DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 24 de março de 2015

          
  MORREU HERBERTO HELDER


Os meus amigos hão de lembrar o que eu costumava dizer quando se falava da poesia de alguns líderes nacionalistas das antigas colónias portuguesas, como Agostinho Neto ou Amílcar Cabral:
− Valem pela autenticidade, pelos testemunhos e pelo amor às suas terras, mas não são grandes poetas.
Perguntavam, ora contestadores, ora apenas curiosos:
− Então, para ti, quais são os grandes poetas de língua portuguesa desde Fernando Pessoa?
Eu respondia, invariavelmente:
−Herberto Helder e Eugénio de Andrade.
Que me perdoem os brasileiros (se puderem) pois desconheço a poesia recente do Brasil.
Nunca tentei estabelecer comparações entre um e outro, nem senti necessidade de o fazer. Cada um tem personalidade muito própria. Os deuses emprestaram a ambos o dom de dedilhar as palavras como quem acaricia as cordas duma guitarra para dar voz às canções. Falei em emprestar porque, no final, os deuses reclamam sempre o que lhes pertence.
Eugénio de Andrade faleceu em 2005. Deixou-nos, entre outros, lindíssimos poemas de amor homossexual. Não foi o primeiro a fazê-lo, na grande poesia portuguesa. Basta lembrar Antínoo, em que Fernando Pessoa imagina o imperador Adriano a chorar a morte do seu escravo e amante.
Não falarei hoje mais de Eugénio de Andrade. É dia de homenagear Herberto Helder, um homem diferente.
A última versão da sua obra «completa» Ofício Cantante (as aspas estão aí porque a obra provavelmente terá terminado ontem) foi um dos meus poucos livros de cabeceira durante os últimos meses. Sou persistente e li-o todo, sem saltar poemas. São pouco mais de seiscentas páginas do melhor que nos deu a escrita portuguesa no último meio século. Confesso que o fiz também por dever de ofício. Sou dos que acreditam que a leitura atenta dos poetas grandes ajuda a limar as arestas da escrita e permite suavizar a prosa, tornando-a mais agradável ao ouvido. Como é natural, gostei mais de uns poemas do que doutros.
Confesso ainda que não entendi tudo. Há no fundo dos espíritos sensações imperscrutáveis. Depois, julgo saber que as almas dos poetas se deixam também moldar pela força das palavras.
Não sou crítico literário. Embora aprecie poesia e tenha escrito uma qualidade limitada de versos sofríveis, não me posso chamar poeta. As minhas opiniões não têm qualquer autoridade técnica ou cultural. Limito-me a expressar o que penso e sinto.
Julgo que, de certo modo, Herberto Helder viveu quase como quis. Depois de falhar as experiências universitárias, andou pelo mundo e desempenhou vários ofícios. Ganhou fama de misantropo, mas não se furtou ao convívio dos amigos nem dos poetas aprendizes. Fez questão de evitar, a todo o custo, as luzes da ribalta. Não dava entrevistas nem se deixava fotografar. Mesmo atitudes quase provocatórias, como a de recusar o Prémio Pessoa, com um valor pecuniário não displicente para um poeta bem longe de ser rico, o expuseram demasiado à atenção dos media.
Não seria curial falar de um poeta sem apresentar alguns versos dele. Acontece que Herberto Helder é difícil de citar. Não se encontram facilmente na sua escrita frases lapidares. Os versos enredam-se uns nos outros e valem por esse encadear. Escolhi parte de O poema, do livro A colher na boca. Poderia ter feito muitas outras opções.
O poeta morreu bem, de repente e na própria cama. Morreu sem mestre.

         Fecundo mês da oferta onde a invenção ilumina
         a harpa e a loucura desperta a pura espada
         em pleno sangue. Ó vasto,
         amargo e límpido mês interior onde a graça
         se toca do fogo e o corpo se torna o cândido
         e longo varão de música. Escada de seiva
         entre arbustos de estrelas
         e cubos de sal perpetuamente ardendo.
         − Por ti, mês feliz de confusão e génio, 
          eu levanto minha húmida boca 
          até ao ar e ao vinho, levanto
          minha obscura pedra por vias de tormento 
          e instinto até
          ao barro vermelho do céu, ao espasmo
          violento e sagrado das palavras.


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