DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 19 de dezembro de 2009

MALACA DE OUTROS TEMPOS


Malaca era terra de sonhos. O estreito a que dá nome separa a ilha de Sumatra da península da Malásia. Misturam-se ali as águas dos oceanos Índico e Pacífico. Disse-se e escreveu-se que, a meio do século XV, se falavam na cidade oitenta e quatro línguas diferentes.
As monções de Sudoeste e de Nordeste traziam embarcações de todos os géneros, carregadas de mercadorias. O Indico dava acesso ao Golfo Pérsico e ao Mar Vermelho. Comerciava-se com a Mesopotâmia, com Alexandria e com Veneza. A Oriente, ficavam as rotas de e para Cathay (China) e Cipangu (Japão). Os misteriosos léquios, ou guoses, vinham de parte incerta. Não eram chineses, japoneses, nem coreanos. A gente de Malaca achava-os parecidos com os portugueses.
Nos templos, e fora deles, ouviam-se orações aos deuses conhecidos e a alguns ignorados. Desembarcava gente de toda a parte. Ninguém perguntava a ninguém quem era ou de onde vinha. Bastava discutir o preço dos bens a trocar.
Sucessivos impérios disputaram o controle do comércio no estreito. Afonso de Albuquerque, um dos portugueses mais ilustres de sempre, tão grandioso sobre as ondas como Alexandre e Napoleão em terra firme, chegou a Malaca em 1511 e tomou a cidade, avisando previamente os seus oficiais de que a conquista de nada valeria se os comerciantes locais, os produtores de riqueza, fossem hostilizados.
Albuquerque nunca comandou, ao mesmo tempo, mais de mil e quinhentos marinheiros. Com eles e com os seus canhões, encerrou as portas do vasto Oceano Indico. Só passava quem falava português ou pagava para entrar ou sair. O grande almirante lançou as bases do primeiro Império Português, o Império Comercial do Oriente, que havia de durar 130 anos.
Malaca mudou várias vezes de mãos. Foi conquistada pelos holandeses por volta de 1641 e, mais tarde, tomada pelos ingleses. Aos poucos, foi perdendo a importância comercial.
No século XIX era de novo governada por holandeses, mas nada restava da grandeza antiga. Contaria umas cinco mil almas, de sangue tão misturado que poucos se atreveriam a classificar-lhes a raça.
A terra de sonhos passara a ser terra de sono. O pequeno grupo de missionários portugueses exercia o culto na igrejinha de Nossa Senhora do Rosário. A igreja de S. Paulo fora transformada em depósito de munições.

Referências:
Pintado, Manuel. Um passeio por Malaca antiga, Instituto cultural de Macau, Macau, 1990.
Trabulo, António. Eu, Camillo, Parceria A. M. Pereira, Lisboa, 2006.
Fotografias e gravuras:
Pintado, Manuel. Um passeio por Malaca antiga, Instituto cultural de Macau, Macau, 1990.
História de Portugal, Volume 4. Publicações Alfa. Lisboa, 1983.

