DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018


CAÇA ÀS BRUXAS



As caçadas às bruxas têm raízes distantes. Já o Código de Hamurabi (1800 a.C.) mandava lançar ao rio sagrado os acusados de feitiçaria. Se se afogassem, o acusador tomaria posse da sua casa e dos seus bens. Se o rio os declarasse inocentes, seria morto o acusador. Era uma forma de incentivar a aprendizagem da natação.
 A Bíblia condenava a feitiçaria: “Entre ti não se achará agoureiro, nem feiticeiro, nem adivinhador, nem quem consulte os mortos; pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao Senhor.” Seria mais uma forma de afirmação no monoteísmo. As crenças tradicionais deveriam ser abandonadas.
O Direito romano precaveu-se contra encantamentos e feitiços, pelo menos ao longo de 800 anos. Acreditava-se que os malefícios prejudicassem as culturas de cereais. Em 186 a. C. o senado romano limitou as celebrações a Lucifero, deus das bruxarias. Nos anos imediatos foram executadas 5.000 pessoas. Muitas delas foram consideradas responsáveis pela eclosão de epidemias.
Dianus Lucifero era o deus romano das bruxas, da luz e do esplendor. O nome foi posteriormente associado ao diabo dos cristãos. Era o senhor da Estrela Matutina e Vespertina. Tratava-se de um personagem complexo. Tanto assumia o aspeto de Dis, o deus da Morte e do Além, como o de Lupercus, a Criança da Promessa, portadora da luz e da esperança. Apresentava-se com três figuras diferentes. O “Cornífero” era o senhor das florestas e da sexualidade. O “Encapuçado” reinava sobre os campos e as plantações. Na forma de “Ancião”, guardava a sabedoria e os santuários.
De início, a Igreja Católica não levou as bruxas muito a sério. O código lombardo de 643 decretava: “Que ninguém pretenda matar uma estrangeira como bruxa, pois isso não deve ser acreditado por mentes cristãs”. O Concílio convocado por Carlos Magno para Frankfurt em 749 considerou supersticiosa a crença na bruxaria e impôs a pena de morte àqueles que queimassem bruxas. Em 906, uma lei canónica afirmava que acreditar em bruxas e bruxarias constituía heresia. Em 1100, o rei Kálmán da Hungria proibiu a caça às bruxas e declarou que elas não existiam. Em 1020, Burchard, bispo de Worms, desmentiu a existência de práticas que a imaginação popular atribuía às bruxas, como a elaboração de poções mágicas, o poder de voar em vassouras nas noites de sábado, a transformação do amor em ódio e de pessoas em animais e as relações sexuais com demónios.
Os papas alinhavam com as opiniões dominantes na época. Em 1080, o papa Gregório VII, em carta ao rei Harold da Dinamarca, proibiu que as bruxas fossem mortas por suspeitas de desencadearem tempestades, pestes e más colheitas.
Atribuíam-lhes tudo o que corria mal no mundo, em especial os acontecimentos extraordinários e inexplicáveis. Para serem precisos tantos desmentidos, é porque as crenças em bruxarias eram fortes e arreigadas. O cristianismo conviveu, na Europa, com crenças mais antigas que nunca foram erradicadas por completo.
 Em consequência dessa tolerância, as mulheres que benziam e praticavam curas tornaram-se respeitáveis na Europa medieval. Havia “mulheres sábias” em quase todas as aldeias. Habitualmente, eram viúvas ou solteiras e conheciam bem as ervas medicinais. Faziam de médicas, enfermeiras, parteiras e adivinhas. Continuavam pobres.
Depois, as ideias mudaram e as bruxas voltaram a ser encaradas com maus olhos. A meio do século XIV, a peste negra matou um em cada três europeus. A peste e as más colheitas foram atribuídas a poderes malignos que pretendiam destruir os reinos cristãos. Os turcos otomanos eram apontados como os principais culpados, mas falou-se também de associações entre bruxas e judeus. A perseguição recomeçou. A caça às bruxas ganhou novo ímpeto, sobretudo no norte da Europa, e os julgamentos e as execuções tornaram-se comuns. O período mais tenebroso ocorreu entre 1580 e 1660.


