelino da Mata foi agraciado outra Cruz de Guerra de 1ª Classe. «No decorrer de uma operação (Mar Verde) excecionalmente difícil e em que, face ao aparecimento de situações imprevisíveis, pôs à prova as suas invulgares qualidades de decisão, de desembaraço e de inultrapassável espírito de missão. Tendo morrido em combate, pouco depois do assalto a um aquartelamento inimigo, o comandante do Grupo que desencadeara a ação, foi o Sargento Marcelino quem assumiu o comando das forças executantes. Face à resistência que o inimigo ofereceu em diversas ocasiões, o Sargento Marcelino, pessoalmente, causou ao inimigo elevado número de baixas, atuando com uma coragem e decisão verdadeiramente notáveis, sendo-lhe devido o êxito total da ação, que decorreu sempre com iminente risco de vida».

Dois dias depois do 25 de Abril de 1974, foi ferido numa explosão e evacuado para o Hospital Militar Principal, em Lisboa.
Hoje, Marcelino da Mata é tenente-coronel graduado, na situação de reforma extraordinária. Julga-se que é o oficial do Exército Português que mais condecorações recebeu por valor excecional em combate. Aos louvores, perdeu a conta − «uns dizem que foram 47, outros 52».



domingo, 5 de maio de 2013


                                 AMÍLCAR CABRAL

                                        XXIV

     A AFRICANIZAÇÃO DA GUERRA



Os portugueses recrutavam há vários séculos africanos para as suas fileiras. Os negros estavam adaptados aos terrenos em que lutavam e conheciam-nos bem. Eram relativamente imunes à malária e a outras doenças tropicais que fragilizavam os militares europeus. Em algumas ocasiões chegaram a ser considerados os melhores soldados do Império. Saíam baratos, o que tinha uma importância fundamental para as finanças do governo. Lembre-se que a guerra colonial chegou a consumir 40 por cento do orçamento do Estado Português. Por outro lado, a divulgação das baixas dos militares africanos produzia na opinião pública portuguesa um impacto bem menor que a dos soldados brancos.
Para os mobilizar, os comandantes portugueses exploravam habilmente as rivalidades históricas. Os fulas e os mandingas detestavam-se há mais de um século. Note-se que os fulas, no século XIX, ajudaram os colonialistas franceses e portugueses a destruir o império Mandé. Ora, os mandingas constituíam, a par dos balantas, a espinha dorsal da guerrilha do PAIGC. Os serviços de propaganda portugueses insinuavam que a vitória da guerrilha seria a vitória dos mandingas e que os fulas se iriam sentir em desvantagem numa eventual Guiné independente, tanto mais que Sekou Touré, o presidente da vizinha Guiné-Conakry, era também mandinga. Muitos dos fulas alistados sob a bandeira das quinas apresentaram-se voluntariamente.
O número de soldados negros utilizados na luta contra o PAIGC cresceu progressivamente. Seriam 1.000 em 1961, cerca de 4.000 em 1966 e 7.500 perto do final da guerra. Nestas contas não entram os efetivos das unidades paramilitares de milícia nem os guias, carregadores e outros auxiliares contratados pelo nosso exército.
Alguns destes militares bateram-se ao longo de toda a guerra de independência, o que seria impensável para soldados metropolitanos destacados na Guiné.
Os combatentes negros eram enquadrados em companhias africanas. Começaram por ser três, mas o seu número foi aumentando.
Em 1966 foram criados os Pelotões de Caçadores Nativos. Cada um contava 30 a 40 elementos, comandados por um alferes.  De início eram sete, mas em 1968 já se aproximavam das duas dezenas.
O enquadramento dos comandos africanos seguiu um trajeto peculiar. Os comandos metropolitanos começaram cedo a recorrer aos serviços de militares do recrutamento local, beneficiando do conhecimento que tinham do terreno, das línguas e dos hábitos das populações. Os melhores combatentes iam sendo integrados em equipas que se tornaram mistas.
No início do consulado de Spínola os comandos negros foram agrupados em companhias comandadas por africanos apoiados por um capitão comando metropolitano do quadro permanente e por um sargento branco. Em 1973 foi constituído o Batalhão de Comandos da Guiné. 
     Ficaram famosas a sua indisciplina nas horas de folga e a sua eficácia em combate. A valentia de alguns oficiais africanos como o capitão João Bacar Djaló, morto em combate, e Marcelino da Mata, ainda vivo e a morar em Portugal, entrou no domínio da lenda.
Curiosamente, os militares africanos do exército português alcunharam o general Spínola de “Caco Baldé”. Julgo que “caco” se refere ao famoso monóculo do comandante-chefe. De “baldé” sei apenas que é um nome comum na Guiné.
    O Acordo do Alvor obrigou as forças armadas portuguesas a desarmar as tropas africanas sob o seu controlo. A maioria desses combatentes ficou na Guiné após a independência e muitos foram passados pelas armas.