Artigo já publicado no Milhafre








Túmulo vazio de S.Francisco Xavier

MOÇÂMEDES ANTIGA



A costa de Moçâmedes foi explorada por Diogo Cão em 1485. O navegador assentou um padrão no Cabo Negro e outro mais a Sul, no Cabo da Serra, em território da actual Namibia. O que resta do padrão do Cabo Negro está exposto no átrio da Sociedade de Geografia, em Lisboa.
A povoação de Moçâmedes foi fundada num oásis situado na Angra do Negro. Começou por ser um presídio para degredados.
O clima era benigno e havia terras férteis. Existiam no Brasil, nessa altura como noutras, portugueses na miséria. Viviam-se tempos de agitação social e a colónia lusitana de Pernambuco era hostilizada. Bernardino Abreu e Costa, miguelista exilado em Pernambuco, dispôs-se a dirigir uma colónia agrícola. O governo de Lisboa precisava de brancos em Angola e proporcionou-lhes meios de transporte. A barca “Tentativa Feliz”, protegida pelo brigue “Douro”, fundeou em Moçâmedes em 1849 trazendo perto de 180 portugueses, entre homens, mulheres e crianças.
A instalação dos colonos processou-se com alguma dificuldade. Mesmo assim, como a crise social em Pernambuco se agudizava, em Novembro de 1850 desembarcaram mais 107 emigrantes. A vila de Moçâmedes foi construída junto à praia, de acordo com um plano simples e geométrico. Quatro ruas paralelas entre si eram cortadas por travessas e formavam quarteirões regulares. No final do século XIX já havia iluminação a petróleo. As casas, de um só piso, tinham quase todas quintal.
Os habitantes de Moçâmedes aproveitaram os terrenos de aluvião das margens dos rios Bero e Giraúl. Giraúl quer dizer “fim do caminho”. Eram terras férteis mas escassas. Caminhando durante uma hora, chegava-se às Hortas, na margem do rio Bero. O Bero era também chamado Rio dos Mortos. Morto era ele. Só corria no tempo das chuvas. No resto do ano era preciso cavar buracos na areia para alcançar água. O sítio tinha muita vegetação. A gente das Hortas vivia da produção de aguardente. Dispunha de plantações de cana-de-açúcar, de máquinas de moagem e de alambiques. A técnica fora trazida do Brasil.
Abundavam as árvores de fruta. Viam-se lindos pomares de laranjeiras e pessegueiros. A pereira e a macieira também se davam bem. As oliveiras desenvolviam-se, e havia algumas vinhas de bacelo.
Para Leste, numa distância de cem milhas, a terra elevava-se progressivamente até alcançar a uma parede sólida com mais de mil metros de altura. Era a serra da Chela. No alto, o terreno fazia-se plano e o ar refrescava.
Na zona entre a serra e o mar vivia uma população dispersa de gentios. Viam-se nas ruas da vila. Vinham comerciar. Vendiam peles, galinhas, ovos e mel. Compravam panos, missangas e vinho.
Não dispondo de mais espaços de cultura, os colonos desenvolveram o comércio e a pesca. O mar era rico em peixe. Não era possível consumi-lo todo. Os pescadores salgavam-no e punham-no a secar em grades, ao sol. Depois acondicionavam-no em fardos que os comerciantes vendiam aos negros do planalto. A vila foi progredindo.
Os de Moçâmedes exportavam gado para longe. Não o criavam, porque não havia pastos na região. Recebiam-no dos negociantes que o compravam no interior.
Ali chamavam funantes aos que andavam pelo mato a comerciar. Aquela gente ia a toda a parte. Deixava as cidades costeiras, subia as margens dos rios secos e, às vezes, fixava-se. Havia povoações espalhadas por uma grande área do interior. Um grupo de pescadores algarvios estabeleceu-se em Porto-Alexandre, mais a Sul, na costa deserta.
Que eu saiba, na História da colonização portuguesa, Moçâmedes foi a única cidade portuguesa desenvolvida por colonos repetentes, por gente de torna-viagem.

Referências:
Moraes, J.A. da Cunha, Álbum photographico e descriptivo, África Occidental. David Corazzi Editor, Lisboa, sem data.
Trabulo, António. Os Colonos, Esfera do Caos, Lisboa, 2007.
Fotografias: Moraes, J.A. da Cunha, Álbum photographico e descriptivo, África Occidental. David Corazzi Editor, Lisboa, sem data.

(Artigo já publicado no Milhafre.)