Em 1486, os inquisidores James Sprengler e Heinrich Kraemer publicaram o livro Malleus Maleficarum (Martelo das feiticeiras), considerado “a Bíblia do caçador de bruxas”, a que a Igreja Católica deu pouca importância. O livro enumerava as práticas demoníacas e foi aceite pela Reforma protestante. O Malleus Maleficarum conheceu 28 edições. Teve grande difusão nas colónias inglesas puritanas da América e foi utilizado no célebre processo das bruxas de Salém.
Até perto do final do século XVI, a distinção entre as bruxas, que faziam o mal, e as curandeiras, que tratavam as doenças era clara, no espírito do povo e das autoridades. Tudo mudou e a diferenciação atenuou-se. Milhares de pessoas inocentes (sobretudo mulheres) foram queimadas vivas.


A partir de 1660, a situação começou a melhorar. O Iluminismo generalizou-se nas elites culturais europeias, que deixaram de acreditar em bruxas. Elas continuaram, porém, a ser temidas na imaginação popular. Os linchamentos prosseguiram durante mais dois séculos. Chegou a considerar-se que a caça às bruxas teria vitimado nove milhões de pessoas. Estudos históricos recentes, com recurso a metodologia científica, fizeram baixar esse número para menos de 100.000.
Contrariando a ideia prevalecente, que acusava a “Santa” Inquisição da responsabilidade pela maioria desses crimes legais, os investigadores concluíram que a maior parte das vítimas foi julgada e sentenciada por tribunais civis. Os juízes locais foram, geralmente, mais ferozes.


As confissões de algumas acusadas levantaram a suspeita de intoxicação. Algumas bruxas estavam mesmo convencidas de terem feito sexo com o demónio. A cravagem do centeio, o pão dos pobres, provocava o ergotismo, doença que produzia, entre outros sintomas, alucinações e gangrenas secas. Há quadros de pintores flamengos que retratam grupos de pobres sem membros. Alguns levavam pendurados ao pescoço os membros amputados para inspirarem piedade.
Como em outros fenómenos sociais, aconteceram, com as bruxas, episódios de oportunismo malicioso. Certas acusações de bruxaria tinham como finalidades a vingança ou a vontade de ficar com os bens da vítima.
No nosso país, a Inquisição teve uma presença poderosa e demorada. Poucos autores se dedicaram a este tema. O trabalho do professor de História da Universidade de Massachusetts, Timothy Walker, que investigou as perseguições aos curandeiros acontecidas em Portugal ao longo da época das luzes, é uma exceção notável. Com base no estudo dos registos dos tribunais regionais da Inquisição existentes na Torre do Tombo, publicou, em 1992, o livro “Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a Repressão das Curas Mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Terá avaliado os assentamentos de quarenta mil casos.
No seu modo de ver, o aparelho repressivo da Inquisição foi utilizado contra os curandeiros e saludadores pelos médicos que trabalhavam, como “familiares” para o Santo Ofício, durante o século XVIII. Era um aspeto do conflito entre a cultura médica erudita e as crenças populares. Tratava-se, essencialmente, de eliminar a concorrência. Ainda segundo Walker, a experiência portuguesa foi única: “entre 1715 e 1770 foram julgados pelos tribunais da Inquisição mais de 500 suspeitos de feitiçaria e nenhum foi executado”. Eram já os nossos brandos costumes.  
Os curandeiros desenvolviam essencialmente a sua atividade nos meios rurais, prestando um serviço que atualmente se poderia chamar cívico e que alguns designam por “magia protetora”. Aconselhavam dietas e prescreviam remédios caseiros associados à recitação de rezas e benzeduras. Na verdade, não existia alternativa aos saludadores. Raramente havia médicos nas pequenas povoações. 

Modificado de "O Homem do Sobretudo cinzento", romance em preparação.

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