sábado, 4 de maio de 2013


                  AMÍLCAR CABRAL

                               XXIII
          
               UM TEXTO DE ALPOIM CALVÃO

              OPERAÇÃO “GATA BRAVA”
  (transcrito com modificações mínimas do livro “De Conakry ao M.D.L.P.”)


Nos primeiros dias de fevereiro de 1970, recebeu-se no Quartel General do Comandante Chefe em Bissau uma informação referente ao transporte, num barco a motor, de Boké para Kadigné, do elemento inimigo Marcel (nome de código). Dizia ainda que a data provável do transporte seria 25.
Fui encarregado de planear e executar a operação. Armou-se uma emboscada à entrada de Kadigné na noite de 24 para 25, com dois botes de borracha e oito homens. Contudo, a neblina cerrada que se verificou fez malograr a tentativa.
No princípio de março, nova informação referia o movimento inverso de Marcel, desta vez para o dia 7.
  Embarcámos na lancha de fiscalização grande “LIRA” às 19.00, largando em seguida o navio para a foz do Cacine e deu ferro junto à marca SAMBA, dia 6, às 01.30.
Foram lançados à água dois botes de borracha, sendo o primeiro comandado por mim e o outro pelo segundo tenente Barbieri, num total de oito homens. Às 03.00 os botes largaram da LIRA, que forneceu apoio radar para a entrada do canal. O percurso foi executado com os motores a trabalhar a baixo regime de rotações e depois de terminado o apoio radar, a navegação fez-se por bússola, aproveitando ainda a enchente. Pelas 05.30 atingiu-se o ilhéu Calebe, emboscando os dois botes numa abertura de tarrafo que tinha sido feita durante a Operação Nebulosa, realizada em agosto, e que se mantinha desconhecida do inimigo, como se demonstrou ao encontrar no local dois sacos de ração de combates que lá tinham sido deixados, a quando da realização da citada operação.
Os botes ficaram com as proas voltadas para o exterior, prontos a largar.
Às 08.00 a maré começou a vazar e às 08.10 contactou-se com uma parelha de FIAT`s que, depois de fazer um reconhecimento visual, informou que o N/M BANDIM não se encontrava em Kadigné.
Resolveu-se aguardar pela maré da noite e cerca de duas horas depois os botes já se encontravam completamente em seco.
Pelas 16.00 a água da enchente começou a penetrar no esteiro aonde os botes se encontravam e pelas 17.30 já estes flutuavam. Às 18.00, aproveitando o crepúsculo, aproximaram-se os botes da abertura de saída, para mais prontamente poderem entrar em ação se fosse necessário.
Às 19.00 horas ouviram-se vozes relativamente perto e o barulho de remos de uma canoa.
Às 19.10 começou-se a distinguir o ruído dum motor que se foi avolumando e pelas 19.30 avistou-se, a cerca de 200 metros, a silhueta do navio motor BANDIM que levava somente uma pequena luz acesa na casa do leme. Mandou-se arrancar com os motores. O bote nº1 colocou-se nos setores de popa do BANDIM, enquanto o nº 2 seguia a ocupar uma posição no través de estibordo. O bote nº 1 fez um tiro de lança granadas foguete (bazuca, LGF) a 150 metros de distância, tendo-se o rebentamento verificado muito perto do alvo, enquanto se abria fogo de metralhadora ligeira.  
O BANDIM respondeu com fogo de armamento ligeiro automático, guinando acentuadamente para a margem da República da Guiné.
Entretanto, continuou-se a fazer fogo de bazuca, obtendo-se um impacto em cheio ao terceiro tiro, manobrando os botes rapidamente, procurando manter uma posição desfasada de 90.º em relação ao objetivo.
