DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 31 de março de 2015

A CIDADE PERDIDA DE CALIÁBRIA






Há cidades mortas por esse mundo fora. Terras onde homens e mulheres trabalharam, construíram as moradas, criaram os filhos, repousaram, fizeram versos e sonharam. Povoações em que se falava mal e bem dos vizinhos e dos dirigentes, se semeava o pão, se plantava a vinha e se colhia a castanha, em que se adoecia, se vivia melhor ou pior e em que os mortos eram enterrados sem sobressaltos. Quase todos esses burgos possuíam uma igreja, ou mais. Rezava-se a deuses diversos, consoante a região e a era.
Há muitas urbes assim. Estiolaram. Umas caíram pelo fogo e outras pela espada. Em alguns casos, as condições climáticas modificaram-se. Choveu a mais ou a menos e as populações deslocaram-se em busca de terrenos mais férteis. Uma parte delas não deixou vestígios e já ninguém lhes conhece os locais.


Vou falar duma cidade destas. Chamou-se Caliábria e existiu na margem sul do rio Douro, entre Foz Coa e a Barca d`Alva, no espaço que medeia entre as desembocaduras dos rios Águeda e Coa. A sua localização exata não é conhecida. Há crónicas medievais que a situam na atual Montánchez, hipótese que se afigura improvável. Outros autores apontam para Fermoselle (na Província de Zamora), para Coura (perto de Viseu), para os arredores de Escalhão e para Almendra. Os escritos mais recentes (a partir do século XVII) tendem a aceitar a correspondência entre Caliábria e o Monte Calabre, situado dentro do termo da freguesia de Almendra, junto ao Rio Douro.


Caliábria desenvolveu-se durante o império visigodo. Foi sede de diocese. Os seus bispos estiveram presentes nos concílios de Toledo entre os anos 633 e 693. O último bispo, São Zenão, terá sido ceifado pelas cimitarras muçulmanas em 717, juntamente com outros prelados da região. Findaram então as referências históricas à cidade visigoda. Muitos anos mais tarde, no tempo de Fernando II, o título de «episcopus Calabriensis» passou para a catedral de Ciudad Rodrigo.


Curiosamente, D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa falecido em 2014, foi bispo titular de Caliábria, o que o levou a interessar-se pela sua história. Escreveu um artigo que intitulou «A Cidade Romana e a diocese de Caliábria» e visitou o local. Eis a sua descrição:
«Encetámos a longa escalada de duas horas, tribulações de um bispo do século XX que pretende tomar posse duma diocese do século VII. Encontrámos, no alto do monte, hoje coberto de amendoeiras, uma espécie de planalto, em forma de ligeiro vale, onde se situa uma fonte, sendo a área murada por uma muralha, em pedra xistosa, em parte à superfície do terreno, aqui e acolá elevando-se ainda cerca de um metro. Tem a seus pés o rio Douro, no ângulo que forma com a ribeira de Aguiar, seu afluente. Pedras dispersas, explica-nos um pastor, são o que resta da antiga igreja. Cantámos vésperas, sentados na muralha. Eis como, sem ter participado em nenhum dos concílios de Toledo me encontrei como último bispo conhecido de Caliábria».
Hoje, continua a observar-se no local o monte Calabre, onde se diz ter existido a urbe. Nada o distingue dos cabeços vizinhos. Nas encostas viradas a sul, as videiras plantadas em socalco estendem-se quase até ao cume. Produzem o «vinho fino», que muda de nome no Porto.


 Na primeira metade do sec. XVII ainda se poderiam ali observar, para além das ruínas da fortificação, inscrições sepulcrais. A muralha era de xisto, pedra abundante na região. O granito que também ali se encontra foi trazido doutros lugares. Atualmente, em Almendra os mais velhos continuam a falar das Portas do Sol, que ficariam junto a uma nascente, próxima da capela de Nª Senhora do Campo. 
    A sul, corre a ribeira do Castelo que vai dar à Ribeira de Aguiar e, por esta, ao rio Douro. Há várzeas férteis nas terras baixas por onde passa. A nordeste, junto ao Douro, há solos planos aráveis. Não são extensos. A cidade não poderia ter sido muito grande. Não havia onde semear pão para sustentar muitas bocas. Nas colinas vizinhas há olivais e amendoais.

