RELAÇÕES
ENTRE MÉDICOS E DOENTES
NA LITERATURA PORTUGUESA
I
São conhecidas, na literatura universal, diversas obras que tratam da
relação entre médicos e doentes. Lembro, por ordem das datas de nascimentos dos
autores, “O médico de aldeia”, de Balzac, “O duplo”, de Dostoievski, “A morte
de Ivan Illich”, de Tolstoi, “O alienista”, de Machado de Assis, “A montanha
mágica”, de Thomas Mann, “Um médico rural”, de Kafka, “Olhai os lírios do
campo”, de Erico Veríssimo, “Consciência de médico”, de Morton Thompson, “A
peste”, de Camus, e “O pavilhão de cancerosos”, de Soljenitzine.
Existem muitas outras obras, muito
belas, que abordam o mesmo tema. Conheço apenas umas tantas, pois é vasto este
universo.
Nas letras portuguesas,
são também relativamente comuns as referências à relação médico-doente. Por razões de espaço e de tempo, procurei
recolher amostras representativas e capazes de proporcionarem aos leitores uma
visão minimamente clara do assunto (de acordo com o meu modo de o olhar), sem
procurar esgotar a questão.
Escolhi, entre os que
conheço, aqueles que se enquadraram melhor no projeto que concebi.
Começo com referências
curtas às palavras de um grande e antigo vulto da nossa Medicina (Amato
Lusitano), que se debruçou sobre a matéria. Apesar de ter escrito no século XVI,
quase tudo o que disse mantém atualidade.
A seguir, falo
brevemente das relações de um doente ilustre com médicos ilustres: Camilo
Castelo Branco, Gama Pinto e Ricardo Jorge. Faço notar que o critério que
adotei para a ordem de apresentação dos escritores foi, outra vez, a do ano de
nascimento de cada um.
Na continuidade, abordo
ao de leve o “João Semana” das “Pupilas do Senhor Reitor”. A figura desse
médico generoso, bonacheirão e apreciador de anedotas, criada por Júlio Dinis, assinalou
de forma positiva a juventude da gente da minha idade. As minhas filhas também
o apreciaram. Desconheço a aceitação que tem nos dias de hoje.
Progrido, aos poucos,
no tempo. Aludo à difícil relação de José Rodrigues Miguéis com os clínicos que
o trataram em Nova Iorque.
Salto, a seguir, para o
otorrinolaringologista Miguel Torga, que raras vezes abordou, nos seus
escritos, as relações entre médicos e doentes.
Segue-se Virgílio
Ferreira, que se queixou (veladamente) da insuficiência do consentimento
informado, ao referir a amputação duma perna de um personagem seu.
Relato, no seguimento,
aspetos da maneira como Fernando Namora (um dos fundadores da Sociedade
Portuguesa de Escritores Médicos) retratou a sua convivência com os doentes. Dou-lhe
um espaço maior, porque Namora dedicou muitas páginas a este tema.
Falo depois de José Cardoso
Pires, que dramatizou, de forma notável, a relação com o acidente vascular
cerebral que o atingiu, retirando-lhe, (de modo felizmente passageiro), a
capacidade de falar e de escrever.
De Cardoso Pires, passo
para Mário Cláudio, que enalteceu de forma poética o relacionamento de “Dom
Francisco” (Goya) com o seu médico doutor Arrieta.
Termino com António
Lobo Antunes, que nasceu em 1942. Médico, filho de médico e irmão de médicos,
levou ao fim a carreira de Psiquiatra no Hospital Miguel Bombarda, mas começou
cedo uma obra que lhe dá lugar entre os grandes prosadores portugueses de todos
os tempos.
Perguntarão os leitores
por que razão não falo de José Saramago, nosso primeiro Prémio Nobel da
Literatura. Não é seguramente por falta de apreço, que é grande o que tenho por
ele. Julgo mesmo que a segunda metade do nosso século XX irá ficar marcada como
a Idade de Ouro da nossa Literatura. Saramago, a meu ver, é o maior de todos os
nossos escritores recentes. Acontece que, da parte da obra dele que li até hoje,
não lembro episódios que se adequem ao trabalho em curso.
As opiniões e os eventuais critérios de valor expressos ao longo deste
texto obrigam apenas o autor. Outros, mais sabedores, fariam melhor.
AMATO LUSITANO
Amato Lusitano (1511-1568) dá
conselhos aos médicos (e também aos doentes) logo no prefácio do seu primeiro
livro de Centúrias. Escreve:
Na
medicina, em geral, há três aspetos em que e por que se realiza a cura, a
saber: o médico, o doente e a própria doença.
Em
primeiro lugar, é necessário que o médico seja instruído, dedicado, agradável e
sério. Importa que a sua apresentação, a conversa, a figura, o vestuário, o
cabelo, as unhas e o perfume caiam no agrado do doente, como ordena Hipócrates,
no livro 6º do Epidemion.
A
sua função, porém, é curar com segurança e rapidamente; com segurança, para
ajudar e não prejudicar; rapidamente, dando os remédios adequados, pois a
demora é uma atitude imprópria de toda a profissão, mas principalmente na
medicina, onde é perigo de vida.
Cuidará,
um prático, de interrogar o doente, se adoeceu mais vezes e de que doença
sofreu, aguda, intermitente, longa ou rápida, assim como também que remédios
tomou, líquidos, sólidos ou até em pílulas; procurará saber com quais se deu
melhor ou não.
Também
é necessário que o doente seja obediente ao médico, nunca condescendendo com a
sua própria vontade.
Será,
pois, dever do doente resistir à doença juntamente com o médico, visto que este
e a doença se combatem mutuamente e, por assim dizer, lutam e pelejam entre si.
Com efeito, o médico procura, com a ajuda da natureza, expulsar a doença; por
sua vez, a doença esforça-se por não ser inferior. É nesta altura que o doente
que segue o médico e executa as suas ordens se torna aliado deste e inimigo da
doença.
Uma
vez vistas e ordenadas estas coisas, pode o médico iniciar a cura, conforme
exigir a doença. Se, não obstante, desconhecer a doença, atenue o regime, como
manda Avicena, visto que a doença se descobrirá.
Fontes:
Lusitano, Amato. 2010. Centúrias de curas medicinais, vol. 1. Lisboa: CELOM.
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