Duma posição a oeste da vila de Kadigné, verificaram-se muitas tracejantes de metralhadora antiaérea – calculadas em número de seis – na direção aproximada do local do contacto, mas passando bastante altas. Desse mesmo ponto, foi feito tiro de artilharia ou de morteiro de grande calibre em vários azimutes, ouvindo-se um total de 20 rebentamentos, uns curtos, outros compridos, revelando uma certa desorientação. Simultaneamente e a norte desta posição, já na nossa ilha de Canefaque, fez fogo uma metralhadora pesada, com tiro tracejante, ao lume da água, bastante mais ajustada. Da canoa referida anteriormente, foi feito fogo de metralhadora ligeira sobre os botes, tendo contudo retirado rapidamente da zona de contacto.
O combate com o BANDIM continuou, obtendo-se outro impacto de LGF, que obrigou o alvo a começar a navegar em círculo, acabando por penetrar num esteiro, encalhando profundamente na posição e desaparecendo de vista. Perseguia-se a BANDIM por dentro do esteiro, obtendo-se novo impacto de LGF, aproximando-mos a cerca de 10 metros para o lançamento de granadas de mão. Do tarrafo foi feito fogo de arma automática, a que se respondeu com rajadas de metralhadora ligeira, abordando-se o navio.
Logo que se penetrou no N/M BANDIM, foram encontrados vários indivíduos mortos – posteriormente veio a verificar-se que eram seis – dois dos quais à entrada da casa da máquina e da casa do leme.
Procurou-se por entre os destroços as alavancas do comando da máquina, porém veio a verificar-se que o citado navio era manobrado da própria casa da máquina.
Desceu-se a esse compartimento com o intuito de engrenar os motores à ré, de forma a desencalhar o navio. Porém, depois do exame efetuado, verificou-se que a alavanca da manobra do motor não introduzia a marcha à ré, provavelmente por qualquer estilhaço que provocara o bloqueio da alavanca (uma conduta de gasóleo estava igualmente atingida por vários estilhaços, vertendo abundantemente).
Decidiu-se parar a máquina, com o intuito de rebocar o BANDIM apenas com a força de tração dos botes. Assim, foi lançado um cabo à ré do BANDIM, o outro de través, na proa do navio.
Porém, a maré já vazava desde as 20.30, pelo que o navio se encontrava perfeitamente encalhado. Face à impossibilidade de se processar o reboque, decidiu-se realizar a sua destruição.
Enquanto se procedia ao espalhar de gasolina pelos pontos inflamáveis do navio, terminaram-se as buscas ao porão, tendo-se abandonado o BANDIM com a certeza de que não transportava qualquer material. Os poucos colchões espalhados no porão deram indicação de que o navio não transportava muita gente.
O fogo foi iniciado por meio de uma granada de mão defensiva, lançada para o interior da casa das máquinas. O BANDIM começou a arder lentamente e só quando os botes alcançaram o meio do Rio Inxanxe se verificou uma explosão surda, seguida de altas labaredas. Quando se atingiu o ponto de reunião ainda se distinguia nitidamente o clarão do BANDIM.
O regresso a bordo da LIRA iniciou-se pelas 21.00. Chegou-se às 22.00 ao ponto de reunião e verificou-se que a LFG ainda não se encontrava no local. Tentou-se a comunicação, em VHF, durante duas horas, sem resultado. Pelas 23.50 ordenou-se à LFG caso ouvisse os botes para acender as luzes. Avistou-se em seguida no azimute 230 um clarão para lá do horizonte visual, cerca de 12 milhas da Marca Samba. Soltou-se um rumo para essa posição e em 070100 atracou-se à LFG LIRA, que uma avaria na máquina obrigara a fundear tão longe do local do ponto de reunião.
A destruição do BANDIM e a morte dos seis homens que o guarneciam lançaram uma certa confusão no inimigo, como se deduziu pelos seus comunicados na rádio. No espaço de seis meses tinham-se destruído dois barcos a motor do PAIGC prejudicando-lhe gravemente a frota de transporte.

