DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

                        

                                                                                                                                    PEREGRINAÇÃO


                                III                                 


         Fernão Mendes Pinto e os seus companheiros passaram mês e meio numa prisão de  Nanquim.  A cadeia era  grande  e comportaria  mais de quatro mil presos. 

        Na primeira noite, foram logo roubados de tudo o que levavam.  

                              

Decorrido esse tempo, o anchaci do feito, que era um dos juízes ordinários, julgou o requerimento do promotor de justiça. Considerados culpados, foram condenados a açoites públicos nas nádegas e à amputação dos polegares. Da mais pena que mereceriam, apelava por parte da justiça para o tribunal da relação de Batampina, de maior alçada. 

Dois portugueses morreram no seguimento da punição.

Depois de açoitados, foram levados para uma casa da cadeia “a modos de enfermaria”, onde jaziam muitos doentes e feridos, uns em leitos e outros no chão. Foram logo tratados com muitos medicamentos e lavagens. Os tratamentos foram feitos por homens honrados que Fernão Mendes Pinto compara aos irmãos da Misericórdia. Serviam ali aos meses por amor de Deus, provendo os enfermos de todo o necessário com abastança e limpeza.

Havendo onze dias que ali estavam em cura, aguardando a amputação dos dedos polegares, entraram certa manhã dois homens vestidos de cetim roxo trazendo varas brancas nas mãos. Distribuíram roupa e algum dinheiro pelos pobres. Ao avistarem os estrangeiros, quiseram saber das suas origens e da razão das suas prisões. Os portugueses disseram que eram mercadores vindos de Malaca que se dirigiam para o porto de Liampó e tinham naufragado junto aos ilhéus de Lamau, perdendo tudo. Depois, tinham sido presos como ladrões vagabundos e condenados.

Os homens das varas brancas escutaram-nos e pediram ao “escrivão do feito” mais informações. Vendo que para os açoites recebidos não havia já solução, fizerm uma petição de agravo ao chaém sobre o corte dos dedos. Eram procuradores dos pobres e providenciaram no sentido de os estrangeiros serem remetidos ao tribunal dos aitais da cidade de Pequim, para que se moderasse a sentença proferida contra eles.

                                 

 A seguir, Fernando Mendes Pinto fala das povoações e dos rios próximos de Nanquim. Durante uma viagem, na cidade de Pocasser, o chefe que os guardava deu licença para que três dos nove que fossem pedir esmola, com guarda de alabardeiros. A seguir, descreve com detalhes o templo de Tauhinarel Nadelgau, rainha do fogo que havia de queimar o mundo no seu final.

Navegando pelo rio em direção a Pequim, o aventureiro avistava populações cada vez maiores e ajuntamentos de embarcações enormes onde se vendia toda a qualidade de géneros.  

 


      Deu conta da especialização do trabalho chinês. Falando dos adens (patos), conta que uns tratavam da choca dos ovos, já por métodos quase industriais, outros de os criar e vender, enquanto alguns se encarregavam do negócio das penas, outros da cabidela e das tripas e alguns apenas da venda dos ovos. No que respeitava ao pescado, a diferenciação dos ofícios também era muito elaborada. Os trabalhadores eram sujeitos a fiscalização rigorosa por parte de entidades mais ou menos semelhantes às nossas câmaras municipais, sendo as infrações punidas com castigos físicos.

Por ocasião das feiras, a aglomeração de barcos constituía autênticas cidades. Eram disciplinadas, com “ruas” compridas e direitas. Todos os serviços disponíveis numa grande povoação eram ali oferecidos.     


               Esta imagem não é chinesa, mas tailandesa

Existiam barcaças de oração e outras carregadas de ídolos de madeira doirada, onde se vendiam também braços, pernas e cabeças de madeira para serem oferecidos em devoção. Outras carregavam caveiras de defuntos que eram adquiridas para que, quando alguém morresse, as levasse como oferta. Assim, as almas dos defuntos entrariam no céu acompanhados pelas antigas residentes das caveiras.

Viam-se barcaças com panos de luto, ostentando círios e oferecendo serviços de mulheres que choravam por dinheiro.

Noutras embarcações, representavam-se farsas, para diversão dos espetadores. A oferta era variada. 

Havia barcaças que transportavam jaulas com animais bravios que eram mostrados a quem pagava. Outras vendiam livros. Nessas, escreviam-se também cartas e petições.

Alguns barcos serviram de postos de enfermagem. Cuidavam-se nelas de “boubas”, com suadouros, e tratavam-se chagas e fístulas.

Fernão Mendes Pinto foge a falar da prostituição, mas, por vezes, as entrelinhas são eloquentes.

Havia nas barcas tudo o que em terra se poderia pedir ou desejar.

Em outubro de 1543, Fernão chegou a Pequim. Era capital da China, para onde ele e os seus companheiros tinham sido remetidos para apelação. Na prisão, deram-lhe logo as boas-vindas distribuindo bastantes açoites por todos os recém-chegados.

                        Esta é a Cidade Proibida.


         Passei algumas noites num hotel próximo dela há cerca de oito anos.  

Tive a oportunidade de visitar um segmento da Muralha da China. Fernão Mendes Pinto também o fez, mas em condições um pouco diferentes das minhas, e chamou-lhe Muro da Tartária. Enquanto eu viajei como turista, o nosso compatriota foi condenado a um ano de trabalhos forçados na sua reparação. Não chegou a cumprir a pena porque ocorreu, entretanto, uma invasão tártara.

Muito mais haveria a dizer sobre a China, mas não tenho o direito de vos maçar. Quem quiser ser mais bem informado, consulte a Peregrinação.

  Fernão Mendes Pinto referiu-se à Tartária e conta ter sido contactado pelo rei dos Tártaros para lhe prestar informações sobre a Europa e sobre Portugal. Tartária era o nome que se dava antigamente à Ásia Central e a partes da Sibéria. Tratava-se de um vasto país situado a norte e a oeste da China. 


   Conta Fernão Mendes Pinto o que lhe disseram dos portugueses na Tartária: Conquistar esta gente terra tão alongada da sua pátria, dá claramente a entender que deve haver entre eles muita cobiça e pouca justiça ... ... Assim parece que deve ser, por que homens que por indústria e engenho voam por cima das águas todas para adquirirem o que Deus lhes não deu, ou a pobreza neles é tanta que lhes faz esquecere a sua pátria, ou a vaidade  e cegueira que lhes causa a cobiça é tamanha que por ela negam a Deus e seus pais. 

 

   Macau foi incluída na Peregrinação. Por volta de 1535, os portugueses começaram a comerciar com o povoado. Cerca de duas décadas depois, alguns passaram a residir ali. Esta carta de Fernão Mendes Pinto, datada de 20 de novembro de 1555, é o primeiro documento redigido em Macau em língua portuguesa.   

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