DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

 

          

      GRONELÂNDIA*

                                          II

Os pescadores portugueses também contribuíram para a mistura de raças em Godthab, capital da Gronelândia. Os portugueses pronunciavam “Gotópe”. Agora, chamam-lhe Nuuk.

Godthab situa-se na foz de um fiorde, na costa oeste da ilha, a 150 milhas ao sul do Círculo Polar. Sendo pequena, é das maiores cidades do Ártico. Teria menos de 10.000 habitantes em 1970.

O mar da Gronelândia era geralmente sereno e de vaga larga. O tempo costumava ser claro e a costa montanhosa, com abundância de gelo mesmo no verão, conservava-se quase sempre à vista. A vizinhança dos icebergs era comum. Deslocavam-se com o vento e com as correntes, tal como os navios. Chegávamos a ver os mesmos durante semanas, se as embarcações não precisassem de se deslocar. 

Fotografia tirada da ponte do Vimieiro

Os blocos de gelo mais pequenos, a que os ingleses chamavam grollers, poderiam ser perigosos, por se distinguirem mal no radar quando havia ondulação forte. 

Durante as viagens de ida e de volta, encontrávamos bancos de gelo que se estendiam até perder de vista e que era preciso contornar.

Foi anunciada uma ida a Godthab. Os tripulantes do navio hospital rejubilaram.

Frederico Mendes não chegou a saber ao certo o que é que o Gil Eannes foi lá fazer. Comprou-se algum salmão fresco e contactaram-se as autoridades locais. Pouco importava. A tripulação estava excitada com a visita.

                    O autor, com o Gil Eannes ao fundo, junto a Godthab

Quase todos os marinheiros portugueses sonhavam com a ida à Gronelândia. Corriam lendas sobre a permissividade das mulheres esquimós e sobre a facilidade com que os maridos compravam, a bom preço, álcool muitas vezes roubado das farmácias dos navios. Era colorido com umas gotas de tintura de iodo, para parecer uísque ou conhaque.

Haveria um fundo de verdade em algumas histórias, mas isso importava pouco ao doutor Frederico. Sentia-se curioso. Lera, na adolescência, histórias épicas de caça, pesca e sobrevivência de pequenos grupos esquimós nas terras agrestes junto ao Ártico e tinha vontade de ver ao vivo os descendentes da epopeia.

Ficou desapontado. Os esquimós vestiam-se como ele, alimentavam-se como ele e partilhavam, nas suas terras pequenas, os mesmos problemas de desemprego e alcoolismo que afligiam as grandes cidades europeias.

Pouco depois de desembarcar em Godthab, encontrou um grupo de crianças que retribuíam a curiosidade com que ele as olhava. A aparência dos miúdos era pouco uniforme. Variavam desde esquimós puros até dinamarqueses quase puros. Alguns tinham cabelo loiro e olhos claros.

Na periferia da pequena cidade, predominavam as casas de madeira pintadas de cores alegres. No centro, havia prédios em betão, com muitos andares.

Frederico avistou algumas focas mortas junto às casas. Não era preciso guardá-las no frigorífico. Mesmo no verão, as temperaturas mantinham-se baixas e a carne não chegava a apodrecer.

Surpreendeu-se com o número e com a voracidade dos mosquitos. Julgara, ingenuamente, que se davam bem apenas em climas quentes.

Ele e o maquinista Josué andaram por aqui e por ali e visitaram um par de bares. Os da terra mostraram-se extraordinariamente hospitaleiros. Parecia que, nessas paragens remotas, não se passava coisa alguma e que a visita de um navio que transportava pessoas diferentes bastava para sacudir a rotina e dar um pouco de animação ao local. Claro, a cerveja ajudava à festa.

À  hora do jantar, petiscaram pedacitos de salmão fumado com pão torrado. Pouco depois, foram convidados para casa duma família esquimó. Não se tratava propriamente de um iglu. Era um apartamento espaçoso situado no quarto andar dum prédio moderno.

Os homens eram simpáticos e esforçavam-se por pensar em inglês, com sucessos variáveis. Tanto as bebidas como as mulheres eram oferecidas.

Josué adiantou-se e desapareceu atrás duma porta com uma das senhoras. Só se deixou ver três quartos de hora mais tarde.

