DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017


O ASSASSINATO DE ANNA POLITKOVSKAYA


Há quem diga que a motivação para o assassinato de Anna Politkovskaya foi a conveniência em meter medo aos jornalistas. Terá sido assim, em parte. Politkovskaya não foi a única periodicista abatida por escrever contra a corrupção do governo russo, ou contra o desprezo pela vida humana na Chechénia. Numerosos jornalistas e defensores dos direitos humanos deram as vidas pelas suas causas. Após uma série de assassinatos, a «Novaya Gazeta» anunciou publicamente que não se arriscava a enviar mais jornalistas para a Chechénia.
O corpo de Politkovskaya foi encontrado com diversos ferimentos de bala, no elevador do seu bloco de apartamentos, em Moscovo, a 7 de outubro de 2006. Os disparos que a mataram foram efetuados a curta distância.


Esta mulher demonstrou em ocasiões sucessivas uma coragem anormal. Devia saber perfeitamente que estava a mais no mundo.
Curiosamente, Anna nasceu em Nova Iorque, filha de diplomatas ucranianos a trabalhar nas Nações Unidas. Tinha 48 anos quando morreu. Era cidadã russa, embora tivesse também passaporte americano. Cresceu em Moscovo e licenciou-se em jornalismo, na Universidade Estatal de Moscovo.
Tornou-se conhecida por escrever sobre a Chechénia. Tratava-se de um país conturbado e dividido, onde os soldados chegavam a vender os cadáveres das suas vítimas às famílias que pretendiam proporcionar aos mortos funerais conformes ao ritual islâmico.
Os seus matadores vieram de lá. Anna denunciou raptos, torturas e execuções em massa, da parte de militares russos.
Anna Politkovskaya era casada e tinha dois filhos. Trabalhou para diversos jornais russos. Escreveu sobre os refugiados de guerra e criticou a Rússia de Putin.


Vladimir Putin era um oficial superior da KGB. Subiu até se tornar primeiro-ministro de Boris Yeltsin e sucedeu-lhe como Presidente da Rússia.
Para além de denunciar os crimes de guerra russos na Chechénia, Anna acusou também a administração chechena pró russa dos Kadyrov de diversos abusos. Publicou livros críticos do regime que dominou a Rússia após 1991 e preocupou-se com a violentação dos direitos humanos no Cáucaso do Norte. Foi agraciada com diversos prémios internacionais. 


Sobre a KGB, escreveu: «respeita apenas os fortes e devora os fracos».
Opinou também: «regressámos a um vazio de informação. Deixaram-nos apenas a Internet, onde a comunicação ainda é livre. Se quiseres continuar a trabalhar como jornalista, tens de servir Putin. De outro modo, conta com uma bala, um veneno, ou um julgamento, conforme os cães de guarda de Putin acharem melhor».
Por vezes, foi além do seu trabalho de jornalista. Numa altura em que Grozni estava a ser submetida a bombardeamentos violentos, Politkovskaya ajudou a organizar a retirada de um grupo de cidadãos idosos. Quando muitas centenas de crianças da escola de Beslan, na Ossétia do Norte, foram vítimas de sequestro, ofereceu-se como mediadora e meteu-se num avião em direção à cidade. Não chegou lá. Foi envenenada com chá, durante o voo, em setembro de 2004. Perdeu os sentidos e foi retirada do avião, numa escala do percurso, em Rostov-na-Donu, para receber tratamento médico.
Anna Politkovskaya queixava-se ocasionalmente das pedras que lhe iam atravessando no caminho: «Recebo ameaças por carta, por telefone e pela Internet. Semanalmente, sou chamada a depor perante as autoridades por causa dos meus artigos. A primeira pergunta é sempre a mesma: como é que obteve esta informação?»


Anna podia bem com o próprio medo. Em dezembro de 2005, numa conferência sobre a liberdade de imprensa, organizada em Viena pelos Repórteres sem Fronteiras, declarou: «As pessoas, às vezes, pagam com as próprias vidas por dizerem em voz alta o que pensam. Uma pessoa pode ser morta por me prestar informações. Não sou a única em perigo. Tenho exemplos que provam o que digo.»
Foi ameaçada de violação e de morte. Chegou a ser torturada e submetida a uma falsa execução, levada a cabo por oficiais russos, na Chechénia. Anna descreveu o episódio: «Um tenente-coronel de rosto moreno e olhos escuros e salientes disse-me, como se falasse de negócios: “Vamos. Vou matar-te.” Fez-me sair da tenda para a escuridão total. Lá, as noites são impenetráveis. Depois de caminharmos um bocado, disse: “Quer estejas pronta ou não, chegou a hora”. O fogo rebentou em volta de mim, guinchando, rugindo e rosnando. O tenente-coronel parecia muito feliz por me ver aterrorizada. Tinha-me posto atrás dum lançador múltiplo de foguetões Grad no momento em que era disparado».
Ao contrário de outros casos semelhantes, o assassinato de Anna Politkovskaya não ficou impune. A opinião pública internacional obrigou as autoridades russas a uma investigação séria.
Foram presos dez homens suspeitos de terem participado no crime. Três eram chechenos e irmãos: Ibragim, Dzhabrail e Rustam Makhmudov. Terá sido Rustam a efetuar os disparos. Um antigo investigador da polícia foi também acusado. Em maio de 2007, os arguidos foram apresentados ao Tribunal Militar do Distrito de Moscovo.


Em dezembro de 2008, um dos editores da Novaya Gazeta declarou, ao tribunal, que tinha recebido informações segundo as quais Dzhabrail Makhmudov seria agente da FSB. Recusou indicar as fontes de informação.
 O coronel Pavel Ryaguzov, membro da FSB (a organização policial que sucedeu à KGB para a investigação das questões internas), foi acusado de ligações aos assassinos, mas não de participação no crime. 
O julgamento dos acusados pela morte de Anna Politkovskaya sofreu várias vicissituides e atrasos. Teve mesmo de ser repetido. 
Em dezembro de 2012, Dmitry Pavliuchenkov, um antigo polícia, considerado o principal organizador do assassínio e acusado de ter dado informações sobre os hábitos da vítima e proporcionado a arma para o crime, foi condenado a 11 anos de cadeia numa colónia penal de alta segurança.


Ninguém acreditou que tivesse agido por iniciativa própria. O editor de Politkovskaya na Novaya Gazeta continuou a afirmar que ela tinha sido assassinada porque as suas investigações prejudicavam os interesses de financeiros russos. Fontes próximas do governo sugeriram que inimigos de Putin a residir fora da Rússia (pareciam referir-se em especial ao milionário Berezovsky, exilado em Londres) encomendaram o atentado com a intenção de provocar uma crise que lhes facilitasse o regresso ao Poder. 

(Capítulo do livro não publicado Estranho Ofício de Matar, de António Trabulo)

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