terça-feira, 15 de dezembro de 2009

CAMILO NO PANTEÃO NACIONAL




No mês de Junho de 1910, irão contar-se 120 anos sobre a morte de Camilo Castelo Branco. Não se poderá falar de comemoração porque os suicídios não se comemoram, mas entendo que a data deverá ser assinalada.
O século XIX permitiu fixar as bases da língua portuguesa actual. Essa obra deve-se a escritores de génio como Garrett, Camilo e Eça de Queirós (que Alexandre Herculano me perdoe...) e a grandes poetas como Antero de Quental .
Neles enraíza tudo o que de melhor se escreveu em Portugal, desde então.
Entre esses grandes vultos, nenhum foi tão genuinamente português como Camilo, tão apegado à fala e aos costumes da nossa gente. Garrett e Eça correram mundo e receberam influências daqui e dali. Camilo raramente terá postos os pés fora do solo pátrio. É nas suas páginas que mais claramente se sente o pulsar dos corações portugueses.
O seu corpo foi depositado no Jazigo de Freitas Fortuna, no Cemitério da Irmandade da Lapa, no Porto.
É tempo de os seus restos mortais serem transladados para o Panteão Nacional, onde já repousa Garrett. Proponho iniciar na Internet um movimento de recolha de assinaturas destinado a pressionar a ministra da Cultura nesse sentido.
António Trabulo

domingo, 6 de dezembro de 2009

SALAZAR E EU





António de Oliveira Salazar foi o único homem cuja morte festejei. Não me gabo disso. Ia nos 28 anos e não me libertara ainda de certa visão maniqueísta do mundo. Hoje, não celebraria a morte de ninguém.
Fiz uma festa, à noitinha, com o pessoal das máquinas, que era todo de Esquerda. Navegávamos a bordo do navio-hospital Gil Eannes, onde eu cumpria o serviço militar obrigatório.
Juntamente com o meu colega MBP, pressionámos o capelão para não rezar missa por Salazar. O padre era impressionável. Missa, tinha de haver, mas, durante a homilia, seguida por toda a frota bacalhoeira através dos altifalantes, o celebrante foi parco em elogios e parecia quase estar a pedir desculpa por rezar por aquela alma.
Muitos anos mais tarde, escrevi e publiquei O Diário de Salazar.
Os meus amigos de Esquerda acusaram-me de deriva direitista. Os meus poucos amigos de Direita lastimaram a ausência de encómios ao ditador.
Eu fiquei contente comigo, quando reli o livro.
Os homens públicos têm lado de dentro, e poucas coisas na vida são desenhadas em branco puro, ou em negro carregado. Balança quase tudo entre múltiplos tons de cinzento.
Salazar, de certo modo, inventou-se a si próprio, para poder liderar um Portugal desgastado pela insegurança dos últimos anos da Monarquia e de quase todos os da primeira República. Pôs habilmente de lado a questão do Regime e juntou os conservadores republicanos aos monárquicos. Estavam reunidas as condições para aparecer um Dom Sebastião sábio, seguro de si, incorruptível e alheio a dúvidas.
Governou ininterruptamente Portugal, de 1928 a 1968. Foi uma cadeira, e não uma revolução, quem o deitou abaixo.
Nenhum governo se aguenta tanto tempo sem ser apoiado pelas forças dominantes no País. Oliveira Salazar foi hábil em adivinhar tendências e em gerir equilíbrios.
Fernando Dacosta escreveu, no prefácio ao meu livro:
Salazar, um dos homens mais tristes, mais solitários que dirigiram o País, transformou o seu consulado no canto de cisne do seu gigantesco e secular império, soçobrado para sempre consigo.
O Portugal dele não existe mais, é uma ficção, um nevoeiro
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O FUNERAL DE VIRIATO