O médico resistiu. Não estava embriagado, nem deixara de pensar com clareza. Por um lado, não se sentia atraído por aquele tipo de feições de mulher. Por outro lado, achava que se deixara levar para uma casa de passe. Recusou, o mais polidamente que pudesse, as ofertas expressas por olhares, já que nenhuma daquelas jovens era fluente na língua inglesa.

Frederico Mendes confidenciava aos amigos que, a partir dos dezassete anos, nunca alugara uma mulher.

− Para mim, o sexo e o dinheiro são como o azeite e a água: não se misturam.

Recorria, por vezes, uma outra frase mais elegante para dizer a mesma coisa:

− Não acredito nessa forma de amor.

A expressão não era dele. Recolhera-a  dum filme de Ingmar Bergman visionado anos atrás. Referia-se a uma possibilidade de violação. O jovem apropriava-se das palavras, modificando-lhes o contexto.

As horas foram passando. Saíram de manhã, para apanharem a lancha que o Gil Eannes enviara para recolher as ovelhas tresmalhadas. O porto local não tinha profundidade que permitisse a atracação de embarcações grandes e o navio hospital fundeara a uma distância segura de terra.

De volta ao navio

No caminho de regresso, antes de alcançar o porto de embarque, Frederico Mendes quase se sentiu pasmado. Tinha em frente uma das mulheres mais belas que avistara em toda a sua vida. As esquimós não são interessantes para os padrões europeus de beleza, mas uma mistura de sangues chegava a dar resultados extraordinários.

A meio da tarde, depois de dormir algumas horas, Frederico foi capaz de ver mais claro. Aquelas mulheres não se prostituíam. Limitavam-se a oferecer-se. Ninguém se lembrara de lhes cobrar alguma coisa pelas bebidas. Os esquimós eram hospitaleiros. As senhoras ficaram magoadas pela sua indiferença. 

Sorriu, quando imaginou que poderia ter passado por impotente, ou mesmo por maricas.

 

 

*         Este artigo foi retirado de parte de um capítulo do romance Gil Eannes/ San Jones, da minha   autoria, publicado pela Fundação Gil Eannes em 2019.

       A fotografia de Nuuk foi retirada da Wikipedia



terça-feira, 14 de janeiro de 2025

 

 

GRONELÂNDIA

 

PARTE I

 

As ambições expansionistas norte-americanas, a que Donald Trump recentemente deu voz, constituíram pretexto para relembrar algumas regiões por onde naveguei há pouco mais de meio século. Desloquei-me em cumprimento do serviço militar obrigatório, como médico da Reserva Naval apoiando a frota portuguesa da pesca do bacalhau. Na maior parte desse tempo, estive colocado no navio hospital Gil Eannes.  

Começarei por falar da Gronelândia. É a maior ilha do mundo, se a Austrália for considerada um continente.

Passei boa parte de dois verões (falo dos anos de 1970 e 1971) a bordo de navios que pescavam bacalhau à linha junto à sua costa ocidental. Na primeira temporada, estive no “Vimieiro” e, na segunda, no “Neptuno”. Naquela altura do ano, era sempre dia.   

O litoral escarpado da ilha estava continuamente à nossa vista e os icebergs (que se derretiam lentamente) faziam-nos companhia. Para mal dos nossos pecados, as deslocações à terra eram raras e curtas.

A ilha era (e é) habitada por esquimós (inuit) e por um pequeno número de colonos islandeses e noruegueses. Dada a hostilidade do clima do interior, a maior parte da diminuta população fixou-se perto do mar. A densidade populacional na ilha é extraordinariamente baixa.    

Em 1984 considerava-se que viviam ali 16.000 esquimós e 400 europeus. Hoje os habitantes serão cerca de 56.000. Quase 90 por cento são “inuit”, ou mestiços de “inuit” e europeus.

O clima é agreste, com invernos prolongados e rigorosos. Dos cerca de 2.180 mil km2 da sua superfície, apenas uns 88.000 são livres de gelo. A Antártida é a única região do mundo que dispõe de uma reserva de gelo superior à da Gronelândia.

Façamos algumas perguntas à História.

         Foi Erik Rauda (Eric o Roxo) quem chamou “Terra Verde” à costa então verdejante do sudoeste da ilha.

