DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012


                 FREI ANTÓNIO DAS CHAGAS



       Morei durante mais de um quarto de século na Rua Frei António das Chagas, em Setúbal, e pouco aprendi sobre o frade. Sabia vagamente que era poeta. Recentemente, resolvi recolher alguma informação.
Antes de professar, o homem chamava-se António da Fonseca Soares. Nasceu na Vidigueira em 1631 e morreu em Varatojo, perto de Torres Vedras, aos 51 anos. Pelo meio, ficou uma vida agitada.
Curiosamente, tal como Bocage, António Soares era filho de um magistrado e de uma senhora estrangeira. Estudou no colégio dos Jesuítas, em Évora, mas a morte do pai forçou-o a abandonar os estudos. O jovem alistou-se no exército e participou na Guerra da Restauração.
Começou cedo a fazer poemas. À maneira de Camões, usava numa das mãos a espada e na outra a pena e tornou-se conhecido como militar e como poeta. Tinha um feitio impetuoso. A mão da espada feriu de morte um rival, num duelo, e António da Fonseca Soares teve de se refugiar no Brasil. Passou três anos na Baía, sem ganhar grande juízo. Em 1656 voltou a Portugal e à guerra. Foi promovido a capitão, pela sua coragem.
Aos 31 anos de idade, voltou-se para Deus e fez-se monge na Ordem de São Francisco. A igreja apreciou sempre os pecadores arrependidos.
Frei António das Chagas chegou a ser um pregador conhecido em todo o País. Dizem que se esbofeteava no púlpito e que chegou a lançar um crucifixo para a assistência, para dar ênfase à pregação. No ano da sua morte, 1682, fundou em Setúbal o Convento de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes.
Praticou variados géneros poéticos, dos sonetos aos madrigais e às glosas. O poema que aqui deixamos é uma pequena maravilha. Frei António das Chagas canta a efemeridade da vida.

          Deus pede estrita conta do meu tempo.
          E eu vou do meu tempo dar-lhe conta.
          Mas como dar, sem tempo, tanta conta
          Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo?

          Para dar minha conta feita a tempo,
          O tempo me foi dado, e não fiz conta,
          Não quis, sobrando tempo, fazer conta,
          Hoje, quero acertar conta, e não há tempo.

          Oh, vós, que tendes tempo ser ter conta,
          Não gasteis vosso tempo em passatempo.
          Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta!
          Pois aqueles que, sem conta, gastam tempo,
          Quando o tempo chegar, de prestar conta
          Chorarão, como eu, o não ter tempo.

                              Também publicado em O Canto dos Poetas

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