sexta-feira, 3 de maio de 2013


                                              
                         AMÍLCAR CABRAL

                                    XXII

               OS TRÊS MAJORES

                                    

As expectativas criadas pelo general Spínola para a resolução política da guerra e as conversações estabelecidas com Léopold Senghor, presidente da República do Senegal e possível intermediário de Amílcar Cabral, alimentaram um certo otimismo em Bissau e em Lisboa.  
Tanto a convicção de que a política da “Guiné Melhor” atrairia cada vez maior número de habitantes, incluindo combatentes do PAIGC, como a análise que o estado-maior de Spínola fazia das clivagens étnicas do país permitiam esperar que um número considerável de militantes inimigos abandonasse as fileiras e aderisse à nova política portuguesa. A situação militar no terreno parecia agora relativamente favorável às forças coloniais. Era o momento de adotar iniciativas mais ousadas.
Em 1969, devidamente autorizado pelo primeiro-ministro português Marcello Caetano, Spínola amnistiou 92 militantes do PAIGC detidos nas cadeias de Bissau. O mais conhecido deles era Rafael Barbosa, apresentado pela propaganda oficial do partido como exemplo de firmeza e de resistência ao poder colonial em condições de cativeiro.
Todos os que foram libertados juraram previamente fidelidade a António de Spínola. Na Guiné daquele tempo os juramentos eram, de modo geral, levados a sério. Segundo o general, aqueles homens estavam sinceramente arrependidos e dispostos a contribuir para a construção da sua “Guiné melhor” ao lado dos militares portugueses.
Rafael Barbosa tinha sido preso em março de 1962 na sede clandestina do PAIGC, em Bissau. Seria a segunda figura do partido, logo a seguir ao secretário-geral. Competir-lhe-ia estabelecer ligações entre os militantes que permaneciam nas zonas urbanas do interior do território e conquistar novos elementos para o partido. Terá acedido a colaborar com a PIDE, passando a beneficiar de um tratamento privilegiado. Segundo António Tomás, era-lhe permitido deambular por Bissau e dormir na própria casa. Aparentemente, tornou-se um agente duplo, transmitindo pontualmente informações à direção do PAIGC em Conakry.
Ao tempo, eram comuns as deserções de militantes do partido. Fartos de anos de luta e de dificuldades no mato, havia quem aproveitasse o perdão concedido pelo general Spínola a todos que depusessem as armas. Os dirigentes do partido reagiram, tendo ocorrido fuzilamentos.
A situação era instável e havia quem se arrependesse de se ter arrependido. Alguns dos que se abrigaram à sombra da bandeira portuguesa quiseram ser readmitidos no PAIGC para voltarem a combater pela independência. Ia-se e vinha-se, entre Bissau e Conakry. Uns eram aceites de volta e outros passados pelas armas.
 A dada altura, o estado-maior de Spínola julgou ser possível desmobilizar boa parte da guerrilha instalada em Cantchungo (na altura conhecida como Teixeira Pinto), no chão dos Manjacos, na frente norte.