Em tempos recuados, a Gronelândia foi habitada pelos antepassados ​​​​dos esquimós. Perto do final do primeiro milénio da era cristã, os noruegueses estabeleceram duas colónias nos fiordes do sul da costa ocidental da ilha. As condições climáticas seriam então mais amenas e a terra poderiam ser mesmo chamada de “verde”. Chegou a existir uma diocese católica na região. O convívio com os esquimós (inuítes) parece ter sido geralmente pacífico. Em 1261, a Gronelândia tornou-se parte do Reino da Noruega. 

A meteorologia ter-se-á agravado e, cinco séculos depois, os noruegueses abandonaram a ilha.

A dada altura, os nossos navegadores deram o seu contributo para a história da região. 

No ano de 1500, o rei D. Manuel encarregou Gaspar Corte Real de procurar uma passagem para a Ásia, por nordeste. É provável que dispusesse de alguma informação que apontasse nesse sentido. Gaspar chegou à costa da Gronelândia. Julgou ter avistado a Ásia, mas não desembarcou.

Regressou no ano seguinte, com mais caravelas e acompanhado do seu irmão Miguel. Deu com o mar gelado e inverteu o rumo. Terá então descoberto a “Terra Nova”.

Falemos agora do capitão David Melgueiro. É pouco conhecido entre nós. Confesso que li, pela primeira vez, esse nome no costado dum arrastão da pesca do bacalhau e que tive de perguntar quem era.

Comandando um navio holandês que se chamava “O Pai Eterno”, David Melgueiro zarpou do porto de Tanegashima, no Japão, em março de 1660. Rumou a norte, passou o Estreito de Bering, que separa a Rússia do Alasca, e navegou para oeste pelo Oceano Glaciar Ártico, ao longo da imensa costa da Sibéria. Ao fim de muitos meses, terá avistado o arquipélago de Svalbard, o local habitado mais próximo do Polo Norte. Rumou então para sul, passando entre a Gronelândia e a Noruega, bordejou as costas da Escócia e da Irlanda e aportou à Holanda. Aí, Melgueiro embarcou noutro navio e acabou por atracar na foz do Rio Douro. 

A viagem terá durado cerca de dois anos. A ser verdadeiro o relato do diplomata e espião francês Seigneur de La Madeleine (que é contestado por alguns), esse feito terá sido tão admirável como as viagens históricas de Vasco da Gama e de Fernão de Magalhães. A expedição de Melgueiro seria repetida apenas dois séculos mais tarde, com a proeza do navegador finlandês Nils Nordenskjold, realizada em 1878.  

Ao longo de séculos, a Dinamarca e a Noruega constituíram apenas um país. Separaram-se em 1814, altura em que a Noruega se juntou à Suécia. A Dinamarca conservou sob a sua influência a Islândia, as ilhas Feroé e a Gronelândia.

Durante a Segunda Grande Guerra, com a ocupação nazista da Dinamarca, a Gronelândia aproximou-se económica e socialmente dos Estados Unidos e do Canadá. Findo o conflito, regressou ao controlo da Dinamarca, tendo obtido alguma autonomia em 1979. Curiosamente, foi o primeiro território a abandonar a União Europeia, ficando com o estatuto de estado associado.

Provavelmente, os recursos minerais do subsolo da Gronelândia serão apenas parcialmente conhecidos. Existem depósitos de chumbo, zinco, ouro, platina, molibdénio, carvão e urânio. Em 1994 também foi encontrado petróleo. As minas de rubis são exploradas desde 2007. Encontrou-se ainda alumínio, níquel, ferro e cobre.

Existem 14 aeroportos na ilha. Os dois maiores (Kangerlussuag, na costa ocidental, e Narsarsuag, na costa sul) têm capacidade para receber grandes aviões.

O navegador português David Melgueiro terá encontrado condições climáticas especialmente favoráveis para poder levar o cabo a sua travessia. A continuação do aquecimento global e do degelo na Gronelândia e no Oceano Glacial Ártico tornarão mais fácil a ligação marítima da Ásia à América e à Europa pela rota do Ártico e darão à Gronelândia uma posição estratégica determinante. A par das riquezas do subsolo, poderá ser essa outra grande razão para exigir a cobiça americana. 

