DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

 

                 PEREGRINAÇÃO

                                I

                   

Fernão Mendes Pinto assistiu ao auge da expansão marítima portuguesa. Ainda vivia em 1580, quando Filipe II de Espanha se fez rei do nosso país. 

A Peregrinação foi escrita entre 1569 e 1578, após o regresso do autor a Portugal. Segundo o próprio conta, a sua peregrinação, iniciada em 1537, durou 21 anos. Entre sortes e azares, o escritor e personagem terá sido feito cativo 13 vezes e vendido em 17 ocasiões.

   Há cinco séculos, Fernão Mendes Pinto residia em Setúbal. É ele quem o relata, nas primeiras páginas do seu único livro.

O português antigo não é fácil de ler, mas dispomos, felizmente, de excelentes adaptações ao português moderno. É o caso da levada a cabo por Maria Alberta Menéres e publicada em 2001 pela Relógio D`Água e da fixada por Sérgio Guimarães de Sousa e datada de 2023 com a chancela da Assírio e Alvim. Colocaram a prosa da Peregrinação ao alcance de todos.  Aprende-se que FMP, para além de ter sido, depois de Marco Polo, o europeu que mais informações recolheu e divulgou sobre o Oriente, é também um escritor extraordinário. 

As histórias narradas neste livro davam para compor uma dúzia de romances de aventura e várias crônicas de viagem.

         Curiosamente, a Enciclopédia Britânica inclui entre as obras-primas da arte universal apenas três produções portuguesas: Os Lusíadas, o políptico de S. Vicente de Fora e a Peregrinação.       

Julgo que a obra de Fernão Mendes Pinto se situa entre o registo histórico e a ficção. As críticas ao comportamento de portugueses e orientais e as preocupações moralizantes repetem-se ao longo das suas páginas. Segundo Sérgio de Sousa, " A Peregrinação é a grande narrativa do submundo do imperialismo português". 

Interessante, para a época, é não se vislumbrar qualquer sinal de racismo neste livro. O autor demonstra curiosidade na abordagem de raças e culturas diferentes, mas não as discrimina. Mostra-se faccioso apenas ao considerar falsas todas as religiões não cristãs.

         Alguns episódios parecem preenchidos por imaginação pura. No capítulo 166, por exemplo, diz ter ouvido falar de povos chamados calogéns e fungaus, gentes baças com pés redondos como os dos bois e que tinham nas costas em baixo, quase na reigada dos lombos, um lombinho como dois punhos. É fácil lembrar os patagões, que outros navegadores terão inventado.

       Sob o ponto de vista literário, a Peregrinação é um livro notável. Transcrevo parte do relato dum temporal, por o achar saboroso.

         …Quis a fortuna que com a conjunção da lua nova de outubro, de que sempre nos tememos, veio um tempo tão tempestuoso de chuvas e vento que não se julgou por coisa natural. Como o escuro era grande, o tempo muito frio, o mar muito grosso, o vento muito rico, as águas cruzadas, o escasso muito alto, e a força da tempestade muito terrível, não havia coisa que bastasse a nos dar remédio, senão a misericórdia de Nosso Senhor…

          Vamos agora às origens. É o próprio autor que relata ter crescido em Montemor-o-Velho numa casa pobre. Presume-se que tenha ali nascido, entre 1509 e 1511. 

Conta que ano e meio após a morte de D. Manuel I, ocorrida em dezembro de 1521, quando Fernão contava dez ou doze anos, um tio lhe encontrou emprego em Lisboa, onde se esperava que a vida lhe corresse melhor.

          Em 1524, em circunstâncias que não explicam, mas que reveste de dramatismo, escapou-se à pressa da casa em que trabalhava e embarcou numa caravela que se dirigia a Setúbal, para onde se deslocara a corte do rei D. João III, a fugir da peste. O moço estava nos primeiros anos da adolescência.

       Frente a Sesimbra, uma caravela foi atacada por corsários franceses que afundaram a embarcação e aprisionaram os seus tripulantes. Duas semanas depois, por terem encontrado presas mais valiosas, os corsários desembarcaram os sobreviventes na praia de Melides, nus e descalços. Foram recolhidos e acarinhados em Santiago do Cacém.

           Depois de recuperado, a FMP veio para Setúbal e pôs-se ao serviço do fidalgo Francisco de Faria, cavaleiro da Ordem de Santiago.  A partir de 1527, foi moço de câmara de D. Jorge, filho bastardo de D. João II e Mestre de Santiago.  


Terá sido setubalense durante cinco anos e meio. Deixou o emprego por achar que ganhou mal.

        A seguir, durante perto de sete anos, nada conta de sua vida.    

             FMP escreve com ligeireza. Onde terá aprendido? Os nobres não sabiam ler nem escrever e os seus empregados também não. O Real Colégio dos Nobres de Lisboa seria fundado apenas em 1761. Além dos padres, quem sabia ler e escrever em Portugal eram os judeus. 


À época, em Portugal, as únicas escolas que formavam letrados eram os seminários e os conventos. Por outro lado, os monólogos que preenchem imensas páginas da Peregrinação e chegam a ser maçadores fazem lembrar sermões. Não sou entendido na matéria, mas iria jurar que têm, senão estrutura, pelo menos influência dos sermões.

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