DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A MINHA PRIMEIRA VIAGEM NO GIL EANNES



Os portugueses pescam bacalhau, pelo menos, desde o sec. XV.
As lutas pelo controle das áreas de pesca são antigas. Em 1478, as autoridades dinamarquesas encerraram aos estrangeiros os pesqueiros da Islândia, que então controlavam. Os pescadores bretões, bascos, ingleses e portugueses tiveram de procurar outras zonas de pesca.
Os portugueses descobriram então a Terra Nova. Dizia-se que havia tanto peixe nos seus bancos que os cardumes chegavam a impedir o avanço dos barcos. Notícias destas, verdadeiras ou falsas, propagaram-se depressa e as frotas pesqueiras da Europa deslocaram-se para lá.



Esta carta data de 1546 e mostra a Terra Nova, que os portugueses consideravam terra sua. Por essa altura, dispúnhamos dos melhores cartógrafos do mundo. A região foi convenientemente deslocada para Leste, de forma a parecer localizada na metade do mundo que o Tratado de Tordesilhas reservava para nós.
Nos primeiros anos do século XVI saíam anualmente, só de Aveiro, 60 navios com destino à Terra Nova. Em 1550 eram 150. Eram muito mais do que os que partiam para a Índia.
Não vou contar agora a história da pesca do bacalhau, mas apenas o meu relacionamento com ela. Em Abril de 1970, embarquei no Gil Eannes.

Ia cumprir uma comissão de dois anos, que fazia parte do Serviço Militar obrigatório. A frota contava entre 5 e 6 mil homens. Entre eles, três eram militares.
Estamos aqui. Eu, o Comandante Gaspar, Capitão de Porto nos Mares da Terra Nova e Gronelândia e o meu colega e amigo Barros Pereira.


Deixamos Lisboa na Primavera e chegámos à Terra Nova creio que onze dias depois. É assim a entrada (ou, no caso, a saída) do porto de St. John`s.


A cidade não era bonita. São João da Terra Nova contava, na altura, cerca de 100.000 habitantes. Era o nosso porto, e os marinheiros aprendem depressa a apreciar o calor de um porto. Digam o que disserem os poetas, o mar é um deserto e só sabe bem perto de terra.

Calhou-me acompanhar os últimos anos da pesca à linha. Em 1970, se a memória não me falha, fizeram-se ao mar 31 navios de dóris. No ano seguinte eram 16. Depois, foram acabando. Os últimos navios de linha regressaram em 1974.
Em França, tinham acabado em 1950.



Cada navio de pesca à linha transportava entre 80 e 100 dóris, empilhados no convés. Os dóris eram botes de cerca de 4 metros com fundo chato.
Eu não estive só no Gil Eannes. Passei um mês no Vimieiro e, no ano seguinte, dois meses no Neptuno.



Em 1966 e 1967, o número de arrastões e de navios de linha foi semelhante. A partir daí, a pesca de arrasto impôs-se.
A frota foi sendo reconvertida e a pesca passou a fazer-se unicamente por arrasto. A seguir, os navios de arrasto lateral foram sendo substituídos pelos de arrasto de popa. Paralelamente, o peixe passou a ser congelado, em vez de salgado.

De madrugada, os dóris, eram arriados e afastavam-se até três milhas de distância. Esta fotografia foi tirada na Gronelândia, onde no Verão era sempre dia, e não sei se estava a arriar ou a alar o bote.


Os pescadores lançavam o Troll, uma linha comprida com centenas de anzóis espaçados por uma braça.
Os pescadores vinham, tradicionalmente, sobretudo das Caxinas (Póvoa do Varzim) ou da Nazaré.


Para escaparem à guerra das colónias, passaram a vir de todo o País. Serviam durante 5 anos seguidos ou seis intercalados. Era quase escravatura.
Alguns, ao embarcar pela primeira vez, nunca tinham visto antes o mar. Chamavam “verdes” aos caloiros.
Para os pescadores, a pesca à linha era uma actividade extraordinariamente dura.
Quando havia muito peixe, os pescadores chegavam a trabalhar vinte horas seguidas e a dormir três ou quatro horas por noite. Quando mais se pescava, mais demorada eram a escala e a salga do peixe. Os dias de temporal eram dias de descanso.
Quando o bacalhau começou a escassear, manteve-se rentável apenas graças aos baixos salários praticados.

Havia prémios de produtividade. Os bons pescadores, quase todos oriundos de povoações costeiras, chegavam a auferir uma paga razoável.
No final, havia que alar o aparelho e encontrar o navio. O capitão recolhia o ferro e navegava para sotavento, tendo também em atenção a corrente, se a havia. Procurava os dóris no lugar para onde a maioria tinha sido arrastada.


Como puderam reparar, quase todas as fotografias foram tiradas em dias de sol. No entanto, na Primavera, nos Bancos da Terra Nova, estava quase sempre nevoeiro. A navegação fazia-se com a ajuda de uma pequena bússola. Às vezes, os dóris perdiam-se e nem sempre eram fáceis de encontrar.



O peixe era metido a bordo. Seguia-se a escala e, logo a seguir, a salga



Quando o tempo estava claro, a aglomeração de navios em Virgin Rocks, nos Bancos da Terra Nova, em redor do Manolejo, fazia lembrar as luzes de uma grande aldeia. Manolejo é o aportuguesamento de Main Ledge, um rochedo em que se vê a rebentação. Ficaram sepultados naquelas águas dezenas de navios portugueses e não só.

Se a pesca falhava nos Rocks, os capitães conduziam os barcos para a costa da Gronelândia.

Nesta região, os icebergs eram muito frequentes. Os bancos de gelo nem tanto, mas impediam a passagem dos navios.





O Gil Eannes, para além da Assistência Médica propriamente dita, levava um capelão, que tratava das almas, e ainda isco congelado e correio. Tinha a proa reforçada para aguentar melhor o gelo.



A capacidade de internamento do navio era considerável. Julgo que, no total, eram 56 camas.
Existia um gabinete de Radiologia, um Bloco Operatório e ainda uma sala de fisioterapia e material para análises clínicas.



Algumas dessas capacidades estavam inactivadas, nos últimos anos. Eu assisti ao começo do fim do navio. O Grémio dos Amadores da Pesca do Bacalhau tinha pouco dinheiro. Não havia técnicos de fisioterapia nem quem soubesse fazer análises. O Bloco não funcionava porque não havia cirurgião nem anestesista.


Julgo que nunca tivemos mais de 20 doentes internados ao mesmo tempo.
Foram-nos buscar ao Exército, porque éramos os médicos mais baratos, e também os mais inexperientes que havia no mercado. Mudaram-nos do Exército para a Reserva Naval e deixaram-nos estar os dois anos no posto de Aspirante, para nos pagarem menos.



Vêm-se aqui doentes a chegarem para a consulta.


Quando alguém não se podia deslocar, o médico fazia visitas domiciliárias. Nesse dia estava bom tempo, mas lembro-me de uma vez em que tive de esperar três dias para poder voltar ao Gil Eannes.

A perda da independência nacional, em 1580, e o declínio do poderio ibérico, levaram a que portugueses e espanhóis fossem expulsos dos mares da Terra Nova.
A pesca do bacalhau foi reiniciada apenas em 1885. Os portugueses já não sabiam apanhar bacalhau. Tiveram de reaprender.

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