DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 8 de novembro de 2020

    

        A EXECUÇÃO DE JESUS CRISTO




As referências ao Messias abundam no Novo Testamento, mas escasseiam no Antigo. O conceito de Messias é fundamental para os cristãos, sem o ser tanto para os judeus. 

Ao longo da história, os pretensos Messias trouxeram ao seu povo sangue e destruição. Não admira que os hebreus os receassem. Os judeus nunca foram capazes de enfrentar o poderoso império romano. Os fariseus e os sacerdotes conheciam a realidade do seu tempo e o desequilíbrio de forças entre Roma e Israel. Um agitador que arrastasse o povo atrás de si atrairia a desgraça. Cristo foi executado por constituir uma ameaça para a segurança de Israel.

Quem me conhecer poderá estranhar que um homem como eu se socorra de textos de Joseph Ratzinger, que mais tarde foi eleito Papa com o nome de Bento XVI. Acontece que o modo de pensar das pessoas está longe de ser uniforme ou homogéneo. Não fomos feitos com régua e esquadro. Li com agrado o “Jesus de Nazaré”.

Passo a citar alguns parágrafos desse livro:

Quando a oração noturna de Jesus (no Monte das Oliveiras) terminou, chegou, guiada por Judas, uma milícia armada, às ordens das autoridades do templo, e prendeu Jesus, enquanto os discípulos não foram molestados.

Como se chegou a esta prisão, obviamente decretada pelas autoridades do templo, em última análise pelo sumo-sacerdote Caifás? Como se chegou à entrega de Jesus ao tribunal do governador romano Pilatos e à condenação à morte na cruz?

Os Evangelhos permitem-nos distinguir três etapas no caminho que levou à sentença jurídica de condenação à morte: uma reunião do conselho na casa de Caifás, o interrogatório diante do Sinédrio e, por fim, o processo na presença de Pilatos.

No começo, o movimento que se foi formando em torno de Jesus Cristo não preocupou as autoridades do templo. Aconteciam ocasionalmente factos semelhantes e auto-limitados.

A situação mudou com o Domingo de Ramos: a homenagem messiânica prestada a Jesus por ocasião da sua entrada em Jerusalém; a purificação do templo, com a palavra interpretativa que parecia anunciar o fim do templo enquanto tal e uma mudança radical do culto, em contraste com os ordenamentos legados por Moisés; os discursos de Jesus no templo, em que se podia perceber uma reivindicação de autoridade plena que parecia dar à esperança messiânica de Israel uma nova forma, ameaçadora do seu monoteísmo: os milagres que Jesus realizava em público e o afluxo cada vez maior de povo que ia ter com Ele − todos esses factos já não podiam ser ignorados.

É o evangelista João quem melhor descreve a reunião do Sinédrio que visou analisar “o movimento popular nascido após a ressurreição de Lázaro”. Segundo João, reuniram-se os chefes dos sacerdotes e os fariseus, os dois grupos dominantes da sociedade hebraica da época. Partilhavam uma preocupação antiga: o receio de que os romanos se enfurecessem com as manifestações populares e destruíssem o templo e a nação hebraica.

Os fariseus descendiam provavelmente do grupo religioso hassidim (os piedosos) que apoiara a revolta dos macabeus contra o Império Selêucida. Em 142 a.C., com a vitória dos macabeus, conseguida após uma prolongada guerra de guerrilha, constituiu-se o Reino da Judeia que se manteve independente até 63 a.C., altura em que foi dominado pelos romanos.   

Fariseus e sacerdotes não se entendiam sempre, mas aliavam-se em situações especiais.

Ainda não amanhecera, quando Jesus foi levado ao palácio do sumo-sacerdote, onde já se encontravam os sacerdotes, anciãos e escribas que constituíam o Sinédrio. Segundo João, a reunião começou com dúvidas e hesitações quanto ao melhor modo de proceder em relação a Jesus. Coube ao sumo-sacerdote Caifás a intervenção determinante: vós não entendeis nada, nem vos dais conta de que vos convém que morra um homem só pelo povo e não pereça a nação inteira.

O exército romano poderia destruir o templo sagrado e a nação judaica. Havia mais. A pretensão messiânica implicava a reivindicação da realeza sobre Israel. Daí a tábua com a inscrição “Rei dos judeus”, pregada na cruz.

Segundo o evangelista Marcos, Caifás perguntou a Jesus: És tu o Messias, o Filho do Bendito? Jesus respondeu: sou, e vós vereis o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso e vir entre as nuvens do céu.

De acordo com o Evangelho de São Lucas, à pergunta do Sinédrio: “Tu és então o Filho de Deus?”, Jesus terá respondido: “Vós o dizeis. Eu sou!”

Caifás rasgou as vestes, exclamando: Blasfémia!

O delito previsto para a blasfémia era a pena de morte, que apenas os romanos tinham poder para declarar. Por outro lado, ao declarar-se Messias, Jesus candidatara-se à realeza e esse era um delito político a ser apreciado pela justiça romana.

O governador romano Pôncio Pilatos tinha o hábito de se sentar no tribunal ao começo da manhã.

