PEREGRINAÇÃO
II
Uma das dificuldades sentidas por quem lê a Peregrinação reside na identificação dos lugares, cidades, rios e países descritos. Por vezes, os nossos deturpavam-lhes os nomes. Outros são conhecidos por designações recentes, enquanto alguns perderam importância ao longo dos séculos.
Encontrei na Internet dois “sites” que permitem localizar a maioria das designações que eu tinha dificuldade em identificar. Uma é “O lugar no contexto – Pucau? Pucau?” A outra é uma tese de doutoramento da Faculdade de Geografia e História da Universidade de Santiago de Compostela que procura identificar e georreferenciar as entidades geográficas descritas na Peregrinação. Data de 2017 e o autor é Alfonso Rodríguez.
A 11 de março de 1537, Fernão Mendes Pinto partiu para o Oriente. Dois irmãos seus já tinham embarcado para a Índia. O autor não voltaria a referi-los.
Goa, segunda gravura da época.
Andou de mão em mão. Foi vendido, como escravo, a um grego que o negociou com um judeu sefardita que o levou para Ormuz, onde os portugueses o libertaram.
A seguir, acompanhou Pero de Faria a Malaca e dedicou-se ao comércio de tecidos.
Fernão Mendes Pinto dedica cerca de 40 capítulos da Peregrinação à Indochina, com relevância para a Birmânia. Passou por Arracão (ou Raquine), um estado birmanês, e por Aiutaia e Sucutai, antigos reinos siameses. O Sião (Sornau) tinha Odiá por capital.
Viajou pelo reino de Pegu. Pegu (ou Bago) é uma região de Mianmar, na Indochina A partir dos seus portos de Baçaim e Rangune, o reino desenvolveu o comércio marítimo com a Índia, a China, a Malásia e a Indonésia. Os Bramás, ou birmaneses, a que Fernão Mendes Pinto se refere muitas vezes, seriam originários do Tibete. Constituem atualmente a etnia principal de Myanmar.
Já Afonso de Albuquerque dera conta da importância estratégica de Pegu. No final do século XVI, o português Salvador Ribeiro de Sousa fez-se o mesmo nomear rei de Pegu. O seu domínio durou poucos anos e os holandeses assenhorearam-se da região.
O criminoso António de Faria é o personagem principal da Peregrinação entre os capítulos 36 e 80 do livro. Durante bastante tempo capitaneou um bando de piratas. Fernão Mendes foi um dos bandidos às suas ordens. Participou de roubos, mortandades e (possivelmente) violações. Falou sempre bem do chefe. António de Faria seria um homem de ânimo valoroso e bom cristão, de si muito generoso…
Segundo Aquilino Ribeiro, que escreveu “A máscara de pirata de Fernão Mendes Pinto”, António de Faria é um alter ego de Fernão. António José Saraiva considera também que António de Faria é um heterónimo de Pinto. Rebecca Katz discorda deles. Eu partilho da opinião da judia americana, embora o meu parecer valha um pouco.
Fernão Mendes Pinto navegou pelo Arquipélago de Sunda, que inclui as ilhas indonésias de Bornéu, Java, Sumatra, Celebes, Bali e Timor. Lembre-se que o Estreito de Sunda separa as ilhas de Java e Samatra. O reino de Sunda localizava-se na parte ocidental da ilha de Java.
O aventureiro português visitou também as Molucas, um arquipélago situado entre as Celebes e a Nova Guiné, a China e a Austrália.
Conta ter passado muito tempo na China. As primeiras referências que faz a este país referem-se a localidades costeiras, rios e enseadas que conheceu quando pirateava com António de Faria.
Por altura do desaparecimento deste, ocorrido no capítulo 79, e até ao capítulo 117, o autor ocupa-se da China profunda. Curiosamente, percorre 130 páginas na pele de um prisioneiro.
Na enseada de Nanquim, quando seguiam em duas panouras, António de Faria e os seus homens foram atingidos por um tufão. Para tentar escapar ao naufrágio, alijaram até mantimentos e caixotes com prata.
Sendo quase meia-noite, na embarcação de António de Faria ouvimos uma grande gritaria de “Senhor Deus, misericórdia!” Depois, as vozes calaram-se. António de Faria nunca mais foi visto.
O apelo “Senhor Deus, misericórdia” é repetido diversas vezes na Peregrinação. É usado também na minha terra, Almendra, na procissão da Sexta-Feira Santa, por um coro de homens. Chamam-lhe a procissão dos bêbados…
O barco em que Fernão Mendes Pinto seguia deu à costa pela manhã. Dos 25 portugueses que estavam a bordo, apenas 14 se salvaram.
Os náufragos não sabiam onde estavam. Enterraram os mortos e caminharam ao acaso. Na passagem dum esteiro, afogaram-se mais três portugueses. Os sobreviventes avistaram uma fogueira ao longo. Encontraram carvoeiros que lhes deram algum arroz e lhes indicaram o caminho para uma albergaria. Ali, alimentaram-nos e deram-lhes alguma roupa, mas não os deixaram ficar. Ensinaram-lhes o caminho para a vila de Sileyjicau, onde havia um hospital (é o termo usado pelo autor) que recolhia os pobres.
Chegaram à vila antes do sol-pôr e foram direitos à casa de repouso dos infelizes. Foram recebidos um edifício muito limpo em que havia catorze “esquifes” e uma mesa com cadeiras. Alimentaram-nos e mandaram logo vir um físico para que os curassem. Permaneceram ali durante 14 dias.
Depois de recuperados, caminharam até outra povoação. Foram abrigados. De manhã, pediram esmola e voltaram ao caminho.
Num lugar chamado Xiangulé, duas léguas adiante, foram tomadas por ladrões, aprisionados e atados com as mãos atrás das costas. Foram socorridos por pessoas do lugar de Suzoangoné, que consideraram que não eram ladrões, mas estrangeiros perdidos nas águas do mar. Lá os libertaram.
Continuaram a caminhar. Encontraram uma pequena povoação com casas ricas e sentaram-se à beira de um chafariz. Um jovem cavaleiro deu por eles. Foram chamados para o pátio duma casa nobre onde lhes foi oferecida uma refeição, tendo os locais estranhados que os portugueses comessem com os dedos, enquanto os chineses comiam com pauzinhos. Passaram toda a noite e receberam roupa e algum dinheiro.
Andaram assim peregrinando de aldeia em aldeia durante mais de dois meses. Chegaram à vila de Taipor, onde foram considerados vagabundos e metidos na cadeia com grilhões nos pés e algemas nas mãos.
Passaram 26 dias numa prisão miserável. Um dos portugueses morreu “comido de piolhos”. Dali os tiraram um dia pela manhã. Prenderam-nos a uma corrente de ferro e embarcaram-nos, com mais 30 ou 40 presos em direção à cidade de Nanquim que é a segunda cidade da China e onde reside continuamente um chaém chefiando 120 oficiais de justiça, entre desembargadores e revedores de causas civis e crimes. Das sentenças, apenas se poderia recorrer para uma mesa com 24 magistrados com reputação de integridade.
Nanquim
Foram embarcados para uma vila grande chamada Potimleu e passaram ali nove dias até que cessou uma chuva forte e puderam continuar a viagem por rio para Nanquim. Nanquim seria metrópole dos reinos de Liampó, Fanjus e Sumbor.
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