Fontes:
Cosme, S. Entre o Coa e o Águeda. Povoamento nas épocas romana e alto-medieval. Dissertação de mestrado em Arqueologia. Faculdade de Letras, Universidade do Porto, 2002.
Policarpo, J.C. A cidade romana e a diocese de Caliábria. Em: O tratado de Alcanices e a importância histórica das terras de Riba Coa. Universidade Católica Editora,
Vários. Civitas Calabriga (Monte do Castelo ou Calabre, Almendra). Portugal Romano.com, distrito da Guarda.  
Vários. Suevos e visigodos em Riba Coa. www.cm-fcr.pt/concelho/Documentos/suevos.pdf

Fotografias: Internet



terça-feira, 24 de março de 2015

          
  MORREU HERBERTO HELDER


Os meus amigos hão de lembrar o que eu costumava dizer quando se falava da poesia de alguns líderes nacionalistas das antigas colónias portuguesas, como Agostinho Neto ou Amílcar Cabral:
− Valem pela autenticidade, pelos testemunhos e pelo amor às suas terras, mas não são grandes poetas.
Perguntavam, ora contestadores, ora apenas curiosos:
− Então, para ti, quais são os grandes poetas de língua portuguesa desde Fernando Pessoa?
Eu respondia, invariavelmente:
−Herberto Helder e Eugénio de Andrade.
Que me perdoem os brasileiros (se puderem) pois desconheço a poesia recente do Brasil.
Nunca tentei estabelecer comparações entre um e outro, nem senti necessidade de o fazer. Cada um tem personalidade muito própria. Os deuses emprestaram a ambos o dom de dedilhar as palavras como quem acaricia as cordas duma guitarra para dar voz às canções. Falei em emprestar porque, no final, os deuses reclamam sempre o que lhes pertence.
Eugénio de Andrade faleceu em 2005. Deixou-nos, entre outros, lindíssimos poemas de amor homossexual. Não foi o primeiro a fazê-lo, na grande poesia portuguesa. Basta lembrar Antínoo, em que Fernando Pessoa imagina o imperador Adriano a chorar a morte do seu escravo e amante.
Não falarei hoje mais de Eugénio de Andrade. É dia de homenagear Herberto Helder, um homem diferente.
A última versão da sua obra «completa» Ofício Cantante (as aspas estão aí porque a obra provavelmente terá terminado ontem) foi um dos meus poucos livros de cabeceira durante os últimos meses. Sou persistente e li-o todo, sem saltar poemas. São pouco mais de seiscentas páginas do melhor que nos deu a escrita portuguesa no último meio século. Confesso que o fiz também por dever de ofício. Sou dos que acreditam que a leitura atenta dos poetas grandes ajuda a limar as arestas da escrita e permite suavizar a prosa, tornando-a mais agradável ao ouvido. Como é natural, gostei mais de uns poemas do que doutros.
Confesso ainda que não entendi tudo. Há no fundo dos espíritos sensações imperscrutáveis. Depois, julgo saber que as almas dos poetas se deixam também moldar pela força das palavras.
Não sou crítico literário. Embora aprecie poesia e tenha escrito uma qualidade limitada de versos sofríveis, não me posso chamar poeta. As minhas opiniões não têm qualquer autoridade técnica ou cultural. Limito-me a expressar o que penso e sinto.
Julgo que, de certo modo, Herberto Helder viveu quase como quis. Depois de falhar as experiências universitárias, andou pelo mundo e desempenhou vários ofícios. Ganhou fama de misantropo, mas não se furtou ao convívio dos amigos nem dos poetas aprendizes. Fez questão de evitar, a todo o custo, as luzes da ribalta. Não dava entrevistas nem se deixava fotografar. Mesmo atitudes quase provocatórias, como a de recusar o Prémio Pessoa, com um valor pecuniário não displicente para um poeta bem longe de ser rico, o expuseram demasiado à atenção dos media.
Não seria curial falar de um poeta sem apresentar alguns versos dele. Acontece que Herberto Helder é difícil de citar. Não se encontram facilmente na sua escrita frases lapidares. Os versos enredam-se uns nos outros e valem por esse encadear. Escolhi parte de O poema, do livro A colher na boca. Poderia ter feito muitas outras opções.
O poeta morreu bem, de repente e na própria cama. Morreu sem mestre.

