CAMILO E EU
Sempre gostei de ler.
Em casa, na pequena biblioteca da catedral do Lubango, ou na biblioteca mais solene do Liceu, ia lendo. Julgo que considerava mais solene a biblioteca do Liceu porque os livros eram melhor encadernados e, de um modo geral, mais chatos.
A escolha não era grande. Muitas vezes, nem escolha havia e eu lia o que me aparecia em frente. Note-se que vivia numa cidade pequena em que não acontecia quase nada e num tempo em que não existia televisão nem Internet.
Lembro-me de ter soletrado, em estado de quase desespero por privação de livros, La Chanson de Roland. Ia nos treze anos. O meu francês era limitado e a progressão na leitura foi dolorosa. Muito podia o vício!
Ao longo do tempo, fiz e desfiz amizades no papel.
Não faltavam bons conselheiros nas estantes arrumadas atrás da sacristia, mas eram muitas vezes os prevaricadores que ocupavam a minha alma, e as dos outros miúdos.
D.H.Lawrence entusiasmou-me, creio que um ano depois de Alexandre Herculano me ter feito sonhar com a dama Lilith. Claro que eu pretendia também ser cavaleiro, talvez menos monge, mas nenhum dos rapazes da minha idade leu O Amante de Lady Chatterley com a intenção de aprofundar a cultura literária.
As lembranças não vêm arrumadinhas, umas a seguir às outras, por ordem cronológica, e é de lembranças que falo. Anos mais tarde, espantei-me ao reencontrar Lawrence e mal o reconhecer.
Fui amigo e cúmplice de muitos escritores. A maioria tinha morrido dezenas de anos antes de eu nascer. É uma das maravilhas da grande escrita. Encanta, por vezes, por séculos a fio.
Entusiasmei-me com Dumas filho e com Salgari e, um pouco mais tarde, estremeci de emoção com as aventuras de Fantômas. Não fixei o nome do seu criador.
Vai-se crescendo. Aos 17 anos, partilhei a solidão e a tristeza de António Nobre. Aos 18, encostei-me a José Régio.
No que respeita ao Romance, talvez por ter tido uma vivência africana na juventude, senti-me sempre mais próximo dos escritores americanos do que de muitos europeus. Acho que sentia a realidade descrita no Velho Continente como estranha, ou mesmo exótica.
Amado, Lins do Rego, Graciliano Ramos fizeram-me partilhar os seus sonhos e preocupações. Depois, Hemingway, Caldwell e Steinbeck tomaram-me conta dos sonhos e da necessidade de evasão. Por essa altura, já as minhas preocupações estéticas tinham começado. Algumas histórias curtas americanas estão entre os escritos que me deram mais prazer ler em toda a vida.
Os anos passam. Entusiasmei-me com Borges, e continuo entusiasmado. Conheci Rilke por volta dos 40 anos e lamentei não ter sabido dele mais cedo. Da gente da terra li, quase sempre com gosto, Garrett, Torga e Cardoso Pires. Reconheço e respeito o génio de Eça de Queirós, mas nunca me senti queirosiano. Caminhando no tempo, umas vezes para a frente e outras para trás, tive sempre dificuldade em alcançar o grande Camilo sem tropeçar no fantasma de Queirós.
Escrevo ao correr da pena, ou ao tamborilar dos dedos no teclado do computador e há-de haver nestas notas alguma injustiça e muitas omissões. Ainda assim, vou deixar o texto como saiu, pois pretendo fixar impressões e não elaborar uma antologia.
A introdução vai longa. Quando comecei, estava a pensar falar apenas de Camilo.
A dada altura da minha vida, resolvi aperfeiçoar o Português e escolhi os meus próprios mestres. Li e reli António Vieira. Conheci dúzia e meia de títulos de Aquilino. Passei teimosamente os olhos pelos livros de Manuel Bernardes, sem me permitir o luxo de desistir. Como é que desperdiça uma técnica literária tão apurada a descrever as torturas do Inferno? Por fim, apaixonei-me pela escrita de Camilo Castelo Branco.
