A EXECUÇÃO DE SÓCRATES
Sócrates era
ateniense e provinha de uma família relativamente humilde. O pai era escultor e
a mãe parteira. Em 399 a.C., foi acusado de divulgar heresias e executado. Vivera
70 anos.
Terá tentado
seguir a profissão do pai, mas demonstrou uma notória falta de jeito para
esculpir o mármore.
Consta que casou
duas vezes e que teve três filhos varões. Xântipe, a segunda esposa, era
bastante mais nova do que ele.
Tratava-se de um
homem estranho, que gostava de andar descalço, mesmo sobre a neve. Não
apreciaria os banhos e lia tudo o que encontrava sobre sexo. Quando se
embrenhava em alguma questão, abstraía-se do mundo e chegava a passar horas
seguidas imóvel.
Resolveu aprender
Filosofia e estudou com Anaxágoras e Arquelau. O seu talento depressa deu nas
vistas. A Pítia do Templo de Apolo, em Delfos, chegou a chamar-lhe “o mais
sábio de todos os homens”.
Influenciado
pela mãe, comparava a filosofia a um parto e chemava-lhe maêutica, o parto das
ideias. Considerava que o conhecimento estava dentro das pessoas, que o
poderiam alcançar sozinhas, ou precisar de ajuda para acelerar esse processo.
Para ele, era mais
importante procurar do que encontrar. Dava mais valor a tentar aprender o que
não sabia do que a ensinar o que julgava saber. Começava por pôr em causa as
ideias dos seus interlocutores, levando-os a abordar os temas por outros pontos
de vista. Ao fazer uma pergunta, não procurava apenas uma resposta, mas uma
comprensão mais alargada das questões.
Sócrates não
deixou escritos. Se os redigiu, perderam-se. No seu tempo, o conhecimento transmitia-se
sobretudo por via oral. Por outro lado, para Sócrates, escrever seria assumir que
encontrara algumas respostas para o seu
incessante questionar. Embora os seus contemporâneos Xenofonte e Aristófanes o
tenham mencionado, a sua obra chegou até nós essencialmente através do seu
aluno Platão.
Haverá sempre dúvidas
na hora de delimitar com precisão a fronteira entre as ideias de Sócrates e as
de Platão. Os “diálogos” em que Platão refere Sócrates estão profundamente
impregnados do pensamento filosófico do seu antigo mestre.
A filosofia de
Sócrates restringe a sua área de procura ao homem e à comunidade em que vive. O
homem está no centro das suas preocupações. “Conhece-te a ti mesmo”, mais do
que uma divisa, é um método de trabalho.
É famoso o seu
postulado de reconhecer a própria ignorância. Quem a não admitisse e não se
esforçasse por aprender, estaria condenado a desconhecer a verdade.
A ironia era
outro dos seus instrumentos de trabalho. Com ela, combatia a ignorância e a
vaidade.
Sócrates não
chegou a elaborar uma doutrina. Era um homem de procura e não de achados. Fazia
perguntas engenhosas que conduziam a questões novas.
A ética é uma
preocupação constante da sua filosofia. Sócrates foi um moralista. No seu modo
de olhar, o indivíduo não se podia compreender nem realizar fora do
relacionamento com os seus semelhantes. As relações entre os homens deviam
basear-se na virtude e na justiça, de modo a permitir a cada um a sua liberdade
de pesquisa. Para ele, o saber e a virtude eram mais do que complementares: os
dois conceitos identificavam-se.
Sócrates aborda
com equilíbrio a questão da busca do prazer. A virtude e o prazer não são
incompatíveis. O homem que se vai tornando sábio analisa as circunstâncias e
escolhe, em cada momento, o prazer que o desvia do caminho da dor e do mal.
O seu relacionamento
com a transcendência é também pouco comum. Sócrates encara a Filosofia como um
mandato divino. Esse sentido de missão acompanhou-o durante toda a vida.
Assentarão nele boa parte das razões dos seus conflitos com as autoridades da
cidade, que acabaram por decretar a sua morte. Embora o filósofo aceitasse que
os cultos religiosos tradicionais integravam os deveres de cidadania, não
ficava por aqui. Entendia que, às divindades, se não deveriam solicitar favores
materiais, mas o bem e a virtude. Não admira que haja quem o considere um
precursor do cristianismo.
Aristóteles
atribuiu a Sócrates a introdução, na Filosofia e na Ciência, do raciocínio
indutivo e do conceito do universal. Sócrates terá sido o primeiro filósofo a
organizar o seu pensamento segundo um método científico.
A opinião de
Aristóteles tem sido contestada. Há quem pense que os conceitos socráticos se
referem ao “dever ser” e não à própria realidade.
O filósofo raramente
saiu da sua cidade. Ausentou-se por três vezes, sempre como soldado. Em Atenas,
os varões entre as idades de 15 e 45 anos tinham obrigações militares. Sócrates
tomou parte nos combates de Potideia, Délios e Anfipolis. Enquanto militar,
ganhou a reputação de ser resistente ao cansaço e de manter o sangue-frio,
mesmo em circunstâncias adversas.
Pouco ou nada
participou na vida política de Atenas. A Filosofia bastava-lhe. Tinha um modo
peculiar de a entender. Filosofar era interrogar. O processo começava na
própria alma, para depois se alargar à dos outros.
