DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

 

     O PROCESSO DE JESUS CRISTO 

Em tempos, publiquei neste espaço descrições de variados crimes e de mortes violentas. Destinavam-se a integrar uma obra, escrita na primeira pessoa, sobre a vida de um assassino profissional. Chamei-lhe, inicialmente, “O assassinato de Trotsky”.

Entretanto, mudei de ideias e retirei do livro projetado a série de crimes. O meu trabalho de então resultou na novela “O Diário de Antero Maleano”, que recebeu em 2019 o Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes e foi editado pela Câmara Municipal de Portimão.


 

Retomo agora a outra parte do projeto. Irá chamar-se “O Processo de Jesus Cristo e outros relatos de mortes violentas” e começará pelo assassinato mais antigo de que rezam as crónicas: o de Abel.

Prevejo, de momento, cerca de vinte pequenos artigos. As publicações já feitas não serão repetidas. Poderão encontrar-se neste blogue, no arquivo de outubro de 2017.


   O ASSASSINATO DE ABEL


 



Ao falar de mortes violentas, parece razoável começar pela primeira de que há notícia: o assassinato de Abel. 

O Génesis conta uma história fantástica sobre a origem da inimizade entre os irmãos. Consta que Caim levou ao Senhor os frutos da terra, enquanto Abel lhe ofereceu as primícias do seu rebanho. O Senhor Deus ter-se-á agradado de Abel e da sua oferta, desdenhando da de Caim.

 


Segundo as Escrituras, Caim terá ficado enfurecido com a injustiça divina. “Decaiu-lhe o semblante”. Chamou o seu irmão ao campo e matou-o.

Como a bibliografia é escassa e nos remete mais para a lenda da criação do que para relatos credíveis, tentei apoiar as minhas divagações na prosa de um ficcionista: José Saramago. O autor  mostra-se agastado com o Antigo Testamento e, um pouco também, com o Novo.

Apesar de ser um admirador da obra de Saramago, desiludi-me depressa com o seu livro “Caim”. O escritor aceita, no essencial, a narrativa do Génesis e faz dela ponto de partida para as relações entre o criador e a criatura, isto é, entre Deus e o homem. Reflete longamente sobre a partilha de culpas entre Caim e o Senhor, quando do suposto primeiro assassinato da História. Caim é marcado na testa e parte sozinho mundo fora.

Nada disso se poderia ter passado. Deus saberia, melhor do que ninguém, que a cultura dos campos e a criação de gado contribuíam, de forma semelhante, para a alimentação e o progresso do Seu povo.

Proponho aos leitores que embarquem comigo numa história mais plausível.  

Nascera uma amargura nova chamada ciúme. No início da humanidade, os irmãos tinham de se deitar com as irmãs, por não existir mais gente no mundo.

A aceitar o que diz o Génesis, todos os homens e todas as mulheres provêm de ligações incestuosas entre os descendentes de Adão e Eva. Não se sabe se os nossos pais primitivos procriaram também com filhos e netos.

Abel ainda era adolescente e não tinha esposa. Cortejou a sua irmã Enoque, casada com Caim.

A seu ver, nem estava a pecar. Tratava-se somente de aproveitar os frutos do Jardim do Éden. Enoque era linda e a vida era bela.

Caim viu Abel deitar-se com a sua mulher e deixou que o coração se lhe enchesse de ódio.

Como o irmão mais novo era mais alto e mais forte do que ele, o primogénito esperou que Abel adormecesse, depois de ter o desejo satisfeito, e esmagou-lhe a cabeça com um pedregulho.

Deus amaldiçoou-o.

- Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra a mim. És agora, pois, maldito por sobre a terra cuja boca se abriu para receber de tuas mãos o sangue de teu irmão. Quando lavrares o solo não te dará ele a sua força; serás fugitivo e errante pela terra.

Caim achou o castigo demasiado duro:

− É tão grande o meu castigo que já não posso suportá-lo. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua presença hei de esconder-me; quem comigo se encontrar me matará.

O Senhor respondeu:

− Aquele que matar Caim será vingado sete vezes.

E pôs um sinal em Caim, para que o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse.

Pôs-lhe o sinal, mas não lhe retirou Enoque. Fê-lo habitar a terra de Node, ao oriente do Éden, onde criou muitos filhos e filhas.

Não se sabe se algum deles foi ainda gerado por Abel. Tão pouco se sabe se o sinal negro com que Deus lhe tingiu o rosto alastrou ao conjunto da pele.

 

 


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