DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 8 de julho de 2014

                    

                    O PLÁGIO DE EÇA



Publiquei o essencial deste artigo há três dezenas de anos, no Jornal de Letras. Pareceu-me interessante arejá-lo agora no «decaedela».
Não enfileirando com os que consideram Eça de Queiroz o maior prosador português de todos os tempos, respeitei sempre a sua escrita e procurei aprender com ela. No entanto, não existem homens perfeitos. «Não há bela sem senão». «No melhor pano cai a nódoa».
Há 35 anos, encontrava-me em Barcelona a treinar microcirurgia. Numa tarde fria de março, fui ao cinema do bairro. Passava no cinema do bairro, junto ao Paseo de Gracia, uma fita de Pasolini, «Os Contos de Canterbury», Reconheci facilmente, numa das histórias, o conto «O Tesouro», atribuído a Eça de Queiroz.



Decidi esmiuçar o assunto. Li duas biografias de Eça e tomei de empréstimo, da minha amiga Júlia Marvão, «The Canterbury Tales», de Chaucer.



   Era uma edição da Penguin e apresentava os versos adaptados ao inglês moderno. «The Pardoner´s Tale» ocupava as páginas 260 a 272. «O Tesouro» correspondia mais diretamente às páginas 269 a 271.



Eça fez uma introdução diferente e abandonou a parábola da Morte procurada tolamente pela soberba da juventude. Manteve, no entanto, o enredo básico. A pequena diferença na sucessão dos crimes nada mudava, no essencial.
Posta de lado a hipótese de coincidência, inverosímil para quem comparasse as histórias, poderia admitir-se a origem comum dos textos, perdida algures no tempo e no pó das estantes, a meio do antigo património cultural que a circulação dos livros e das fronteiras terá feito europeu. Na realidade, a paternidade dos contos não parece sequer ter sido reclamada demasiado vivamente por Chaucer. No final do século XIV, a originalidade era menos apreciada nos escritos que o estilo que os vestia. «Não era considerada função de um contador inventar as histórias, mas apresentá-las e embelezá-las com todas as artes da retórica, com a finalidade de entreter e instruir» (Nevill Coghill, na edição que consultei dos Contos da Cantuária). Os contos narrados pelos peregrinos de Chaucer provinham de toda a Europa e mesmo do Oriente. Uma das poucas narrativas atribuídas ao próprio Chaucer é a do «Canon´s Yeoman».



Geoffrey Chaucer, homem da Renascença e leitor insaciável, conhecia bem a literatura latina, francesa, anglo-normanda e italiana e teve a oportunidade de contactar com a galaico-lusitana. O escritor era protegido de John de Gaunt, duque de Lencastre, ligado às duas últimas guerras do reinado do nosso D. Fernando e à guerra da independência que se lhe seguiu. 



     Não acompanhou o seu protetor quando este, depois de invadir e tomar a Galiza em 1386, se avistou com D. João I na fronteira norte de Portugal. Não assistiu assim ao primeiro encontro do novo rei de Portugal com D. Filipa, filha do duque, em Poço de Mouro, entre Melgaço e Monção.



Cônsul de Portugal em Inglaterra durante 14 anos, Eça teve oportunidades de sobra para conhecer a literatura inglesa. Terá lido Chaucer e escrito uma versão de um dos seus contos. É de admitir que, pressionado pelos editores e carente de dinheiro, se tenha servido de um texto alheio sem mencionar devidamente a sua fonte.



As dificuldades económicas que acompanharam Eça ao longo da vida são bem conhecidas. Os proventos da escrita contribuíam minoritariamente para o seu orçamento. Ainda assim, em 1878, em Bristol, somavam 29 libras semanais num total de 80 (carta a Ramalho Ortigão) e obrigavam à feitura mensal de uma novela para a Chardron, além da correspondência para «A Actualidade».
Por essa altura, um irmão de Ramalho, radicado no Brasil, sugeriu a Eça de Queiroz colaboração para «A Gazeta de Notícias», do Rio de Janeiro. «O Tesouro» foi publicado na Gazeta em 1884. Ao tempo, Eça era cônsul em Paris e escrevia «A ilustre casa de Ramires».
Já lá vão 130 anos. Chaucer jaz na Abadia de Westminster desde 1400. Pouco se tem falado neste assunto. É fácil imaginar o embaraço dos queirosianos devotos que descobriram o pecadilho do grande mestre.

Esse indiscreto Pasolini…

Imagens: Internet

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