         Fecundo mês da oferta onde a invenção ilumina
         a harpa e a loucura desperta a pura espada
         em pleno sangue. Ó vasto,
         amargo e límpido mês interior onde a graça
         se toca do fogo e o corpo se torna o cândido
         e longo varão de música. Escada de seiva
         entre arbustos de estrelas
         e cubos de sal perpetuamente ardendo.
         − Por ti, mês feliz de confusão e génio, 
          eu levanto minha húmida boca 
          até ao ar e ao vinho, levanto
          minha obscura pedra por vias de tormento 
          e instinto até
          ao barro vermelho do céu, ao espasmo
          violento e sagrado das palavras.


sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

                 VEM AÍ A PRIMAVERA



A minha terra chama-se Almendra (Almendra é amêndoa, em castelhano). É uma das freguesias de Foz Coa, bem menos fria que a sede do concelho.  Este ano, as amendoeiras já começaram a florir.

                          Casa onde nasci
Na região do Douro, as flores das amendoeiras desabrocham, ainda no inverno do calendário, logo a seguir às do Algarve. As árvores “bravas” enfeitam-se primeiro.

                                    Rio Douro, perto da foz do Coa

Nesta época, são organizadas excursões para apreciar o espetáculo que a terra oferece. Os comboios detêm-se na estação do Pocinho, onde os turistas são esperados por camionetas que os conduzem por percursos previamente estudados e geralmente sinuosos. Quem sobe o Rio Douro de barco, passa por várias eclusas e pode desembarcar na Barca d`Alva, iniciando ali o passeio terrestre. 


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

                                  

          DESPENALIZAÇÃO DA CANNABIS


                                                                    IV

                                                        CONCLUSÃO


Embora a História se componha de avanços e recuos, parece iminente a mudança de comportamento da generalidade dos governos ocidentais face à questão da droga. Diz-se que, em alguns estados norte-americanos, as receitas fiscais sobre a venda de cannabis vão ser o dobro das provenientes do álcool. Há quem comece a afiar os dentes e sugira que a cannabis, a generalizar-se a legalização, irá constituir «a próxima grande indústria americana».


A nível internacional, o ponto de viragem poderá ser a próxima reunião da Comissão de Estupefacientes da ONU, a realizar em 2016.
Será útil deixar aqui algumas das conclusões da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, constituída por autoridades de todos os continentes. O relatório foi publicado em Julho de 2011.


A guerra global contra as drogas fracassou, deixando um rasto de consequências devastadoras para pessoas e sociedades em todo o mundo.
É urgente e imperativa uma revisão completa das leis e políticas de controlo de drogas nos planos nacionais e mundial.
Deve acabar a política repressiva e ineficaz de criminalização, marginalização e estigmatização de pessoas que usam drogas sem causar danos a outras pessoas.
Devem oferecer-se serviços de saúde e possibilidades terapêuticas a todos que deles necessitem. A metadona e a buprenorfina deverão ser disponibilizadas. Os programas de tratamento assistido com heroína, que obtiveram êxito em alguns países europeus e no Canadá, deverão ser alargados, assim como os programas de troca de seringas que têm contribuído para reduzir a propagação do HIV e de outras doenças sero-transmissíveis.
Respeitar os direitos humanos das pessoas que usam drogas e abolir práticas abusivas como a detenção, o trabalho forçado e o abuso físico e psicológico. Aplicar os mesmos princípios às pessoas envolvidas nos mercados ilegais, tais como agricultores e pequenos traficantes.
O encarceramento de dezenas de milhares destas pessoas ao longo das últimas décadas encheu as prisões e destruiu vidas e famílias, sem reduzir a disponibilidade de drogas ilícitas e o poder das organizações criminosas.
As ações repressivas devem ser dirigidas para a luta contra organizações criminosas violentas com vista a reduzir o seu poder e influência, bem como a sua capacidade de gerar corrupção. Mais do que reduzir o mercado da droga, essas ações repressivas devem procurar reduzir os danos que o tráfico de drogas causa às comunidades.
Deve investir-se não só na prevenção do uso de drogas por jovens como em evitar que os consumidores venham a ter problemas sérios de saúde.
Desistir das mensagens simplistas e ineficazes como as palavras de ordem «Basta dizer não» ou «Tolerância zero», substituindo-as por ações educativas e programas de prevenção complementados por iniciativas sociais e de apoio recíproco.
A hora de agir é agora.