É curiosa a imagem que os evangelhos nos transmitem sobre Pilatos. Seria um homem pragmático, disposto a recorrer às armas sempre que tal fosse indispensável, mas ciente de que Roma assentava em boa parte o seu poder na tolerância para com as múltiplas religiões do Império e na força pacificadora do direito romano.

As autoridades romanas não tinham conhecimento de perturbações da ordem pública. Roma nada tinha contra Jesus. Eram os dirigentes judaicos que pretendiam vê-lo morto.

Sigamos o relato do evangelista João:

Depois levaram Jesus da casa de Caifás para o pretório. Era cedo, de manhã. Eles não entraram. Então, saiu Pilatos para lhes falar e lhes disse: Que acusação trazeis contra este homem?

Responderam-lhe: Se este não fosse malfeitor, não to entregaríamos.

Replicou-lhes, pois, Pilatos: Tomai-o vós outros e julgai-o seguindo a vossa lei.

Responderam-lhe os judeus: A nós não nos é lícito matar ninguém.

Tornou Pilatos a entrar no pretório, chamou Jesus e perguntou-lhe: És tu o rei dos judeus?

Respondeu Jesus: Vem de ti mesmo essa pergunta, ou to disseram outros a meu respeito?

Replicou Pilatos: Porventura sou judeu? A tua própria gente e os principais sacerdotes é que te entregaram a mim. Que fizeste?

Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é aqui.

Então lhe disse Pilatos: Logo tu és rei? Respondeu Jesus: Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz. 

Perguntou-lhe Pilatos: Que é a verdade?

No final do interrogatório, Pilatos tirou as suas conclusões. Jesus não era um revolucionário, em termos políticos. As suas palavras e o seu modo de agir não constituíam uma ameaça para Roma. As eventuais transgressões à Tora não lhe diziam respeito. Por outro lado, o Sinédrio aceitava a situação vigente. Em termos objetivos, era um aliado da governação romana. Não seria conveniente afrontá-lo sem uma razão suficientemente forte e a vida de um judeu não tinha assim tanto valor.

Regressemos a João: Tendo dito isto, voltou aos judeus e lhes disse: Eu não acho nele crime algum.

É costume entre vós que eu vos solte alguém por ocasião da Páscoa; quereis, pois, que vos solte o rei dos judeus?

Então gritaram todos, novamente: não é este, mas Barrabás!

Ora, Barrabás era considerado um salteador.

De acordo com Ratzinger, Barrabás não era um salteador, mas um patriota judeu. Teria cometido um assassínio durante a revolta. Tratava-se, assim, de dois acusados do mesmo crime: a rebelião contra o domínio romano.

Pilatos desinteressou-se da questão. Voltou a sentar-se na cadeira de Juiz e pronunciou a sentença de morte.

Entregou Jesus aos seus soldados para que o chicoteassem. No direito romano, os condenados à morte eram flagelados.

Quem, como eu, teve uma educação católica, conhece bem o que se passou a seguir.

Curiosamente, Joseph Ratzinger cita Platão, a propósito de Jesus Cristo: na sua obra sobre o Estado, tentou imaginar qual seria o destino reservado neste mundo ao justo perfeito e chegou à conclusão de que seria crucificado.

O movimento cristão persistiu e obteve o êxito retumbante que se conhece. Sem o líder, os seus discípulos dispersaram e levaram a suas palavras às cidades gregas da Ásia Menor e à própria Roma. Com a ausência de Cristo, o seu legado reforçou as vertentes espiritual e internacionalista. Deixou de constituir um desafio a Roma e um perigo para os judeus. A estratégia dos chefes religiosos resultara e a autonomia possível do povo judeu foi preservada por mais um século.

  Cem anos após a morte de Jesus Cristo, no reinado do imperador Adriano, Simon Bar Cochba levantou a sua nação contra Roma. Bar Cochba era também chamado Barcoquebas, que significa “filho de uma estrela”. Era o novo Messias.

A rebelião durou de 132 a 135. De início, os judeus obtiveram pequenas vitórias. Foram derrotando as tropas romanas e chegaram a tomar Jerusalém, onde Cochba proclamou a independência da Judeia.

Os romanos reuniram mais forças e lançaram-se ao contra ataque. Simão Bar Cochba abandonou Jerusalém, que foi arrasada. Refugiou-se na cidade-fortaleza de Betar. Resistiu até meados de 135. Depois, oitenta mil romanos invadiram Betar e assassinaram os homens, as mulheres e as crianças, até o sangue correr das soleiras e valetas (Talmud). Simão foi morto e decapitado.

No conjunto, pereceram centenas de milhares de judeus.

Ao longo do tempo, foram surgindo novos Messias. Até em Setúbal apareceu um. Chamava-se Luís Dias, era alfaiate e chegou a ser bastante conhecido. A Inquisição queimou-o em Lisboa, em 1542, juntamente com 83 seguidores.


Bibliografia: João. Evangelho

                  Ratzinger, Joseph. Jesus de Nazaré

Fotografia: detalhe de A coroação de espinhos, de Bosh.


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