DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

ÁFRICA: O MUNDO COMEÇOU NUM CACHIMBO DE LIAMBA


O velho Kuíma fumava o seu cachimbo de liamba. Deixou-se dormir e sonhou.

O tempo era novo e Kalunga acabara de nascer.

Entrou contente no mundo. Gostou de si próprio e sorriu.

O sorriso soltou-se-lhe dos lábios. Kalunga chamou-lhe pássaro. Soprou-o para o alto e deu-lhe forma. Ofereceu-lhe também o poder de voar. O bater das asas alegrou a noite do início. Estava criado o primeiro sonho.

O Mais Velho ficou ainda mais satisfeito. Sacudiu as mãos de contentamento. Provocou uma aragem. Abriram-se rasgões no escuro, em frente ao pensamento: inventara o olhar.

Teve de aprender a utilizar aquele novo instrumento. Não foi fácil. Quando o conseguiu, espreitou demoradamente à sua volta. Observou tudo com muito, muito cuidado. Levou tempo. Depois, sentou-se e reflectiu.

As coisas assim não estavam bem. Faltava cor ao mundo. Kalunga agachou-se e apanhou do chão um punhado de caulino e outro de argila vermelha. Juntou-lhe pigmentos daqui e dali e começou a pintar.

Não acertou logo. Teve de fazer experiências e sentiu mesmo a falta de um conselho, mas a única companhia que tinha era a do pássaro e ele não parecia esperto. Hesitou bastante antes de se decidir.

Por fim, escolheu para o céu tons de azul. O campo, depois de pensar, coloriu-o de verde. Pintou a noite de um preto muito preto. Achando-a triste, enfeitou-lhe o tecto com uma multidão de pontinhos doirados. Tudo ficou mais lindo.

Kalunga maravilhou-se com a sua obra. Pôs-se de pé e chorou de alegria. Criara a chuva.

As lágrimas tombaram. O solo recolheu as que pôde e sentiu-se grato. Como eram muitas, não foi capaz de as beber todas. As que sobraram acabaram por escorrer. Formaram regatos que deslizaram montes abaixo e se juntaram em rios.

O Ser mais antigo voltou a olhar em redor. A terra parecia quase perfeita. Quase... Estava deserta.

Kalunga criou então o homem e os bichos do mato. Alguns pássaros encantaram-se com a água. Mergulharam e fizeram-se peixes.

A erva acabou-se no cachimbo e o velho Kuíma sentiu nos joelhos as doeres de sempre. Mexeu-se um pouco, sem se levantar do tronco onde estava sentado. Não lhe apetecia despertar.


Em: Os colonos. Modificado para O dia em que Deus começou a desmontar o Mundo.

Fotografia do autor


Também publicado em O BAR DO OSSIAN

2 comentários:

  1. Ah! Valeu!
    Como sabe bem a chocolate esta prosa.
    Obrigado pelos momentos e pelo que me
    fica na imaginação.
    Obrigado.

    Um Abração.

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  2. Boa tarde
    Continuo a gostar do que escreve e com uma panóplia tão grande de temas, lê-lo imforma e
    aumenta conhecimentos, distrando.
    Cumprimentos
    Zory

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