 

CAMILO AO PANTEÃO!

 

CAMILO AO PANTEÃO!

 

Volto a publicar este artigo, que data de dezembro de 2009. Nada retiro ou acrescento ao que escrevi na altura.

                   

No mês de junho de 1910, irão contar-se 120 anos sobre a morte de Camilo Castelo Branco. Não se poderá falar de comemoração, porque os suicídios não se comemoram, mas entendo que os acontecimentos de vulto devem ser assinalados.

 O século XIX permitiu fixar as bases da língua portuguesa atual. Essa obra deve-se a escritores de génio como Garrett, Camilo e Eça de Queirós (que Alexandre Herculano me perdoe...) e grandes poetas como Antero de Quental.

 Neles enraíza tudo o que de melhor se escreveu em Portugal, desde então.
         Entre esses grandes vultos, nenhum foi tão genuinamente português como Camilo, nem tão apegado à fala e aos costumes da nossa gente. Garrett e Eça andaram pelo mundo e receberam influências daqui e dali. Camilo relatou não ter posto os pés fora do solo pátrio. É nas suas páginas que mais claramente se sente o pulsar dos corações portugueses.
            O seu corpo foi depositado no Jazigo de Freitas Fortuna, no Cemitério da Irmandade da Lapa, no Porto.

  É tempo de seus restos mortais serem traduzidos para o Panteão Nacional, onde está sepultado Garrett.

Proponho iniciar na Internet um movimento de coleta de assinaturas destinado a influenciar o ministério da Cultura nesse sentido.


António Trabulo

domingo, 5 de janeiro de 2025

 



        UMA CARTA DO PORTO

 

Recebi ontem uma carta do Porto. Reconheci a letra, um bastardinho bem desenhado, mesmo antes de ler o nome de quem a enviara.


                                                     

Era do Camilo. Rezava assim:


Meu caro António:

Já não conversamos há bastante tempo. Julgo que não voltámos a contactar desde a última entrevista que fez para a minha biografia. A propósito: acho que foi muito avaro nos encómios. Sei que cultiva um estilo contido, mas, de vez em quando, deveria soltar-se mais. Enfim…

      Há um par de dias, tentei telefonar-lhe, mas a rede, aqui, é fraca.            

                                    


                         

      Estará a adivinhar a razão pela qual lhe escrevo. Vão transferir os restos mortais de Eça para o Panteão Nacional.  

       Nada tenho contra o Eça de Queirós. Escreve muito bem, apesar de cultivar um estilo que me parece afrancesado. “O crime do Padre Amaro” trouxe-me logo à memória “O crime do abade Mouret”, de Zola. De incestos como o de “Os Maias” estão o mundo e o inferno cheios. Os estilos naturalista e realista fizeram-se moda na literatura e o Eça prosperou. Acho bem… Para mais, o pai dele, o juiz Queirós, escusou-se a julgar-me no caso do adultério, por ser meu amigo. Bem, são coisas que já lá vão.

O António conhece-me e sabe que sempre me dei bem com a escrita. Houve mesmo quem me considerasse, em tempos, “o maior romancista da Península Ibérica”. E olhe que o cavalheiro que escreveu esta frase não era português… Não será pecado de vaidade julgar-me com direito a um reconhecimento nacional.

Sei que o António, aqui há uns anos, propôs no seu blogue a transferência do que resta de mim para os Jerónimos. Achei bem, mas a ideia foi recebida com desagrado por alguns intelectuais do Porto. Que era preciso combater o centralismo de Lisboa e que eu era um homem do Norte e que devia ficar cá! Cebolório… 

Um amigo meu que andou pelo mundo e que repousa aqui perto garante que aquilo é o complexo da segunda cidade. Enfermam dele Edimburgo e Barcelona.

Os do Porto consideram-me de cá. Sinto-me honrado com isso. É verdade que não amei outra cidade tanto como esta (nem falei tão mal de qualquer outra), mas o certo é que nasci em Lisboa, na Rua das Rosas e que, mais que do Porto, de Lisboa, da Samardã ou de Seide , me considero português. 