Camilo é romântico. Aprecia os sentimentos carregados, o ciúme, a vingança, o desespero, que pedem um estilo declamatório e quase frenético. Exprime emoções fortes numa linguagem forte. Cria personagens poderosos. Dá às narrativas o ritmo apropriado, quase sempre com a tragédia a espreitar atrás de cada volta do enredo. Os protagonistas são movidos pela paixão e, muitas vezes, não querem saber do que se passa no mundo que os rodeia.
Foi um autodidacta que começou com os clássicos e só depois se chegou aos autores contemporâneos. Não revia a sua prosa com grande cuidado. Publicava-a, geralmente, como lhe saía. Nunca deixou de ser um escritor irregular, mas até em páginas menores plantou frases de génio.
Foi o primeiro homem, em Portugal, a viver apenas dos textos que publicava. Era pouco, e o escritor precisava de cama, mesa e roupa lavada. Proporcionou-lhos Ana Plácido. Encontrara-os também, em 1960, na cadeia da Relação do Porto.
Fialho de Almeida afirmou, sobre ele:
Raros escritores possuem, como Camilo, a intuição da língua em que convém tratar o assunto e o poder de inventar, para cada género de tema, o vocabulário e o estilo que lhes são próprios. Com Garrett e Camilo, a língua portuguesa enriqueceu e tornou-se mais flexível.
Disse ainda:
Outros como ele trabalharam a língua portuguesa e a souberam com intimidade igual e exuberância parecida; mas nenhum lhe deu aquela alma indómita, transfiltrando-lhe a pompa, o brilho, a energia e a graça em que ele a amoedou.
Camilo Castelo Branco foi sempre um escritor popular. Hoje, sobrevive nas estantes de muitas casas portuguesas, mas é lembrado sobretudo pelos eruditos. É outra maneira de morrer.
"Eu, Camilo" é uma biografia romanceada em forma de diário. Representa, acima de tudo, a homenagem a um Senhor da Palavra que enriqueceu e ajudou a fixar a língua da nossa Pátria.
Sempre gostei de ler.
Em casa, na pequena biblioteca da catedral do Lubango, ou na biblioteca mais solene do Liceu, ia lendo. Julgo que considerava mais solene a biblioteca do Liceu porque os livros eram melhor encadernados e, de um modo geral, mais chatos.
A escolha não era grande. Muitas vezes, nem escolha havia e eu lia o que me aparecia em frente. Note-se que vivia numa cidade pequena em que não acontecia quase nada e num tempo em que não existia televisão nem Internet.
Lembro-me de ter soletrado, em estado de quase desespero por privação de livros, La Chanson de Roland. Ia nos treze anos. O meu francês era limitado e a progressão na leitura foi dolorosa. Muito podia o vício!
Ao longo do tempo, fiz e desfiz amizades no papel.
Não faltavam bons conselheiros nas estantes arrumadas atrás da sacristia, mas eram muitas vezes os prevaricadores que ocupavam a minha alma, e as dos outros miúdos.
D.H.Lawrence entusiasmou-me, creio que um ano depois de Alexandre Herculano me ter feito sonhar com a dama Lilith. Claro que eu pretendia também ser cavaleiro, talvez menos monge, mas nenhum dos rapazes da minha idade leu O Amante de Lady Chatterley com a intenção de aprofundar a cultura literária.
As lembranças não vêm arrumadinhas, umas a seguir às outras, por ordem cronológica, e é de lembranças que falo. Anos mais tarde, espantei-me ao reencontrar Lawrence e mal o reconhecer.
Fui amigo e cúmplice de muitos escritores. A maioria tinha morrido dezenas de anos antes de eu nascer. É uma das maravilhas da grande escrita. Encanta, por vezes, por séculos a fio.
Entusiasmei-me com Dumas filho e com Salgari e, um pouco mais tarde, estremeci de emoção com as aventuras de Fantômas. Não fixei o nome do seu criador.
Vai-se crescendo. Aos 17 anos, partilhei a solidão e a tristeza de António Nobre. Aos 18, encostei-me a José Régio.