 Estabeleceram-se contactos entre as duas partes. Começaram por recados transmitidos pela população que circulava na zona. Naturalmente, tanto os portugueses como os revoltosos dispunham de informadores. As negociações progrediram e subiram de nível hierárquico, pelo menos do lado português. Como sinal da importância que o general dava a esta iniciativa, foram designados interlocutores os majores Joaquim Pereira (da inteligência), Passos Ramos e Osório Magalhães. Os encontros multiplicaram-se. Do lado da guerrilha, terá negociado André Gomes, um comandante que se notabilizara no ano anterior por chefiar o grupo de combate que atacou o aeroporto de Bissau.
A proposta de Spínola incluía a interrupção das hostilidades e a integração no exército português de todos os guerrilheiros que o quisessem fazer. O general obtivera do Ministério do Ultramar uma verba substancial destinada ao pagamento dos salários da nova incorporação.
As conversações prosseguiram e estabeleceu-se um clima de certa confiança. Os majores deslocavam-se desarmados e ofereciam presentes ao inimigo: dinheiro, bebidas, maços de cigarros e gravadores de som. Era outra maneira de fazer a guerra.
Ao ser informado dos acontecimentos, Amílcar Cabral alarmou-se. Estava perante um aliciamento à traição em grande escala. Enviou para a frente norte Luís Correia, o responsável dos serviços secretos do PAIGC. Nasceu então a ideia de capturar o general Spínola, que tinha comparecido a um encontro com os guerrilheiros e prometera voltar.
    Conta-se que Luís Correia conferenciou com os comandantes locais e preparou uma armadilha destinada a prender ou eliminar fisicamente o general português. 
    Spínola não compareceu ao encontro. Logo que os majores Pereira, Ramos e Magalhães saíram das viaturas, acompanhados do alferes Joaquim Palmeiro Mosca e de alguns soldados (todos desarmados) foram abatidos a tiro. Os assassinos esquartejaram os corpos à catanada antes de retirarem. Aconteceu em Jolmete, a norte do Pelundo, junto ao Rio Cacheu.
Luís Cabral afirma que os guerrilheiros fingiram negociar para atraírem os oficiais portugueses. Parece mais provável que os comandantes militares da zona se tenham alarmado com a presença do enviado de Cabral e arrepiassem caminho. Há ainda quem sugira que os majores entabularam conversações com um determinado grupo de guerrilheiros e foram surpreendidos por outro, fiel a Cabral. Não se sabe tudo. Há pormenores da História que ficam parcialmente encobertos por uma névoa de silêncio.
António de Spínola ficou abalado com o sucedido. Sentiu-se responsável pela morte dos seus colaboradores próximos. O general vinha de uma escola de guerreiros com padrões éticos elevados. Era inadmissível abater inimigos desarmados. Considerava que se ocupavam de uma missão de paz, o que não é de admirar. Muitas das guerras de ocupação das colónias portuguesas foram apelidadas de campanhas de pacificação.
Spínola não podia desistir de procurar uma solução política, negocial, para a guerra da Guiné e não o fez. É possível que a ideia de prender ou eliminar fisicamente o secretário-geral do PAIGC tivesse criado há muito raízes no espírito de alguns militares portugueses. Desenvolveu-se mais nessa altura. Perspetivava-se no horizonte a operação Mar Verde.


