PEREGRINAÇÃO
V
A Peregrinação está cheia de discursos retóricos. Encontram-se também histórias variadas: umas curiosas, outras interessantes e algumas tenebrosas. Passo a registar algumas.
Neste tempo em que aqui chegámos, estava el-rei celebrando com grande aparato e pompa fúnebre de tangeres, bailos, gritas, e muitos pobres a que dar de comer, as exéquias de seu pai, que ele matara às punhaladas para se casar com sua mãe, que já estava prenhe dele.
Outra:
E neste dia nos faleceram três portugueses, os quais todos lançámos de noite ao mar porque na cidade não no-los quiseram enterrar, dando por razão que ficaria a terra maldita e incapaz de poder criar coisa alguma, porquanto aqueles defuntos não iam lavados do muito porco que tinham comido…
Ou, no capítulo 180:
Desta maneira navegamos quatro dias, sem em todos eles comeremos alguma coisa, e quando chegou o quinto, pela manhã, forçou-nos a necessidade a comermos um cafre que nos morrera, com o qual nos sustentamos mais cinco dias…
… e em outros quatro dias que nos duraram ainda mais este trabalho não comemos outra coisa senão os limos que achámos na babugem da água, porque determinamos de nos deixarmos antes de morrer, que comermos de algum português, de quatro que nos morreram.
A Peregrinação é uma narrativa colorida e dinâmica que retrata com realismo a presença portuguesa no Oriente. O livro fornece informações relevantes, muitas delas inéditas na época, sobre a geografia, os costumes e a História de civilizações remotas.
FMP não se coíbe de descrever o modo como alguns povos nos consideravam: e queira Deus por sua bondade que não seja essa nação barbada daqueles que por seu proveito e interesse espiam a terra como mercadores e depois a salteiam como ladrões.
As preocupações éticas do autor são repetidas, vezes sem conta. Os portugueses piores são castigados nas páginas do livro. António de Faria perece num naufrágio, enquanto Diogo Soares é apedrejado até à morte.
Fernão Mendes Pinto fala repetidamente de tipos muito diversos de embarcações. Eu diria que as conheceu bem e as descreve sem ter de recorrer à fantasia. Estou em crer que, ao referir navios e armamento, os relatos da Peregrinação são objetivos e refletem um saber assente na experiência. Referirei alguns tipos de navio, apoiando-me na parte num artigo de José Alberto Leitão Barata, de que passo a citar algumas linhas.
O mar está no centro da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, tal como se encontra no centro do Império Português do Oriente: portos movimentados; operações de embarque e desembarque; abordagens arriscadas; atos de pirataria; tempestades sombras, desastrosos naufrágios. Tudo isto encontramos, a cada passo, nas páginas desta obra que, no entanto, não foi escrita para falar do mar, mas de gente e de terras; de terras habitadas por pessoas. Simplesmente, para se chegar até onde os homens estão, necessário se torna levar a cabo longas viagens por mar; ele se transformou na "terra de eleição" dos portugueses no Oriente; os barcos são as suas casas. Longe dos navios, os portugueses não se sentem seguros; estão em terra alheia.
E, mais adiante:
Fernão Mendes Pinto revela-se-nos, no conjunto da sua obra, um observador atento, interessado e sabedor, em tudo o que ao mar e às coisas do mar dizia respeito.
O nome de “Nau” era dado a vários tipos de embarcações à vela utilizadas em longas travessias até o século XVI. Transportavam uma carga apreciável e até 200 pessoas.
As galés, já conhecidas dos romanos, variavam em formas e dimensões. De modo geral, eram menores que as naus, mais estreitas e de borda baixa. Movimentavam-se a velas e remos. Na Peregrinação, eram geralmente turcas.
O autor da Peregrinação percorreu as costas de países com civilizações diversas e com tradições também diferentes de construção naval. Esteve no Golfo de Omã e penetrou no Golfo Pérsico. Conheceu os Zambucos, ou dhows, pequenos barcos à vela utilizados pelos mercadores árabes e Swalis.
Dhow
Contactou com as almadias, embarcações africanas estreitas e compridas, escavadas em troncos de árvore. São primitivas e terão sido usadas um pouco em todo o mundo. Em algumas regiões de Angola chamavam-lhes “dongos”. Vi algumas no Rio Cunene, na minha juventude. Cheguei a brincar nelas.
Almadia
Atravessando o Golgo de Bengala, contactou com as galés turcas e com os juncos chineses. Conheceu as embarcações javanesas, aparentadas aos juncos chineses. A palavra “junco” tem mesmo origem em “jong”, nome pelo qual os malaios designavam embarcações maiores. Os juncos continuavam a navegar há algumas décadas. Possuiam um velame característico, com os panos ligados a barras horizontais do bambu.
Junco
As lorchas, ou lanteias, eram embarcações híbridas, com cascos de tipo ocidental e velame semelhantes aos dos juncos .
Lorcha
Manchuas, ou manchoas, eram embarcações à vela de dimensões médias, semelhantes a pequenas fragatas. Possuíam 1 a 3 mastros e transportavam 10 a 40 toneladas de carga. Sampanas eram embarcações chinesas de fundo chato, por vezes com pequenos abrigos habitáveis. Eram utilizadas na pesca e no transporte em rios ou em áreas costeiras protegidas. Julgo ter visto algumas no rio Lin.
Sampana
Barcaça é um termo mais vago que se aplica a diversas pequenas embarcações que podem ser de pesca, de transporte de sal, ou que tenham outras utilizações.
De um modo geral, no que respeita às embarcações, Fernão Mendes Pinto respeita a geografia. As guelvas navegavam apenas no Mar Roxo, os estreitos catures em águas protegidas das costas da Índia, os serós eram exclusivos do Pegú, enquanto os jurupangos (de vela e remo) eram usados no sudeste da Ásia. As laulés, embarcações fluviais, poderiam transportar 50 a 100 homens. As panouras levariam até uns 70. Quanto às fustas, embarcações de vela e remos, os números são bastante variáveis porque as dimensões deste tipo de navio, comumente descritas como "pequena galé", também variam.
São numerosas as peças de artilharia naval referidas na Peregrinação. Fernão Mendes Pinto menciona falcões, roqueiros, esperas, meias esperas, berços, camelos e camelotes. Para além disso, em combate, os portugueses recorriam aos antepassados das granadas: panelas cheias de pólvora e de cal virgem. Mostro aqui fotografias de algumas peças.
Este é um "berço" português.
Eis uma "espera" de bronze
Um camelete
Uma colubrina
E um "cão" , ou Peça de Braga
Este artigo não refere explicitamente a bibliografia. No entanto, seria injusto não mencionar Rebecca Catz, americana de origem aparentemente judaica. No seu modo de ver, a Peregrinação é uma obra de filosofia moral e religiosa. A tese do livro é o pecado e o castigo. Na opinião de Rebecca, no desabrochar da era do imperialismo europeu, Fernão Mendes Pinto teve a coragem, o discernimento e a perspicácia de pôr em dúvida a moralidade das conquistas ultramarinas, as quais condena como atos de bárbara pirataria, em ofensa a Deus. Opôs-se à ideologia da cruzada, que foi a maior força unificadora da História de Portugal.
Escrevi há alguns anos que Camões, que era poeta, pintou os portugueses como gostaria que eles fossem, enquanto Fernão Mendes os descreveu como na realidade eram.
Quem não concordar comigo, que a serpe tragadora da côncava funda da casa do fumo lhe consuma os dias e lhe despedace as carnes no meio da noite.