DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019





         

  RELAÇÕES 


ENTRE MÉDICOS E DOENTES


NA LITERATURA PORTUGUESA

                                    I

      São conhecidas, na literatura universal, diversas obras que tratam da relação entre médicos e doentes. Lembro, por ordem das datas de nascimentos dos autores, “O médico de aldeia”, de Balzac, “O duplo”, de Dostoievski, “A morte de Ivan Illich”, de Tolstoi, “O alienista”, de Machado de Assis, “A montanha mágica”, de Thomas Mann, “Um médico rural”, de Kafka, “Olhai os lírios do campo”, de Erico Veríssimo, “Consciência de médico”, de Morton Thompson, “A peste”, de Camus, e “O pavilhão de cancerosos”, de Soljenitzine.
     Existem muitas outras obras, muito belas, que abordam o mesmo tema. Conheço apenas umas tantas, pois é vasto este universo.
Nas letras portuguesas, são também relativamente comuns as referências à relação médico-doente. Por razões de espaço e de tempo, procurei recolher amostras representativas e capazes de proporcionarem aos leitores uma visão minimamente clara do assunto (de acordo com o meu modo de o olhar), sem procurar esgotar a questão.
Escolhi, entre os que conheço, aqueles que se enquadraram melhor no projeto que concebi.
Começo com referências curtas às palavras de um grande e antigo vulto da nossa Medicina (Amato Lusitano), que se debruçou sobre a matéria. Apesar de ter escrito no século XVI, quase tudo o que disse mantém atualidade.
A seguir, falo brevemente das relações de um doente ilustre com médicos ilustres: Camilo Castelo Branco, Gama Pinto e Ricardo Jorge. Faço notar que o critério que adotei para a ordem de apresentação dos escritores foi, outra vez, a do ano de nascimento de cada um.
Na continuidade, abordo ao de leve o “João Semana” das “Pupilas do Senhor Reitor”. A figura desse médico generoso, bonacheirão e apreciador de anedotas, criada por Júlio Dinis, assinalou de forma positiva a juventude da gente da minha idade. As minhas filhas também o apreciaram. Desconheço a aceitação que tem nos dias de hoje.
Progrido, aos poucos, no tempo. Aludo à difícil relação de José Rodrigues Miguéis com os clínicos que o trataram em Nova Iorque.
Salto, a seguir, para o otorrinolaringologista Miguel Torga, que raras vezes abordou, nos seus escritos, as relações entre médicos e doentes.
Segue-se Virgílio Ferreira, que se queixou (veladamente) da insuficiência do consentimento informado, ao referir a amputação duma perna de um personagem seu.
Relato, no seguimento, aspetos da maneira como Fernando Namora (um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos) retratou a sua convivência com os doentes. Dou-lhe um espaço maior, porque Namora dedicou muitas páginas a este tema.
Falo depois de José Cardoso Pires, que dramatizou, de forma notável, a relação com o acidente vascular cerebral que o atingiu, retirando-lhe, (de modo felizmente passageiro), a capacidade de falar e de escrever.
De Cardoso Pires, passo para Mário Cláudio, que enalteceu de forma poética o relacionamento de “Dom Francisco” (Goya) com o seu médico doutor Arrieta.
Termino com António Lobo Antunes, que nasceu em 1942. Médico, filho de médico e irmão de médicos, levou ao fim a carreira de Psiquiatra no Hospital Miguel Bombarda, mas começou cedo uma obra que lhe dá lugar entre os grandes prosadores portugueses de todos os tempos.
Perguntarão os leitores por que razão não falo de José Saramago, nosso primeiro Prémio Nobel da Literatura. Não é seguramente por falta de apreço, que é grande o que tenho por ele. Julgo mesmo que a segunda metade do nosso século XX irá ficar marcada como a Idade de Ouro da nossa Literatura. Saramago, a meu ver, é o maior de todos os nossos escritores recentes. Acontece que, da parte da obra dele que li até hoje, não lembro episódios que se adequem ao trabalho em curso.
          As opiniões e os eventuais critérios de valor expressos ao longo deste texto obrigam apenas o autor. Outros, mais sabedores, fariam melhor.


AMATO LUSITANO



Amato Lusitano (1511-1568) dá conselhos aos médicos (e também aos doentes) logo no prefácio do seu primeiro livro de Centúrias. Escreve:
Na medicina, em geral, há três aspetos em que e por que se realiza a cura, a saber: o médico, o doente e a própria doença.
Em primeiro lugar, é necessário que o médico seja instruído, dedicado, agradável e sério. Importa que a sua apresentação, a conversa, a figura, o vestuário, o cabelo, as unhas e o perfume caiam no agrado do doente, como ordena Hipócrates, no livro 6º do Epidemion.
A sua função, porém, é curar com segurança e rapidamente; com segurança, para ajudar e não prejudicar; rapidamente, dando os remédios adequados, pois a demora é uma atitude imprópria de toda a profissão, mas principalmente na medicina, onde é perigo de vida.
Cuidará, um prático, de interrogar o doente, se adoeceu mais vezes e de que doença sofreu, aguda, intermitente, longa ou rápida, assim como também que remédios tomou, líquidos, sólidos ou até em pílulas; procurará saber com quais se deu melhor ou não.
Também é necessário que o doente seja obediente ao médico, nunca condescendendo com a sua própria vontade.
Será, pois, dever do doente resistir à doença juntamente com o médico, visto que este e a doença se combatem mutuamente e, por assim dizer, lutam e pelejam entre si. Com efeito, o médico procura, com a ajuda da natureza, expulsar a doença; por sua vez, a doença esforça-se por não ser inferior. É nesta altura que o doente que segue o médico e executa as suas ordens se torna aliado deste e inimigo da doença.
Uma vez vistas e ordenadas estas coisas, pode o médico iniciar a cura, conforme exigir a doença. Se, não obstante, desconhecer a doença, atenue o regime, como manda Avicena, visto que a doença se descobrirá.

Fontes:
Lusitano, Amato. 2010. Centúrias de curas medicinais, vol. 1. Lisboa: CELOM.

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