DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 21 de março de 2010

CRÓNICAS DO MAR


A bordo do Gil Eannes, 8 de Maio de 1970


Estamos fundeados em Virgin Rocks. Quando a névoa dispersa, chega a ver-se o quebrar das ondas no Manoleijo, um rochedo submerso que é referência comum em conversas de pescadores.

Ontem, ao fim da tarde, perdeu-se um bote. O nevoeiro não permitia a visibilidade para além de cinquenta metros. Por vezes, quando a neblina é densa, reflecte ou desvia o som, e os avisos roucos das buzinas dos navios parecem vir de direcções enganadoras. Um homem que vá por elas pode esgotar-se a remar para o inferno.

Durante perto de duas horas, estivemos grudados à fonia, acompanhando a evolução das buscas, uma vez que nos encontrávamos longe demais para participar nelas. Estava um homem sozinho num dóri, perdido no nevoeiro, e a noite aproximava-se.

As condições de navegabilidade desses botes de fundo chato são precárias e as possibilidades de orientação limitadas. As previsões meteorológicas eram desfavoráveis.

Quatro navios de pesca à linha encarregaram-se da pesquisa. Três dóris, tripulados por pescadores "maduros", arriaram também, que a falta de um companheiro pesa mais do que o medo da noite no mar.

As vozes que nos chegavam das pontes de comando dos navios distantes não vestiam matizes de emoção: soavam calmas e quase frias. Era o auto-domínio que o hábito de conviver com o perigo dava. As indicações, as ordens, o terrivelmente simples "nada ainda", soavam como uma eficiência mecânica enquanto esses homens se esforçavam por recuperar uma vida ameaçada. Ouviam-se também palavras de ânimo: que o rapaz era forte e bom remador, que se aguentava! E chegavam os pormenores: era um "verde" do ano passado, de Caxinas; o irmão acompanhara-o quase até ao fim da faina e deixara-o pouco antes do desaparecimento, quando ainda se não adivinhavam problemas.

Se um dóri está bem carregado de bacalhau, da borda à água vai menos de um palmo e a ondulação, mesmo com mar calmo, facilmente o galga. Um pescador tem de remar, ao mesmo tempo que, com o bartedouro, vai esgotando a água que entra. É fácil morrer nos bancos da Terra Nova.

É mais frequente ocorrerem desgraças com bom tempo do que com mau. Os homens facilitam, e mais se a pesca é boa. Tendem a ignorar o perigo e carregam os botes para além dos limites da prudência.

O dóri foi achado quando a noite começava a tingir de escuro o cinzento das águas. Hoje o pescador arriou outra vez, que o mar é generoso mas não perdoa a quem o teme.

2 comentários:

  1. Bom dia
    Li agora Crónicas do Mar e gostei de conhecer esta sua feceta de vida de "marinheiro" que não aparece nos seus livros e é bastante curiosa.
    Cumprimentos
    Zory

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  2. Vês, Trabulo, como tenho razão!
    A tua vida de marinheiro tem muito que contar.

    Abraço

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