DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 17 de abril de 2017



OS MONSTROS DE BOSH


Já falei aqui de Jerónimo Bosh. O pintor flamengo fascina-me. Quando, há coisa de um ano, fui ao Museu do Prado ver a exposição que lhe era dedicada, trouxe de lá um livro com imagens muito belas. Irei hoje partilhar convosco umas tantas que ilustram monstros.



Não posso dizer que os monstros me encantem. A verdade é que os conheço mal.



Sei mais dos ogres dos contos angolanos que dos papões e tragos que assustavam os meninos europeus que não queriam comer a sopa ou eram malcriados para com as tias.



Seguramente ao longo de muitos séculos e, provavelmente, no decurso de milénios, os monstros foram vizinhos dos humanos.



O reino deles era o das trevas. Bastava que a luz das fogueiras esmorecesse para que se chegassem a nós. O escuro libertava das almas o pior da imaginação.



Os seres maléficos que partilhavam a noite com as feras chegavam ao alcance das vozes e (quem sabe?) das pontas dos dedos de um braço estendido.



Os homens fantasiavam depositar nos monstros a essência do mal. Talvez isso ajudasse a purificá-los.



Um preconceito antigo obrigava a que os bons fossem lindos e os maus feios. Os anjos apresentavam-se com as formas correspondentes aos ideais de beleza, enquanto os demónios eram atirados para a outra ponta da escala da estética. Ainda hoje, essa forma de olhar o bem e o mal é aparente nos filmes: os heróis e as heroínas são bonitos e os vilões, em geral, feios. Curiosamente, o diabo era frequentemente representado como um bode e eu sempre achei os bodes graciosos. 



      Nem sempre há consenso em matérias de gosto. Lembro-me do Pascoal, um cabo-verdiano que era tido como um futuro génio da Matemática, nos tempos da minha juventude, em Coimbra. Gostava de perguntar aos mais novos:
− Qual é que tu achas mais giro? Um cavalo, ou um gafanhoto?
Eram todos pelo cavalo, o que lhe permitia desenrolar a palestra preparada sobre as virtudes estéticas dos gafanhotos. Terá reunido poucos adeptos. Mais tarde, a vida não lhe proporcionou os sorrisos que a adolescência perspectivava.



Voltemos a Bosh e aos seus monstros. O mestre flamengo desenhou anjos e santos. Pintou até o que é, no meu modo de ver, o mais lindo rosto de Jesus Cristo. Para mim, a Virgem mais bela foi eternizada em mármore, por Miguel Ângelo, na Pietà. Bosh foi, contudo, bem melhor a criar símbolos do mal do que imagens piedosas. Concebeu figuras extraordinárias de monstros a partir dos pesadelos próprios e alheios e da tradição cultural medieva. Algumas das suas representações são magníficas.


  Os artistas procuravam que as suas obras promovessem o bem e transmitissem mensagens nesse sentido. Poderá ter sido essa, até certo ponto, a intenção de Bosh. 



    Terá desistido, a partir de certa altura. A tolice humana parecia invencível e os homens caminhavam alegremente para a perdição. Jerónimo Bosh terá passado a retratar os seus contemporâneos tais como os via, desistindo de dar conselhos ou de procurar melhorar as pessoas com a sua arte.

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