GRONELÂNDIA*
II
Os pescadores portugueses também contribuíram para a mistura de raças em Godthab, capital da Gronelândia. Os portugueses pronunciavam “Gotópe”. Agora, chamam-lhe Nuuk.
Godthab situa-se na foz de um fiorde, na costa oeste da ilha, a 150 milhas ao sul do Círculo Polar. Sendo pequena, é das maiores cidades do Ártico. Teria menos de 10.000 habitantes em 1970.
O mar da Gronelândia era geralmente sereno e de vaga larga. O tempo costumava ser claro e a costa montanhosa, com abundância de gelo mesmo no verão, conservava-se quase sempre à vista. A vizinhança dos icebergs era comum. Deslocavam-se com o vento e com as correntes, tal como os navios. Chegávamos a ver os mesmos durante semanas, se as embarcações não precisassem de se deslocar.
Os blocos de gelo mais pequenos, a que os ingleses chamavam grollers, poderiam ser perigosos, por se distinguirem mal no radar quando havia ondulação forte.
Durante as viagens de ida e de volta, encontrávamos bancos de gelo que se estendiam até perder de vista e que era preciso contornar.
Foi anunciada uma ida a Godthab. Os tripulantes do navio hospital rejubilaram.
Frederico Mendes não chegou a saber ao certo o que é que o Gil Eannes foi lá fazer. Comprou-se algum salmão fresco e contactaram-se as autoridades locais. Pouco importava. A tripulação estava excitada com a visita.
O autor, com o Gil Eannes ao fundo, junto a Godthab
Quase todos os marinheiros portugueses sonhavam com a ida à Gronelândia. Corriam lendas sobre a permissividade das mulheres esquimós e sobre a facilidade com que os maridos compravam, a bom preço, álcool muitas vezes roubado das farmácias dos navios. Era colorido com umas gotas de tintura de iodo, para parecer uísque ou conhaque.
Haveria um fundo de verdade em algumas histórias, mas isso importava pouco ao doutor Frederico. Sentia-se curioso. Lera, na adolescência, histórias épicas de caça, pesca e sobrevivência de pequenos grupos esquimós nas terras agrestes junto ao Ártico e tinha vontade de ver ao vivo os descendentes da epopeia.
Ficou desapontado. Os esquimós vestiam-se como ele, alimentavam-se como ele e partilhavam, nas suas terras pequenas, os mesmos problemas de desemprego e alcoolismo que afligiam as grandes cidades europeias.
Pouco depois de desembarcar em Godthab, encontrou um grupo de crianças que retribuíam a curiosidade com que ele as olhava. A aparência dos miúdos era pouco uniforme. Variavam desde esquimós puros até dinamarqueses quase puros. Alguns tinham cabelo loiro e olhos claros.
Na periferia da pequena cidade, predominavam as casas de madeira pintadas de cores alegres. No centro, havia prédios em betão, com muitos andares.
Frederico avistou algumas focas mortas junto às casas. Não era preciso guardá-las no frigorífico. Mesmo no verão, as temperaturas mantinham-se baixas e a carne não chegava a apodrecer.
Surpreendeu-se com o número e com a voracidade dos mosquitos. Julgara, ingenuamente, que se davam bem apenas em climas quentes.
Ele e o maquinista Josué andaram por aqui e por ali e visitaram um par de bares. Os da terra mostraram-se extraordinariamente hospitaleiros. Parecia que, nessas paragens remotas, não se passava coisa alguma e que a visita de um navio que transportava pessoas diferentes bastava para sacudir a rotina e dar um pouco de animação ao local. Claro, a cerveja ajudava à festa.
À hora do jantar, petiscaram pedacitos de salmão fumado com pão torrado. Pouco depois, foram convidados para casa duma família esquimó. Não se tratava propriamente de um iglu. Era um apartamento espaçoso situado no quarto andar dum prédio moderno.
Os homens eram simpáticos e esforçavam-se por pensar em inglês, com sucessos variáveis. Tanto as bebidas como as mulheres eram oferecidas.
Josué adiantou-se e desapareceu atrás duma porta com uma das senhoras. Só se deixou ver três quartos de hora mais tarde.
O médico resistiu. Não estava embriagado, nem deixara de pensar com clareza. Por um lado, não se sentia atraído por aquele tipo de feições de mulher. Por outro lado, achava que se deixara levar para uma casa de passe. Recusou, o mais polidamente que pudesse, as ofertas expressas por olhares, já que nenhuma daquelas jovens era fluente na língua inglesa.
Frederico Mendes confidenciava aos amigos que, a partir dos dezassete anos, nunca alugara uma mulher.
− Para mim, o sexo e o dinheiro são como o azeite e a água: não se misturam.
Recorria, por vezes, uma outra frase mais elegante para dizer a mesma coisa:
− Não acredito nessa forma de amor.
A expressão não era dele. Recolhera-a dum filme de Ingmar Bergman visionado anos atrás. Referia-se a uma possibilidade de violação. O jovem apropriava-se das palavras, modificando-lhes o contexto.
As horas foram passando. Saíram de manhã, para apanharem a lancha que o Gil Eannes enviara para recolher as ovelhas tresmalhadas. O porto local não tinha profundidade que permitisse a atracação de embarcações grandes e o navio hospital fundeara a uma distância segura de terra.
No caminho de regresso, antes de alcançar o porto de embarque, Frederico Mendes quase se sentiu pasmado. Tinha em frente uma das mulheres mais belas que avistara em toda a sua vida. As esquimós não são interessantes para os padrões europeus de beleza, mas uma mistura de sangues chegava a dar resultados extraordinários.
A meio da tarde, depois de dormir algumas horas, Frederico foi capaz de ver mais claro. Aquelas mulheres não se prostituíam. Limitavam-se a oferecer-se. Ninguém se lembrara de lhes cobrar alguma coisa pelas bebidas. Os esquimós eram hospitaleiros. As senhoras ficaram magoadas pela sua indiferença.
Sorriu, quando imaginou que poderia ter passado por impotente, ou mesmo por maricas.
* Este artigo foi retirado de parte de um capítulo do romance Gil Eannes/ San Jones, da minha autoria, publicado pela Fundação Gil Eannes em 2019.
A fotografia de Nuuk foi retirada da Wikipedia