Coleciono peças variadas, essencialmente máscaras e
armas antigas.
Ao longo do tempo fui adquirindo algumas peças
arqueológicas.
Falei aqui, há algum tempo, de uma estátua de pedra que
encontrei num antiquário do Alentejo. Trata-se duma imagem híbrida de
mulher e de serpente. Para além da face humana tem também uma cabeça de cobra.
Assim, não sei se se trata de um, ou de dois répteis. Achei-a interessante e comprei-a.
Fiquei a imaginar que poderia ter certo valor
arqueológico, o que implicaria a impossibilidade de poder continuar a ser propriedade
privada. Pensei portanto doá-la a um museu e pensei no Museu Nacional de
Arqueologia.
Como sou médico e não arqueólogo, o que torna as minhas
opiniões nesta área altamente falíveis, pedi ajuda a um arqueólogo muito
conhecido e enviei-lhe algumas fotografias.
A resposta pouco tardou. Foi didática
e gentil. Exponho aqui o essencial do que me foi dito.
Por aquilo que observo nas
fotografias, diria que é uma peça moderna, sem real interesse histórico ou
arqueológico.
Durante a Antiguidade, no
ocidente da Península Ibérica, o calcário não era utilizado na produção de
esculturas de vulto redondo. Só a partir da Idade Média (bem entrada) se
começa a usar essa matéria-prima tanto para elementos arquitetónicos, como para
estatuária, usualmente, de índole religiosa
Normalmente, a escultura
faz-se para figuras de vulto redondo (aquilo a que mais usualmente chamamos
estátuas) ou em elementos arquitetónicos, por vezes historiados (capitéis,
baixos-relevos, etc.). Ora a presente peça que se apresenta de vulto
redondo é aquilo a que se pode chamar um objeto informe, não sendo tampouco
elemento arquitetónico.
A representação da face
humana não se assemelha a nenhum cânone conhecido da escultura antiga. Pode
dizer-se que se inspirará vagamente na chamada "arte ibérica" da
zona levantina peninsular (regiões de Cartagena, Múrcia, Valência), onde
há também uma tradição de escultura antiga, pré-romana, feita sobre o
calcário local, bem diferente do da presente peça.
Se a peça fosse
efetivamente antiga, apresentaria por certo muito mais sinais de desgaste e
pequenas fraturas, dado o calcário ser material bastante friável.
Assim, diria que de duas
uma: ou é peça moderna, em que o escultor explorou algumas dimensões do
imaginário antigo, ou sendo peça moderna foi produzida justamente para sugerir
tratar-se de uma Antiguidade... Pelo meio, desenha-se a fronteira entre
criatividade e desonestidade.
Infelizmente, tem crescido
de um modo extenso o universo dos produtores de falsos antigos, com claros
intuitos desonestos e comerciais. O fenómeno é mais extenso e mais forte
em Espanha, porque o mercado é maior, mas sempre vai sobrando alguma coisa aqui
para o lado português. Para ficarmos somente pelo nosso país, há os recentes
casos da chamada "Coleção Egípcia" do BPN, uma pretensa coleção de
Antiguidades adquirida por aquele banco e supostamente um dos seus ativos, mas
que afinal era toda composta por falsificações modernas, o caso já foi julgado,
com condenações dos agentes e venda, de sentença transitada em julgado; ou o da
chamada "Coleção Estrada", que supostamente constituiria a base do
futuro Museu de Arte e Arqueologia da Abrantes e que se verifica ser sobretudo
composta por peças falsas, que o colecionador adquiriu de boa-fé.
O vendedor pode ter vendido sem assegurar a
antiguidade da peça ou pode ter sido enganado também.
Um tema de que se fala nos últimos tempos tem a ver com a ampla
circulação destes falsos. A Guardia Civil espanhola que, nestas coisas é
muito mais ativa e eficaz do que a nossa PJ, desmantela periodicamente
quadrilhas de salteadores de Antiguidades, usualmente saqueadores de sítios
arqueológicos, mas também produtores de falsos - nada melhor para credibilizar
um falso que misturá-lo com material autêntico. No final dessas operações, o
material autêntico dá entrada em museus espanhóis, em conformidade com as leis
locais, mas não se sabe muito bem o que acontece aos falsos. Suspeita-se que
voltem a entrar no mercado de antiguidades...
Não divulgo o nome do Professor que me facultou
graciosamente essas informações por não lhe ter pedido autorização para as publicar.
Estou-lhe agradecido. Alia à competência técnica
a generosidade e a disponibilidade em divulgar os seus conhecimentos. Poderá
evitar que outros tansos como eu sejam enganados.
Não perdi grande coisa com o negócio. O senhor
que me vendeu a estátua aceitou-a de volta. Trouxe do seu estabelecimento mais
algumas armas antigas bonitas.
Agora, que fiquei com pena da deusa serpente, fiquei…
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