DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 27 de junho de 2016


AS VOZES NO MARFIM

I
Quando admiro uma escultura em que figura um homem ou uma mulher, começo quase sempre por lhe dar um nome. É falso, mas isso pouco me importa. Sei que, ao dizê-lo, o estou a aproximar de mim.
Apresento-vos o Rodolfo. É homem sereno de meia-idade, cheio de confiança nele próprio, de olhar atento e desconfiado, talvez um nadinha vaidoso. Foi esculpido num dente de javali. Seria o material que o artista tinha à mão.


Os negros angolanos não sabiam escrever. Ainda hoje, há muitos que não sabem. Mesmo assim, as lendas e os contos proferidos à volta da fogueira vão passando de geração em geração, transmitindo a experiência, as expectativas e até o sentido de humor de um grupo que não desata os laços que o unem ao passado e vai garantindo a própria identidade.
Os cantares foram sempre uma manifestação cultural importante entre os africanos. As tribos construíam instrumentos musicais relativamente variados, com a tónica na percussão.
A escultura era outra das formas de honrar os espíritos e de manter vivos os conhecimentos antigos. As gentes nómadas pouco a desenvolveram. Deviam limitar ao mínimo os carregos que transportavam. Com a agricultura e a sedentarização, desenvolveu-se o trabalho na madeira e no marfim e foram-se talhando maravilhas.
A natureza da madeira torna-a pouco duradoura. O marfim atravessa mais gerações. A pedra era pouco usada, mas alguns povos africanos dominaram a manufatura dos metais. 
       Hoje, vou falar do marfim.
Nem sempre as histórias que nele são escritas se mostram fáceis de ler. Algumas falam de tradições perdidas, de métodos de produção abandonados e de regras de conduta que não perduraram. Ainda assim, são proferidas numa língua universal e enaltecem o trabalho e a valentia. Cantam a beleza das mulheres e a sabedoria de alguns homens.


Apreciem a graça deste antílope ajoelhado. Pelo desenho dos cornos, diria que é um orix. O escultor emprestou-lhe a leveza que é apanágio dos espíritos. Reparem na elegância da silhueta, na delicadeza das orelhas e na graciosidade da cauda.


Como é bela esta rapariga, orgulhosa do viço da sua juventude! Dei-lhe o nome de Mariana. Trata-se de uma peça recente, sofisticada e com trabalho de máquina. Provavelmente, a estatueta será produzida em série. Quanto tempo terão levado as amigas, ou a mãe, a esculpir a obra de arte que é o seu penteado? Que lindo o volumoso colar adornado!


Mostro agora uma dama negra, com expressão de dignidade e de certo orgulho no rosto. A peça tem 23 cm de altura. Vamos rodar lentamente o seu toucado. As figurinhas nele esculpidas têm, no máximo, 4 cm de altura.


Um homem parece querer subir a uma árvore enquanto outro, de costas voltadas, toca um tamborim. 


Modificando ligeiramente a posição, vemos junto ao músico uma mulher que mói o milho e uma figura ajoelhada que segura na mão um objeto que não sei identificar.


Aparece depois a palmeira. Uma figura levanta o que poderá ser uma criança. 


Um homem dobrado sobre o peso transporta aos ombros um pau que parece ter suspenso em cada extremidade um molho de cocos. Tem um punhal à cintura.


 Rodando um pouco mais, acabamos a volta. Observa-se uma figura que carrega à cabeça lenha atada. Não se lhe entende o género.


Tudo isto se encontra na touca da mulher a que chamei Patrícia. São representações da vida quotidiana do seu quimbo.




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