Não organizou
uma escola, nem se fazia pagar pelas suas aulas, pelo que viveu sempre
pobremente. Ensinava em praças e ginásios, procurava dialogar com quem lhe dava
atenção. Nunca teve um trabalho que lhe proporcionasse uma remuneração regular.
Sem o pretender,
Sócrates desencadeou uma rotura na história da filosofia grega e ocidental. Os
filósofos passaram a ser divididos em pré e pós-socráticos. Sócrates desviou o
objetivo fundamental da pesquisa filosófica da Natureza para o Homem
Curiosamente, o
ideal helénico de uma alma sábia num corpo harmonioso teve pouco reflexo em
Sócrates, que era feio.
Para Sócrates, a
virtude constituía o objetivo da atividade humana. Aproximava-se do
conhecimento e chegava a identificar-se com ele. Ninguém fazia o Mal por o
querer fazer, mas por ignorar os caminhos do Bem. Quem alcançava o saber
tornava-se virtuoso.
O seu julgamento
e a sua execução centram a obra de Platão “Apologia a Críton”.
Sócrates contava
70 anos quando três cidadãos atenienses o acusaram de ensinar doutrinas
contrárias à religião oficial da cidade, corrompendo assim a juventude.
Um dos acusadores
proclamou: “Sócrates é culpado dos crimes de não reconhecer os deuses da cidade
e de introduzir divindades novas; é ainda culpado de corromper a juventude.
Castigo pedido: morte”.
Nessa prática de
corrupção da juventude, não era referido “le petit pechê des grecques”. Nada
indica que Sócrates fosse homossexual. Se a orientação sexual fosse crime não haveria, nos vastos
campos que circundavam Atenas, cicuta que chegasse para tantas execuções.
Vista pelos
olhos de hoje, a acusação não chegaria para condenar alguém à morte. Não tenho
conhecimento de execuções anteriores por meros delitos de opinião, o que não
significa que não tenham ocorrido.
Platão
considerou que a condenação de Sócrates teve motivações políticas. Poderá ter sido
favorecida pelo rancor de algumas personalidades importantes.
Curiosamente, o
júri que o condenou era composto por meio milhar de homens adultos. Haveria
pouco para fazer, na Atenas daquela época. O censo realizado no final do século
IV a.C. contou 21 mil cidadãos. Os dez mil metecos e os 400 mil escravos não
tinham acesso à administração da justiça. Assim, um em cada 42 cidadãos
interveio no julgamento do filósofo.
Foi a defesa de
Sócrates que exaltou os jurados e determinou a sentença de morte. O acusado não
recuou um único passo na defesa das suas ideias. Declarou que o esforço
educativo que dedicava há décadas aos atenienses nascera em obediência a uma
ordem divina e que nunca deixaria de cumprir essa tarefa. A assembleia
declarou-o culpado, por uma maioria reduzida de votos. Condenou-o ao exílio
perpétuo. A alternativa seria cortar-lhe a língua, para que não pudesse
continuar a influenciar os seus concidadãos.
Sócrates poderia
exilar-se, ou pedir a redução da pena. Em vez disso, comparou-se aos beneméritos
de Atenas, dignos de ser sustentados pelo erário público. A sua defesa irritou ainda mais os jurados, que o condenaram à
morte, agora com uma maioria sólida.
O filósofo
poderia ter escapado, se o quisesse fazer. Os seus amigos organizaram-lhe a
fuga. Sócrates recusou partir.
Não receava a
morte. Ia nos 70 anos e dificilmente viveria muitos mais.
Ensinara,
durante toda a vida, a consideração pela justiça e pelas leis. Referi, atrás,
que sempre considerou o indivíduo como parte da sociedade. Fugir seria
desrespeitar as leis da urbe. Isolado da sua comunidade, e infringindo as suas
regras, um homem empobrecia. Ao aceitar as leis, admitia a punição, por mais
que discordasse dela.
A morte de
Sócrates constituiu um espetáculo público. Os alunos e os amigos mais fiéis
acompanharam-no até ao fim. De certo modo, foi a sua última aula.
A sentença de
morte era executada pela ingestão de uma infusão de cicuta.
A cicuta é uma
erva comum nos países mediterrânicos. Deita mau cheiro. A sua rama faz lembrar
a das cenouras. As folhas compõem-se de folhetos verdes, brilhantes, em forma
de lança, denteadas nos bordos. As flores, brancas e pequenas, organizam-se em
cachos. Tudo na planta é venenoso, das raízes às sementes. Atribui-se-lhe,
ocasionalmente, a morte de vacas. Ingerida, provoca paralisia progressiva dos
músculos e convulsões violentas e dolorosas.
Sócrates tomou o
vaso que continha a bebida com as próprias mãos e ingeriu-a. Permaneceu
consciente até aos seus últimos momentos. Já muito perto do fim, ostensivamente
senhor do controlo das próprias emoções, continuou a ensinar.
O orgulho que o
levou a aceitar uma vida de pobreza, tendo consciência de ser um dos cidadãos
mais ilustres do estado ateniense, apoiou-o até aos minutos finais.
Para os não
filósofos como eu, Sócrates ter-se-á deixado matar essencialmente por por
teimosia.
Bibliografia:
Abbagnano, Nicola. História da Filosofia, vol I. Editorial Presença, Lisboa,
1976.
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