PEREGRINAÇÃO
I
Fernão Mendes Pinto assistiu ao auge da expansão marítima portuguesa. Ainda vivia em 1580, quando Filipe II de Espanha se fez rei do nosso país.
A Peregrinação foi escrita entre 1569 e 1578, após o regresso do autor a Portugal. Segundo o próprio conta, a sua peregrinação, iniciada em 1537, durou 21 anos. Entre sortes e azares, o escritor e personagem terá sido feito cativo 13 vezes e vendido em 17 ocasiões.
Há cinco séculos, Fernão Mendes Pinto residia em Setúbal. É ele quem o relata, nas primeiras páginas do seu único livro.
O português antigo não é fácil de ler, mas dispomos, felizmente, de excelentes adaptações ao português moderno. É o caso da levada a cabo por Maria Alberta Menéres e publicada em 2001 pela Relógio D`Água e da fixada por Sérgio Guimarães de Sousa e datada de 2023 com a chancela da Assírio e Alvim. Colocaram a prosa da Peregrinação ao alcance de todos. Aprende-se que FMP, para além de ter sido, depois de Marco Polo, o europeu que mais informações recolheu e divulgou sobre o Oriente, é também um escritor extraordinário.
As histórias narradas neste livro davam para compor uma dúzia de romances de aventura e várias crônicas de viagem.
Curiosamente, a Enciclopédia Britânica inclui entre as obras-primas da arte universal apenas três produções portuguesas: Os Lusíadas, o políptico de S. Vicente de Fora e a Peregrinação.
Julgo que a obra de Fernão Mendes Pinto se situa entre o registo histórico e a ficção. As críticas ao comportamento de portugueses e orientais e as preocupações moralizantes repetem-se ao longo das suas páginas. Segundo Sérgio de Sousa, " A Peregrinação é a grande narrativa do submundo do imperialismo português".
Interessante, para a época, é não se vislumbrar qualquer sinal de racismo neste livro. O autor demonstra curiosidade na abordagem de raças e culturas diferentes, mas não as discrimina. Mostra-se faccioso apenas ao considerar falsas todas as religiões não cristãs.
Alguns episódios parecem preenchidos por imaginação pura. No capítulo 166, por exemplo, diz ter ouvido falar de povos chamados calogéns e fungaus, gentes baças com pés redondos como os dos bois e que tinham nas costas em baixo, quase na reigada dos lombos, um lombinho como dois punhos. É fácil lembrar os patagões, que outros navegadores terão inventado.
Sob o ponto de vista literário, a Peregrinação é um livro notável. Transcrevo parte do relato dum temporal, por o achar saboroso.
…Quis a fortuna que com a conjunção da lua nova de outubro, de que sempre nos tememos, veio um tempo tão tempestuoso de chuvas e vento que não se julgou por coisa natural. Como o escuro era grande, o tempo muito frio, o mar muito grosso, o vento muito rico, as águas cruzadas, o escasso muito alto, e a força da tempestade muito terrível, não havia coisa que bastasse a nos dar remédio, senão a misericórdia de Nosso Senhor…
Vamos agora às origens. É o próprio autor que relata ter crescido em Montemor-o-Velho numa casa pobre. Presume-se que tenha ali nascido, entre 1509 e 1511.
Conta que ano e meio após a morte de D. Manuel I, ocorrida em dezembro de 1521, quando Fernão contava dez ou doze anos, um tio lhe encontrou emprego em Lisboa, onde se esperava que a vida lhe corresse melhor.
Em 1524, em circunstâncias que não explicam, mas que reveste de dramatismo, escapou-se à pressa da casa em que trabalhava e embarcou numa caravela que se dirigia a Setúbal, para onde se deslocara a corte do rei D. João III, a fugir da peste. O moço estava nos primeiros anos da adolescência.
Frente a Sesimbra, uma caravela foi atacada por corsários franceses que afundaram a embarcação e aprisionaram os seus tripulantes. Duas semanas depois, por terem encontrado presas mais valiosas, os corsários desembarcaram os sobreviventes na praia de Melides, nus e descalços. Foram recolhidos e acarinhados em Santiago do Cacém.
Depois de recuperado, a FMP veio para Setúbal e pôs-se ao serviço do fidalgo Francisco de Faria, cavaleiro da Ordem de Santiago. A partir de 1527, foi moço de câmara de D. Jorge, filho bastardo de D. João II e Mestre de Santiago.
Terá sido setubalense durante cinco anos e meio. Deixou o emprego por achar que ganhou mal.
A seguir, durante perto de sete anos, nada conta de sua vida.
FMP escreve com ligeireza. Onde terá aprendido? Os nobres não sabiam ler nem escrever e os seus empregados também não. O Real Colégio dos Nobres de Lisboa seria fundado apenas em 1761. Além dos padres, quem sabia ler e escrever em Portugal eram os judeus.
À época, em Portugal, as únicas escolas que formavam letrados eram os seminários e os conventos. Por outro lado, os monólogos que preenchem imensas páginas da Peregrinação e chegam a ser maçadores fazem lembrar sermões. Não sou entendido na matéria, mas iria jurar que têm, senão estrutura, pelo menos influência dos sermões.
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