quinta-feira, 2 de maio de 2013


                      AMÍLCAR CABRAL          

                                           XXI

              O CONSULADO DE SPÍNOLA




As características geográficas do território e a unidade e organização da guerrilha obrigaram os comandos militares portugueses a colocar na Guiné um número de soldados em clara desproporção com a superfície da colónia e o número dos seus habitantes. De um total de 79.823 efetivos militares metropolitanos que se encontravam em 1968 nos três Teatros de Operações, 37.547 estavam colocados em Angola, 22.717 em Moçambique e 19.559 na Guiné. Os números totais de soldados mortos nas três frentes, entre 1961 e 1974 foram de 3.258 em Angola, 2.962 em Moçambique e 2.070 na Guiné.
Em Maio de 1968, Schultz foi substituído. Teve início o consulado de Spínola.
António de Spínola encarava de maneira diferente a guerra de guerrilha. Tinha lido o Livro Vermelho de Mao Tsé Tung e outras obras populares entre os nacionalistas e os estudantes universitários europeus de  esquerda.
Procurou combinar os aspetos militares e sociais. Não seria preciso inovar, mas apenas adaptar os conhecimentos e experiências de outras guerras de guerrilha à realidade geográfica e social da Guiné.
O objetivo era criar uma ligação de simpatia e mesmo de gratidão entre o exército e a população. Spínola contava com um grupo de oficiais preparados para a guerra antissubversão em Lisboa e em estágios efetuados nos Estados Unidos e em vários países europeus da NATO. Tratava-se de militares corajosos, empenhados e ambiciosos: Carlos Fabião, Otelo Saraiva de Carvalho, Manuel Monge de Lima, Nunes Barata, José Blanco, Jorge Moreira da Costa, Carlos Azeredo e outros. Ficaram conhecidos como os rapazes de Spínola. Foi com eles que o general elaborou a sua estratégia de combate.
As forças armadas deixaram de ter um papel exclusivamente militar. Deviam também colaborar com as populações nas áreas da assistência sanitária e do ensino. A guerra da Guiné era essencialmente psicológica. Passava pela conquista das almas, a qual não poderia ser feita pela força mas sim pela persuasão. A ação de contra subversão visava afastar as populações dos movimentos de libertação, de modo que deixassem de apoiá-los.
Tal como tinha feito Amílcar Cabral, Spínola estudou a composição étnica dos povos da Guiné. Acabou por ser traçado um mapa colorido do território. As zonas azuis indicavam a presença de populações favoráveis aos portugueses. Eram sobretudo fulas e viviam a leste. As áreas vermelhas estavam controladas pelo inimigo, enquanto as amarelas eram áreas de transição e de equilíbrio instável entre as forças em luta. Para fins de bombardeamento, não havia distinção entre civis e militares nas regiões vermelhas.
Nas áreas azuis eram construídos os aldeamentos estratégicos semelhantes aos que ficaram famosos na guerra do Vietname. Eram para lá conduzidas as populações que o exército pretendia cativar. Esta estratégia desertificava territórios amplos, facilitando as operações de busca e destruição, geralmente efetuadas por tropas especiais helitransportadas.
No campo político, o general português procurou explorar as fraquezas e as contradições inerentes à formação do PAIGC. Estimulou o ódio aos cabo-verdianos e procurou obter a simpatia de alguns setores da população, como os muçulmanos (em especial os fulas) que constituíam a maioria religiosa do país e nunca tinham apoiado decididamente Amílcar Cabral. Lançou um projeto ambicioso, designado “Por uma Guiné melhor”. Destinava-se a compensar, em parte, o abandono a que os sucessivos governos de Lisboa tinham votado a sua colónia na África Equatorial.
A fatia que o Orçamento do Estado Português dedicava à Guiné engordou substancialmente. Foi possível abrir estradas novas. Alcatroaram-se 500 quilómetros das já existentes. Levantaram-se pontes e melhoraram-se as condições de funcionamento de alguns portos. Construíram-se 8.000 habitações e melhoraram-se seis dezenas de tabancas (aldeias). A rede escolar e as estruturas sanitárias que serviam a população foram objeto de uma atenção desconhecida até à data. Como aconteceu simultaneamente e em escala maior em Angola e Moçambique, a guerra tornou-se um fator de desenvolvimento do território.
António de Spínola estava atento ao que se passava no mundo. Aprendeu também com os teóricos ingleses e franceses da fase tardia da descolonização.
A melhor maneira de conter os nacionalismos africanos nascentes não consistia em europeizar as populações, integrando-as nas legislações nacionais e atribuindo-lhes direitos e deveres semelhantes. Era preferível enquadrá-las nas estruturas tribais reabilitadas.
Spínola procurou dignificar a autoridade tribal e inventou o Congresso dos Povos da Guiné. Em 1970, o primeiro Congresso reuniu representantes de fulas e mandingas. Reconhecendo a justeza das reivindicações mandingas, foi-lhes permitido eleger os próprios régulos, em lugar dos chefes fulas impostos pela administração colonial. Era a primeira vez que tal acontecia no chão mandinga de Farim – Oio. No ano seguinte, o Congresso abriu as portas a todas as etnias. 
Spínola implementou na Guiné um conceito quase global de guerra. Aos componentes civil e militar eram atribuídas importâncias quase iguais.
 No começo da sua governação, o PAIGC sofreu alguns reveses. Foram retiradas populações à guerrilha. Os combatentes nacionalistas viram o seu escudo humano reduzido.
 Os bombardeamentos tornaram-se mais fáceis e boa parte das estruturas trabalhosamente construídas pelos guerrilheiros nas zonas libertadas foram destruídas. O Exército Português abandonou posições isoladas e difíceis de abastecer, como Madina do Boé, e concentrou os seus efetivos nas aldeias fortificadas e nas grandes povoações. Durante algum tempo, a situação militar esteve equilibrada.
 A pressão diminuída sobre as forças armadas portugueses assentava, em parte, em fissuras sociais que se projetavam na guerrilha. Começou a questionar-se a continuação do esforço de guerra e aumentou consideravelmente o número de deserções.
   Estavam abertas as portas para a negociação política.


