DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 17 de abril de 2016

         
 A PROPÓSITO DE DOIS MAPAS

O mapa Kangnido data de 1402. Foi desenhado na Coreia por dois chineses, Li Hoi e Li Mu, que integraram as informações presentes em dois mapas chineses mais antigos, trazidos para a Coreia pelo embaixador coreano Gim Sa-hyeong que viveu entre 1341 e 1407. O mapa de Li Tse-min data provavelmente de 1330 e o de Ch`ìng Chun foi traçado à volta de 1370. Ambos desapareceram.
 O mapa Kangnido é imediatamente anterior às viagens de Zheng e demonstra uma informação geográfica alargada.
O mapa é claramente sinocêntrico. O Japão é também representado com dimensões desproporcionadas. O extremo sul da África está claramente desenhado e os Oceanos Índico e Pacífico estão em continuidade. No Sudeste Asiático, as ilhas parecem multiplicadas e o subcontinente indiano é muito encolhido.



A Península Arábica está hipertrofiada. Identifica-se bem o Mar Vermelho, mas o golfo Pérsico confunde-se com o Índico.
O desenho de África tem proporções muito reduzidas. No entanto, é aparente a confluência dos oceanos Atlântico e Pacífico. A verdade é que este conhecimento pode ter sido obtido quer por via marítima, quer terrestre.
Os peritos julgam ver claramente representados o Mar Mediterrâneo e as penínsulas ibérica e italiana. Para um leigo como eu, as imagens não são assim tão claras. Estão registados, em carateres chineses, mais de 100 nomes para países e regiões europeias, incluindo a Alemanha. Representam transcrições de palavras árabes. Terão sido os árabes a fornecer boa parte das informações que permitiram produzir o mapa. No entanto, a recolha de dados por parte dos próprios chineses começou bem cedo. 
Zhang Quian viajou pela Ásia Central no século II A.C., ao serviço do imperador Han Wudi. Começou a abrir a Rota da Seda e trouxe informações valiosas sobre o mundo ocidental.
O historiador Romano Florus conta que o imperador Augusto, que reinou entre 27 e 14 A.C. foi visitado por enviados provenientes de todo o mundo conhecido, incluindo a China.
No final do século II A.C., navegadores chineses viajaram até ao sudeste da Índia. Muito mais tarde, no ano de 674, o explorador chinês Daxi Hongtong atingiu o sul da Península Arábica. Durante as dinastias Tang (618-907) e Song (960-1279), mercadores chineses viajaram por mar até à Malásia, Índia, Ceilão, Golfo Pérsico, Península Arábica e Mar Vermelho. Terão negociado com a Etiópia e com o Egipto. Alguns escritores chineses, após o século IX, descreveram o tráfico de escravos, marfim e âmbar na Somália. Não há registos de terem alcançado o Oceano Atlântico.



O mapa de Fra Mauro data de 1459. Foi encomendado ao monge e cartógrafo veneziano pelo rei Afonso V de Portugal.
 Ali, os perfis da Europa e do Mediterrâneo são desenhados de modo quase perfeito. Apesar de o contorno da África ser representado de forma distorcida, percebe-se claramente a continuidade dos Oceanos Atlântico e Pacífico. 
Identificam-se facilmente o Mar Vermelho, a Península Arábica, o Golfo Pérsico, Ceilão, o subcontinente indiano (encurtado), a Indochina, as Filipinas e algumas ilhas indonésias. No entanto, o Índico parece conter quase tantas ilhas como gotas de água.
O saber circulava no mundo, apesar das limitações da época.



Há especulações sobre as fontes de conhecimento cartográfico. Em nenhum dos mapas, o Cabo da Boa Esperança, dobrado por Bartolomeu Dias em 1488, aparece como obstáculo difícil de transpor. No entanto, como vimos atrás, os textos chineses da época dão apenas testemunho de expedições pelo Índico. O desenho de África no mapa Kangnido não passa dum esboço.
Dois dos nossos maiores navegadores, Pedro Álvares Cabral e Vasco da Gama, provavelmente nada descobriram.
Existiam, na costa ocidental africana, dois grandes obstáculos à navegação: o cabo Bojador, dobrado por Gil Eanes em 1434 e o Cabo das Tormentas, ou da Boa Esperança, transposto por Bartolomeu Dias em 1488. As rotas marítimas da costa oriental da África para a Índia eram bem conhecidas dos navegantes árabes. Foi, aliás, um piloto mouro que guiou Vasco da Gama até Calicut. A espera pelos ventos de monção está esboçada em zigzags em alguns mapas. Camões criou o mito da traição do piloto mouro.
Vasco da Gama liderou a frota que foi de Lisboa a Calicut e voltou, contornando o sul da África e abrindo a rota comercial com os países do Oriente. Mudou a História do mundo, mas não descobriu terras novas.  
Pedro Álvares Cabral era um fidalgo de Belmonte. Dificilmente entenderia alguma coisa de navegação. Não era preciso. O seu papel era o de comandante, condutor de homens. A sua esquadra dispunha de navegadores experimentados. Uma das caravelas, um dos navios mais pequenos da frota, era capitaneada por Bartolomeu Dias, que a ironia do destino fez afogar nas águas do cabo que o fizera célebre.
Não é credível que os que eram, na época, os melhores marinheiros do mundo, se tenham desviado tanto da rota prevista, apenas para “tomarem barlavento”. Não há registo de qualquer dificuldade especial na viagem de ida. Tudo parece ter corrido conforme o planeado. A esquadra partiu a 9 de março. As ilhas de Cabo Verde foram ultrapassadas a 22 do mesmo mês e os navios desviaram-se para oeste, para o “mar longo”, à procura dos ventos de feição. Cumpriam as ordens do rei Manuel. Atingiram a costa brasileira a 22 de abril. Provavelmente, terão estado anteriormente no Brasil Duarte Pacheco Pereira, em 1498 e o espanhol Vicente Pinzón, em 1500.
No caminho de retorno do Brasil, a armada de Cabral não hesitou quanto ao rumo a tomar.


Estaria em causa a preocupação de reconhecer a descoberta só depois da assinatura do tratado de Tordesilhas. Note-se que Duarte Pacheco Pereira participou nas negociações, como membro da delegação portuguesa.
Cabral não nasceu marinheiro. Ninguém nasce. Ainda assim, a sua única viagem naval acabou por ter, na História Portuguesa e Universal, um impacto mais duradouro do que a epopeia do Gama, imortalizada pelos Lusíadas.


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