Termino registando os nomes dos comissários que elaboraram o parecer.


Antigo Presidente da Polónia
Activista dos Direitos Humanos, antigo observador especial da ONU no Paquistão.
Activista de Direitos Humanos e de SIDA, antigo observador especial na ONU na Índia.
Escritor mexicano.
Antigo Presidente da Colômbia
Antigo Presidente do México
Antigo Presidente do Brasil
Antigo Primeiro Ministro da Grécia
Antigo Secretário de Estado dos EUA  
Antigo Alto Comissário Europeu (Espanha)
Banqueiro, Presidente do World Trade Center Memorial (EUA)
Antigo Presidente de Portugal
Antigo Secretário Geral das Nações Unidas (Ghana)
Antiga Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos (Canada)
Antiga Secretária Geral da Câmara Internacional de Comércio (Suíça)
Escritor (Peru)
Professor de Medicina, antigo Director Executivo do Fundo Global de Luta contra a SIDA, Tuberculose e Malária.
Antigo Presidente da Nigéria, Presidente da Comissão de Droga da África Ocidental.
Antigo presidente da Reserva Federal Americana e da Organização de recuperação económica
Antigo Presidente da Câmara de Praga e Deputado (República Checa)
Antigo Presidente do Chile 
Empresário, defensor de causas sociais ( Reino Unido)
Antiga Presidente da Suíça e Ministra dos Assuntos Domésticos.
Antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Noruega e antigo Alto-Comissário da ONU para os Refugiados.



quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

                        

    LEGALIZAÇÃO DA CANNABIS

                                  III

          A EXPERIÊNCIA HOLANDESA



A abordagem do problema da droga por parte da Holanda continua a ser amplamente debatida, dentro e fora do país. Enquanto alemães e franceses têm considerado, de modo geral, que o uso recreativo de drogas é um mal em si mesmo e deve ser combatido, a Bélgica parece tentada a imitar o modelo holandês e a Suíça está dividida sobre essa questão. A crescente tomada de posição de organismos e personalidades internacionais quanto às maneiras de abordar a questão das drogas irá certamente influenciar as opiniões públicas a as políticas governamentais na Europa.



Na Holanda, a responsabilidade pelas políticas que dizem respeito à droga é dividida entre os ministérios da Saúde e da Justiça. O investimento anual nesta área atinge montantes consideráveis.
Em parte «para inglês ver», o governo na Holanda tem adotado algumas medidas legais curiosas. Por exemplo: o ministro da Justiça proibiu a venda de canábis aos turistas. Para entrar num coffeeshop passou a ser necessário um cartão especial, rapidamente crismado de «pass erva». 



   Os protestos enérgicos dos proprietários desses estabelecimentos e do próprio Prefeito de Amesterdão, receosos de verem cair as receitas turísticas, fez o governo recuar, permitindo que cada província definisse a sua própria política de droga. Em Amesterdão, os cartões foram rejeitados e a entrada nos coffeeshopps é, como dantes, livre para todos os maiores de dezoito anos.



O governo propôs-se também proibir a propaganda da venda de «erva». Os estabelecimentos são geralmente obrigados a afixar os preços dos produtos que comercializam. Reduzir o tamanho dos cartazes ou torná-los menos visíveis não irá provavelmente produzir quaisquer efeitos práticos.



A droga é um tema de saúde pública. Para mim (e para muitos) a questão assenta em saber se se o acesso facilitado à canábis e a outras substâncias relativamente pouco agressivas serve ou não como primeiro degrau para a escalada que leva à viciação em drogas «duras».



O problema vai tendo uma solução estatística. O consumo de drogas «duras» na população de Amesterdão aumentou ou não após a introdução da legislação liberatória? Os números disponíveis mostram que estabilizou o número de viciados nesses produtos, enquanto a idade média dos adictos subiu para os 38 anos. A mortalidade relacionada com o consumo de drogas é das mais baixas da Europa.