quarta-feira, 1 de maio de 2013


                    AMÍLCAR CABRAL                          
                                    XX

                A ZONA NORTE


                              
 Em 1966, como a guerrilha na zona norte, na área de Morés, era menos intensa e eficaz do que nas zonas sul e leste, Amílcar Cabral decidiu ampliar aquela frente de combate. Deslocou mais combatentes para a região e pediu à República do Senegal que incrementasse o seu apoio. Luís Cabral foi nomeado responsável pelas ligações com os homens de Senghor.
 Morés, situada nas florestas do Oio, no Centro-Norte, é habitada pelos Oincas, um subgrupo de mandingas com reputação de coragem e tradição de resistência às tropas coloniais. Já Teixeira Pinto, na segunda década do século XX, encontrara dificuldades em os dominar. A vegetação e o relevo ajudavam os guerrilheiros. 
 Morés tornou-se a base mais importante do PAIGC na zona norte. Foi um dos pontos em que se tornaram evidentes algumas das insuficiências de preparação dos guerrilheiros, nomeadamente no relacionamento com as populações locais. Osvaldo Vieira era o chefe do setor e Inocêncio Kani o responsável pela base. O excesso de disciplina imposto aos combatentes e às populações foi reprovado pelo secretário-geral e pelo seu meio-irmão Luís Cabral.
 Para realçar a importância da frente norte na estratégia do PAIGC, Amílcar Cabral deslocou-se à tabanca de Djagali, na margem esquerda do rio Farim, a 4 de Junho de 1966 e fez ali um comício. As tropas coloniais dispunham de informadores. Erraram por um punhado de horas. Às seis da manhã do dia seguinte, a aviação portuguesa arrasou Djagali, matando alguns civis. O líder do PAIGC já não se encontrava no local.
 Convinha ao partido publicitar no estrangeiro a sua luta. O jornalista italiano Piero Nelli teve oportunidade de filmar uma emboscada ao inimigo, encomendada de propósito. O combate foi filmado na estrada Mansoa-Mansabá, onde se efetuavam trabalhos de alcatroamento, protegidos pelo exército português.
 As armas e munições que chegavam à Região Norte tinham de passar pelo Senegal, que ia criando algumas dificuldades burocráticas à guerrilha guineense. Assim, enquanto parte do material era levado de forma legal e acompanhado por escoltas militares senegalesas, outra parte era contrabandeada como se se tratasse de mercadoria. A partir da fronteira, as armas e munições eram transportadas por colunas de militares que escolhiam trilhos escondidos para não serem detetados pela aviação portuguesa. Ainda assim, as munições faltavam pontualmente.
 A zona norte serviria de palco para um acontecimento que sobressaiu de entre os múltiplos dramas da Guerra da Guiné. A partir do final de 1988, os serviços secretos de Spínola tentaram aproveitar o descontentamento e o desânimo de alguns líderes locais do PAIGC para os convencer a trocar de fardamento. Seriam integrados nas forças armadas coloniais. Entre meias verdades e meias mentiras, informação e desinformação, armou-se a teia em seriam apanhados alguns oficiais superiores do Exército Português.