No que respeita ao Romance, talvez por ter tido uma vivência africana na juventude, senti-me sempre mais próximo dos escritores americanos do que de muitos europeus. Acho que sentia a realidade descrita no Velho Continente como estranha, ou mesmo exótica.
Amado, Lins do Rego, Graciliano Ramos fizeram-me partilhar os seus sonhos e preocupações. Depois, Hemingway, Caldwell e Steinbeck tomaram-me conta dos sonhos e da necessidade de evasão. Por essa altura, já as minhas preocupações estéticas tinham começado. Algumas histórias curtas americanas estão entre os escritos que me deram mais prazer ler em toda a vida.
Os anos passam. Entusiasmei-me com Borges, e continuo entusiasmado. Conheci Rilke por volta dos 40 anos e lamentei não ter sabido dele mais cedo. Da gente da terra li, quase sempre com gosto, Garrett, Torga e Cardoso Pires. Reconheço e respeito o génio de Eça de Queirós, mas nunca me senti queirosiano. Caminhando no tempo, umas vezes para a frente e outras para trás, tive sempre dificuldade em alcançar o grande Camilo sem tropeçar no fantasma de Queirós.
Escrevo ao correr da pena, ou ao tamborilar dos dedos no teclado do computador e há-de haver nestas notas alguma injustiça e muitas omissões. Ainda assim, vou deixar o texto como saiu, pois pretendo fixar impressões e não elaborar uma antologia.
A introdução vai longa. Quando comecei, estava a pensar falar apenas de Camilo.
A dada altura da minha vida, resolvi aperfeiçoar o Português e escolhi os meus próprios mestres. Li e reli António Vieira. Conheci dúzia e meia de títulos de Aquilino. Passei teimosamente os olhos pelos livros de Manuel Bernardes, sem me permitir o luxo de desistir. Como é que desperdiça uma técnica literária tão apurada a descrever as torturas do Inferno? Por fim, apaixonei-me pela escrita de Camilo Castelo Branco.
Camilo é romântico. Aprecia os sentimentos carregados, o ciúme, a vingança, o desespero, que pedem um estilo declamatório e quase frenético. Exprime emoções fortes numa linguagem forte. Cria personagens poderosos. Dá às narrativas o ritmo apropriado, quase sempre com a tragédia a espreitar atrás de cada volta do enredo. Os protagonistas são movidos pela paixão e, muitas vezes, não querem saber do que se passa no mundo que os rodeia.
Foi um autodidacta que começou com os clássicos e só depois se chegou aos autores contemporâneos. Não revia a sua prosa com grande cuidado. Publicava-a, geralmente, como lhe saía. Nunca deixou de ser um escritor irregular, mas até em páginas menores plantou frases de génio.
Foi o primeiro homem, em Portugal, a viver apenas dos textos que publicava. Era pouco, e o escritor precisava de cama, mesa e roupa lavada. Proporcionou-lhos Ana Plácido. Encontrara-os também, em 1960, na cadeia da Relação do Porto.
Fialho de Almeida afirmou, sobre ele:
Raros escritores possuem, como Camilo, a intuição da língua em que convém tratar o assunto e o poder de inventar, para cada género de tema, o vocabulário e o estilo que lhes são próprios. Com Garrett e Camilo, a língua portuguesa enriqueceu e tornou-se mais flexível.
Disse ainda:
Outros como ele trabalharam a língua portuguesa e a souberam com intimidade igual e exuberância parecida; mas nenhum lhe deu aquela alma indómita, transfiltrando-lhe a pompa, o brilho, a energia e a graça em que ele a amoedou.
Camilo Castelo Branco foi sempre um escritor popular. Hoje, sobrevive nas estantes de muitas casas portuguesas, mas é lembrado sobretudo pelos eruditos. É outra maneira de morrer.
"Eu, Camilo" é uma biografia romanceada em forma de diário. Representa, acima de tudo, a homenagem a um Senhor da Palavra que enriqueceu e ajudou a fixar a língua da nossa Pátria.
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