DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 29 de junho de 2016


AS VOZES NO MARFIM

II

Possuo alguns dentes de marfim esculpidos. Adquiri-os quase todos a retornados, entre 1975 e 1980.



O maior tem metro e meio de comprimento. Como o processo de esculpir lhe retirou grande parte da massa, pesa apenas 13 quilos.
O amigo que que o trouxe de Angola, à moda de transferência bancária, e mo vendeu, disse-me que as esculturas contavam quatro histórias.


Quarenta anos depois de o comprar, decidi analisá-lo. Dito de outro modo, quis ler o que transmitia. Retirei-o do suporte, lavei-o, fotografei-o com todo o cuidado e pus-me a estudar as imagens. É mais fácil do que rodar um dente relativamente grande
Fiquei desapontado. Não fui capaz de descortinar qualquer enredo.


Repetem-se as cenas de trabalho e de convívio. As pessoas transportam cargas, comem, bebem e parecem conversar. Identificam-se algumas árvores, como um coqueiro e uma bananeira.


As cubatas tanto são cónicas como de base quadrangular.  Note-se que em Angola, antes da colonização, as habitações do sul eram de base cónica e as do norte de base quadrangular, sendo todas cobertas por colmo (capim). Algumas construções são elaboradas, vendo-se alpendres. Julgo que a mistura de estilos indica troca de experiências e influência dos colonos brancos. Parece haver, pelo menos, um celeiro.
A maioria das figuras está agachada ou sentada. Têm todas o tronco nu e vestem um pano que desce até aos joelhos, ou mais baixo. As mulheres são raras e não têm enfeites. Poderá haver crianças, mas não são apresentadas com clareza.
Veem-se duas fogueiras com panelas em cima.
As vasilhas são de formas variadas. Algumas têm tampas.


Observam-se cachos de bananas, mas não são figuradas cenas de agricultura nem de pastorícia. Aliás, não há animais representados neste dente.


Não se avista uma arma.
Encontrei cenas da vida quotidiana, mas não fui capaz de identificar qualquer história. Aceito a possibilidade de a culpa ser minha, por não ser capaz de identificar o que está mesmo à frente dos olhos. Poderá haver símbolos que me escapam.
Será que estão a tentar ascender à sabedoria? Não consta que essa seja uma preocupação dos povos de Angola. Por outro lado, poucas figuras estão de pé. Parecem contentes com a situação em que vivem. 
Quem quiser ler ali histórias terá de as inventar.



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