    


Escrevo-lhe do cemitério da Ordem da Lapa, no Porto. Apesar de ocupar uma divisão alta, tenho vista apenas para um passeio empedrado, para mais sepulcros e para uma ou outra árvore. O jazigo do Freitas Fortuna parece-me acanhado e o meu nome está inscrito na fachada em posição secundária. 

Com este meu pecadilho da vaidade, sempre procurei o reconhecimento dos meus contemporâneos. Lutei muito até conseguir um título nobiliárquico, que me pareceu importante na altura. Lá me fizeram Visconde de Correia Botelho. Confesso que a distinção me soube bem.

Pretendo mudar-me para os Jerónimos. Até já lá está o Herculano, cuja escrita nunca me agradou. As circunstâncias da vida levaram-me a pedir-lhe que apadrinhasse a minha intenção de concorrer a um lugar na biblioteca do Porto. Cheguei a oferecer-lhe um cão são-bernardo, o Tigre. O empenho de Alexandre Herculano não foi suficiente para decidir a questão em meu favor. Semanas depois, desloquei-me a Lisboa e passei pela casa do Herculano, na Ajuda. Em vez de tocar à porta, assobiei. O Tigre saltou o muro e lambeu-me todo. Levei-o comigo.

Peço perdão por me ter alargado. Já deixei escapar parte da mensagem que lhe dirijo: quero mudar-me para o Panteão Nacional. Terá, entre os seus amigos e conhecidos, quem seja capaz de advogar a minha causa?

Saberá, melhor do que eu, como é que essas coisas se fazem: um par de artigos em jornais, um abaixo-assinado… Dizem que as televisões têm muita influência, nos dias que correm mas, como já lhe disse, aqui não tenho rede .

 

Seu amigo agradecido

 

Camilo

 

 

Vou reencaminhar esta carta para um grupo de amigos e conhecidos. Nem todos concordarão comigo, mas considero que esta é uma causa pela qual vale a pena lutar.

 

António Trabulo


quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

PASSAGEM DE ANO



     Existem datas a que se associam significados artificiais que impregnaram a alma coletiva. É o caso do “Fim de ano”. Servirá de pouco indagar a sua origem. Corresponderá a outro cálculo imperfeito do solstício do inverno.
     Insinuou-se no pensar de muitos que um certo período termina e que se abre uma época nova e quase virgem em que serão possíveis mudanças de atitudes e enfrentamentos novos das realidades da vida. Tais intenções raramente frutificam.
     Ultrapassei esta “barreira” oitenta e uma vez. Reconheço que este dia é tão bom ou tão mau como qualquer outro para tecer balanços do passado e para desenhar projetos. Fiz as contas há muito tempo. 

 



     Já fui este menino. 
  Alguns dos meus amigos mais chegados já partiram. Houve também os que deixaram de gostar de mim. A vida empurrou-nos em sentidos divergentes e eu nunca tive um feitio que agradasse a todos. Restam uns poucos. Queremo-nos bem.
     Sou homem orgulhoso e consciente do que valho. Ao longo de toda a vida, nunca fiz intencionalmente mal a ninguém. Considero que os deuses, apesar de me terem dado cedo algumas dentadas fundas, acabaram por ser generosos comigo.


 


    Proporcionaram-me a facilidade de entender as coisas. Toleraram-me a propensão para alguns excessos hedónicos, mas compensaram-na com um sentido amplo de responsabilidade. Pude construir um percurso profissional honroso e uma experiência literária digna e satisfatória. Ajudei a construir uma família repleta de carinho. Orgulho-me das carreiras das minhas filhas e dos meus netos.
   Escreveu Bai Juyi, um poeta chinês de quem gosto de me imaginar amigo apesar dos mais de mil e duzentos anos que nos separam, que o homem feliz vê voar os dias e o homem triste os arrasta, como o caracol. A minha vida passou a correr.


 


    Chegado aqui, o que posso esperar do futuro? Onde abrigar as pequenas esperanças que ainda me restam? 
    A aspiração a um remate tranquilo da vida é comum a quase todos os locais e culturas. Habito em Setúbal há muitos anos. São reverenciados na cidade o Senhor do Bom Fim e a Senhora da Boa Morte. 
     Deixei há muito de ter pressa. Quero saúde e tranquilidade para os meus. 
      Quanto à Morte, quando vier que venha!