O que melhor conhecemos dos Lusitanos são relatos de combates. Os guerreiros agitavam as longas cabeleiras para atemorizar os inimigos e avançavam para a luta em saltos rítmicos, entoando cânticos bélicos. Eram-lhes reconhecidos tanto o valor como a inocência. Incapazes, em geral, de ultrapassar as divisões tribais para se apresentarem como uma nação em armas, deixavam-se seduzir facilmente pelas boas palavras do inimigo. “A política de luvas brancas de Aníbal, ou a dos romanos Cipião, Tibério Graco ou Sertório, valeu-lhes mais do que as vitórias militares que tinham obtido”.
As representações que chegaram até hoje ilustram a paixão dos povos ibéricos pela caça e pela guerra. Testemunham também a alegria de viver, com cenas em que se aliam frequentemente a música e a dança. São igualmente bem conhecidos os rituais que envolviam a morte.
Entre os Lusitanos, a cremação efectuava-se em piras. As cinzas eram encerradas numa urna que se colocava na sepultura.
No decorrer do século II A.C., tanto as armas que acompanhavam o cadáver como as ofertas eram queimadas. O que restava era depositado dentro das urnas, ou à sua volta. As falcatas (armas encimadas por uma espécie de foice, capazes de mutilar um inimigo, ou de o degolar) mostram-se dobradas nas escavações arqueológicas. As lanças aparecem torcidas e os elmos amolgados. As armas eram inutilizadas, para não voltarem a ser usadas pelos violadores de sepulturas.
O respeito pelos restos mortais inumados devia ser quebrado com frequência, já que se repetem inscrições em caracteres ibéricos que deverão corresponder a fórmulas mágicas destinadas a preservar o defunto de todos os males e a amaldiçoar os violadores de tumbas.
De um modo geral, as cerimónias funerárias eram simples. Revestiam-se de outra grandeza quando estavam em causa homens ilustres. Existe, pelo menos, um relato das honras fúnebres prestadas a Viriato.
“Quando da morte do caudilho Viriato o corpo deste chefe, adornado com as suas melhores vestes e armas, foi queimado numa alta pira; logo que o fogo se ateou, os guerreiros iniciaram uma dança frenética em redor da fogueira, enquanto esquadrões de cavaleiros evolucionavam em marchas fúnebres. Entretanto, os bardos cantavam as glórias do herói; depois, quando o fogo se consumiu, as honras continuaram com lutas sobre a sepultura, que envolveram duzentos pares”.

Referências:
António Arribas. Os Iberos. Editorial Verbo, Cacém, 1971.
Gravuras: idem.
Fotografia de guerreiro trasmontano: Religiões da Lusitânia, Museu Nacional de Arqueologia, 2002.


Já publicado em O BAR DO OSSIAN.

A CIDADE E O PORTO DE LOURENÇO MARQUES HÁ 120 ANOS


No final do século XXIX, os portugueses fundaram a povoação de Lourenço Marques (Maputo) numa língua de areia da baía que alguns chamavam da Lagoa e outros da Boa Morte, situada no ponto em que desaguam no Oceano Índico as águas dos rios Lagoa, Manhiça e Maputo. Os povos moçambicanos opunham-se à ocupação estrangeira, e a feitoria teve de ser muralhada.
Há cento e trinta anos, Lourenço Marques ocupava a área abrangida pelas ruas depois chamadas Consigliére Pedroso e Araújo, e era limitada pelas muralhas de uma fortificação. Os terrenos conhecidos pelo Cântano, e os ocupados pela Avenida da República eram cobertos de água, pelo menos durante as marés cheias.
A população da cidade não parava de crescer. Em 1882, o major de engenharia Joaquim José Machado foi encarregado de proceder aos primeiros estudos da linha de caminho de ferro. A área que Lourenço Marques ocupava não podia comportar o desenvolvimento que a construção da via férrea iria trazer à cidade.
Na altura, o governo geral da Colónia sediava-se na ilha de Moçambique. Em Lourenço Marques, mandava o governo do distrito, que se opunha ao derrube da fortificação. A população branca receava os ataques dos indígenas que viviam nos domínios da rainha de Marracuene.
O major Joaquim Machado considerava os receios infundados e assumiu sozinho, em 1885, a responsabilidade de extinguir as fortificações. As fundações assentavam em areia solta e o trabalho fez-se durante a noite, com rapidez e sem ruído. Uma grande extensão das muralhas foi escavada pelo lado de fora e derrubada. Ao amanhecer, os habitantes da cidade deram com boa parte da fortaleza deitada abaixo.
Deste modo, um acto de indisciplina de um militar português contribuiu para a expansão da cidade.
A gravura que apresentamos data de cerca de 1890 e mostra o aspecto do Maputo pouco tempo depois do derrube das muralhas.



Referências:


Duarte Veiga, O Mundo Português nº 9 e 10, Setembro e Outubro de 1934.

Joel Serrão, Dicionário da História de Portugal.

Fotografia: O Mundo Português, nº 62, Fevereiro de 1939.




Publicado anteriormente no blogue Nova Águia