A questão da descriminalização das drogas ditas «leves» continua, ainda assim, a dividir os estudiosos. Levada a cabo num único país, na ausência duma política comunitária comum, arriscou-se a criar focos de instabilidade social e até de delinquência. No entanto, a experiência está feita e devem ser retiradas conclusões dos dados obtidos.
Nenhum estudo de qualidade demonstrou uma relação de causa e efeito entre o uso de cannabis e o consumo ulterior de drogas mais «pesadas», como a heroína e a cocaína.



As características pessoais e ambientais podem predispor os consumidores à viciação noutro tipo de produtos. Diz-se que, neste contexto, as subculturas locais têm uma importância maior que a eventual experiência do uso de cannabis.


Outras variedades de droga são bem visíveis para os turistas que vistam Amesterdão. Trata-se dos chamados «cogumelos mágicos», com efeitos psicadélicos. 



   Foram responsabilizados por algumas mortes, não por efeitos directos da droga, mas por acidentes ocorridos sob a influência da ação dos cogumelos. O governo holandês limitou consideravelmente a sua comercialização.

                                                                    (continua)


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015


  LEGALIZAÇÃO DA CANNABIS

                               II



   A cannabis é o cânhamo comum, usado há muitos séculos em cordoaria. Nasce sem ser cultivada em diversas áreas tropicais. Sabe-se, há perto de três milénios, que altera o funcionamento cerebral. Foi usada por chineses, indianos, gregos, romanos e espalhou-se mais tarde pelo mundo muçulmano. O Corão proíbe o consumo do álcool, mas julgo que é omisso no que se refere à canábis. 




   Na antiga cultura germânica a «erva» foi associada à deusa do amor, Freya. Segundo alguns tradutores, o óleo da unção mencionado no Êxodo continha cannabis. Algumas seitas cristãs modernas proclamam-na como a Árvore da Vida.
   A utilização recreativa desta droga cresceu ao longo do último século.
  As designações «maconha», «erva», «liamba» e «marijuana» referem-se às folhas secas das plantas de Cannabis e às flores das plantas femininas. São as formas mais usadas. O teor de tetrahidrocanabinol (THC) vai dos 3 aos 22 por cento. Lembre-se que a canábis utilizada na produção industrial de têxteis contem menos de 1% de THC.


   O «haxixe» é uma resina concentrada. É mais forte que as folhas secas e pode ser fumado ou mastigado.



   Os extractos são designados habitualmente como «óleo de haxixe» e possuem uma taxa elevada de canabinoides.



  O «kief» obtém-se dos tricomas (não do pólen). Pode ser compactado ou consumido em forma de pó.



   O «baseado» ou «charro» é um cigarro de folhas secas de cannabis. Poderá ter tabaco associado.



   Existe ainda uma grande variedade de infusões.
   Os efeitos da cannabis na mente humana são bem conhecidos. Variam, de acordo com a predisposição pessoal e as características da «erva» consumida. As sensações mais comuns são de bem-estar e de descontracção. Muitas vezes, sobrevém o riso fácil, mas pode ocorrer a angústia. A percepção do espaço e do tempo é alterada. A atenção e, muitas vezes, a memória, são afectadas transitoriamente.   
   A euforia e o relaxamento são induzidas pelo pelo tetrahidrocarbinol. É frequente a tendência para a introspecção e a inclinação para o pensamento filosófico. Seguem-se, muitas vezes, o aumento do ritmo cardíaco e a sensação de fome. São usuais a injecção conjuntival (o sintoma mais visível) e a sensação de «boca seca».




   O estado de espírito volta ao normal cerca de três horas após o consumo da droga. Quando se auto-administram maiores quantidades de produto, o tempo de recuperação é mais prolongado.
   As consequências do consumo crónico fazem-se sentir essencialmente nos pulmões (quando a droga é fumada) e têm alguma semelhança com as do tabagismo. Aumentam as probabilidades de contrair bronquite arrastada e, eventualmente, de doença pulmonar crónica obstrutiva. Julga-se que o risco de desenvolvimento de cancro do pulmão fica também acrescido. Os níveis de testosterona podem descer. Poucos outros efeitos indesejáveis têm sido constatados no consumo a longo prazo. Podem ocorrer perturbações da memória, com a consequente limitação da capacidade de aprendizagem. Outra das possíveis consequências negativas é o desinteresse, com a perda de motivação necessária para enfrentar as agruras da vida. Curiosamente, o consumo da cannabis comporta um risco de dependência inferior ao da nicotina e do álcool.
   Em defesa do consumo da cannabis, não há muito a dizer. Por reduzir as náuseas e os vómitos, tem sido utilizada em algumas modalidades de tratamento da SIDA e de quimioterapia. É usada ocasionalmente como medicação adjuvante no combate às dores e a contractura muscular. Por diminuir a pressão intra-ocular, poderá ser aproveitada no controlo do glaucoma. 


                               Singapura
O modo de encarar o consumo de canábis varia amplamente conforme as regiões do mundo. Enquanto na Holanda o consumo é despenalizado e no estado americano do Colorado o comércio passou a ser legal, em países como a China, a Tailândia e Singapura, a venda pode implicar a prisão perpétua e até a pena de morte.

                                              (Continua)


terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

         
      LEGALIZAÇÃO DA CANNABIS

                                     I

Há dias (08-05-2014), a ministra portuguesa da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, defendeu, em entrevista à TSF, a despenalização do consumo da cannabis e a sua venda legal nas farmácias. Receoso de perder votos, o primeiro-ministro Passos Coelho apressou-se a declarar que se tratava duma opinião pessoal da ministra, a qual não falara em nome do governo.


        No entanto, Paula Teixeira da Cruz limitara-se a juntar a sua voz a um coro crescente de personalidades intocáveis que propõem a liberalização das drogas ditas «leves».
Em Junho de 2011, a Comissão Global sobre Política de Drogas, que integrava nomes como os de Kofi Annan, Mario Vargas Llosa, Javier Solana e George Schultz pronunciou-se pelo falhanço da guerra global às drogas e pela necessidade de se encontrarem caminhos alternativos.


Kofi Annan

Em Dezembro de 2013, o Uruguai tornou-se o primeiro país do mundo a legalizar «a produção, a distribuição e a venda» de canábis. Meses depois, o secretário nacional de drogas do país proclamava que «o número de mortes ligadas ao uso e comércio da droga fora reduzido a zero», embora reconhecesse que a liberalização levada a cabo fosse susceptível de incrementar o número de utilizadores.

José Mujica, presidente do Uruguai 

O Colorado, em Novembro de 2012, autorizara já a plantação de até seis pés de canábis em espaço fechado para cidadãos com idades superiores a 21 anos. O produto pederia ser oferecido a amigos. Em Novembro de 2014, os eleitores norte-americanos referendaram a legalização da canábis. A proposta foi aprovada nos estados de Alasca, Oregon e Washington. As perspectivas do nascimento duma indústria extremamente lucrativa são altas entre os economistas americanos.


Em Junho de 2014, o antigo presidente da República portuguesa Jorge Sampaio, em parceria com a antiga chefe de estado suíça, Ruth Dreyfuss, fez publicar, no Dia Internacional contra o Abuso e Tráfico de Drogas, um artigo em que defendia a «instituição de uma nova estratégia internacional para o século XXI» face ao problema das drogas. Tinham sido numerosos os países a propor o termo da «guerra às drogas» em Março, na sessão da Comissão de Estupefacientes da ONU.


Pena Nieto, Presidente do México

Logo após os referendos norte-americanos, os presidentes do México, Honduras, Belize e Costa Rica pediram aos países consumidores (leia-se EUA) que procedessem à revisão das leis existentes.
Trata-se duma onda de fundo, a nível mundial.  As mudanças esperadas irão também aplicar-se, ainda que de forma diferente, à abordagem do problema das drogas «duras». Falarei aqui apenas da marijuana. Não é preciso ser profeta para adivinhar a próxima liberalização do uso das drogas «leves» na Europa.
Em Portugal, o Bloco de Esquerda apresentou no Parlamento alguns projectos de lei com essa intenção. Espera-se, para breve, outra iniciativa que aponte no mesmo sentido.

                                                      (Continua)