DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 9 de março de 2025

 

           VALÉRIO GUERRA 

                    NÃO SÓ DE MIM
 



                                            

     Há um tempo incontado e encantado, o pai do Valério e do Nelson tinha um estabelecimento comercial ao lado da minha casa, na Praça da Colónia, em Sá da Bandeira.

     O Nelson era da minha idade e já partiu. O Valério era ainda menino quando fui estudar para Coimbra. 

     Encontrámo-nos mais tarde, nas reuniões dos maconginos e ficámos amigos. Esclareço que o “Reino de Maconge” é um grupo de saudosos do Planalto Africano. Teve origem nos antigos estudantes do Liceu Diogo Cão, mas foi-se tornando mais abrangente.

     O Valério publica agora o seu primeiro livro de poemas. Na verdade, é mais do que um livro. Trata-se de uma compilação de 9 títulos escritos e sonhados ao longo dos anos. Os leitores terão oportunidade de testemunhar o carinho e a saudade com que enfeita cada verso.

     Deixo aqui pequenas amostras, procurando semear o gosto de ler mais.

 

Eu, que pingos de chuva arremedo,

quando penso nos andrajosos à intempérie,

pergunto-me, havendo, qual é o segredo?

 

Leio para não estar só

e para saber de mim

por palavras alheias.

 

Acorda o dia

e acordo eu

e volta a pergunta:

« Hoje, o que darei à vida

que me justifique?!»

 

Que silêncios escutarei

que me acordem da letargia

de andar por andar

e de ver por ver

e de ouvir e calar?!

 

 


sábado, 15 de fevereiro de 2025


PEREGRINAÇÃO


V



        A Peregrinação está cheia de discursos retóricos. Encontram-se também histórias variadas: umas curiosas, outras interessantes e algumas tenebrosas. Passo a registar algumas.

      Neste tempo em que aqui chegámos, estava el-rei celebrando com grande aparato e pompa fúnebre de tangeres, bailos, gritas, e muitos pobres a que dar de comer, as exéquias de seu pai, que ele matara às punhaladas para se casar com sua mãe, que já estava prenhe dele.

Outra:

      E neste dia nos faleceram três portugueses, os quais todos lançámos de noite ao mar porque na cidade não no-los quiseram enterrar, dando por razão que ficaria a terra maldita e incapaz de poder criar coisa alguma, porquanto aqueles defuntos não iam lavados do muito porco que tinham comido… 

Ou, no capítulo 180:

       Desta maneira navegamos quatro dias, sem em todos eles comeremos alguma coisa, e quando chegou o quinto, pela manhã, forçou-nos a necessidade a comermos um cafre que nos morrera, com o qual nos sustentamos mais cinco dias…

      e em outros quatro dias que nos duraram ainda mais este trabalho não comemos outra coisa senão os limos que achámos na babugem da água, porque determinamos de nos deixarmos antes de morrer, que comermos de algum português, de quatro que nos morreram. 

         A Peregrinação é uma narrativa colorida e dinâmica que retrata com realismo a presença portuguesa no Oriente. O livro fornece informações relevantes, muitas delas inéditas na época, sobre a geografia, os costumes e a História de civilizações remotas. 

          FMP não se coíbe de descrever o modo como alguns povos nos consideravam: e queira Deus  por sua bondade que não seja essa nação barbada  daqueles que por seu proveito e interesse espiam a terra como mercadores e depois a salteiam como ladrões. 

As preocupações éticas do autor são repetidas, vezes sem conta.  Os portugueses piores são castigados nas páginas do livro. António de Faria perece num naufrágio, enquanto Diogo Soares é apedrejado até à morte.  

        Fernão Mendes Pinto fala repetidamente de tipos muito diversos de embarcações. Eu diria que as conheceu bem e as descreve sem ter de recorrer à fantasia. Estou em crer que, ao referir navios e armamento, os relatos da Peregrinação são objetivos e refletem um saber assente  na experiência. Referirei alguns tipos de navio, apoiando-me na parte num artigo de José Alberto Leitão Barata, de que passo a citar algumas linhas.

       O mar está no centro da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, tal como se encontra no centro do Império Português do Oriente: portos movimentados; operações de embarque e desembarque; abordagens arriscadas; atos de pirataria; tempestades sombras, desastrosos naufrágios. Tudo isto encontramos, a cada passo, nas páginas desta obra que, no entanto, não foi escrita para falar do mar, mas de gente e de terras; de terras habitadas por pessoas. Simplesmente, para se chegar até onde os homens estão, necessário se torna levar a cabo longas viagens por mar; ele se transformou na "terra de eleição" dos portugueses no Oriente; os barcos são as suas casas. Longe dos navios, os portugueses não se sentem seguros; estão em terra alheia.

E, mais adiante:

Fernão Mendes Pinto revela-se-nos, no conjunto da sua obra, um observador atento, interessado e sabedor, em tudo o que ao mar e às coisas do mar dizia respeito. 


      O nome de “Nau” era dado a vários tipos de embarcações à vela utilizadas em longas travessias até o século XVI. Transportavam uma carga apreciável e até 200 pessoas.        

          As galés, já conhecidas dos romanos, variavam em formas e dimensões. De modo geral,  eram   menores que as naus, mais estreitas e de borda baixa. Movimentavam-se a velas e remos. Na Peregrinação, eram geralmente turcas. 

       O autor da Peregrinação percorreu as costas de países com civilizações diversas e com tradições também diferentes de construção naval. Esteve no Golfo de Omã e penetrou no Golfo Pérsico. Conheceu os Zambucos, ou dhows, pequenos barcos à vela utilizados pelos mercadores árabes e Swalis. 

                                                                  Dhow

      Contactou com as almadias, embarcações africanas estreitas e compridas, escavadas em troncos de árvore. São primitivas e terão sido usadas um pouco em todo o mundo. Em algumas regiões de Angola chamavam-lhes “dongos”. Vi algumas no Rio Cunene, na minha juventude. Cheguei a brincar nelas.

                                                          Almadia

        Atravessando o Golgo de Bengala, contactou com as galés turcas e com os juncos chineses. Conheceu as embarcações javanesas, aparentadas aos juncos chineses. A palavra “junco” tem mesmo origem em “jong”, nome pelo qual os malaios designavam embarcações maiores. Os juncos continuavam a navegar há algumas décadas. Possuiam um velame característico, com os panos ligados a barras horizontais do bambu.

 

                                                           Junco

   As lorchas, ou lanteias, eram embarcações híbridas, com cascos de tipo ocidental e velame semelhantes aos dos juncos .  

Lorcha

       Manchuas, ou manchoas, eram embarcações à vela de dimensões médias, semelhantes a pequenas fragatas. Possuíam 1 a 3 mastros e transportavam 10 a 40 toneladas de carga. Sampanas eram embarcações chinesas de fundo chato, por vezes com pequenos abrigos habitáveis. Eram utilizadas na pesca e no transporte em rios ou em áreas costeiras protegidas. Julgo ter visto algumas no rio Lin.      

Sampana

       Barcaça é um termo mais vago que se aplica a diversas pequenas embarcações que podem ser de pesca, de transporte de sal, ou que tenham outras utilizações.        

      De um modo geral, no que respeita às embarcações, Fernão Mendes Pinto respeita a geografia. As guelvas navegavam apenas no Mar Roxo, os estreitos catures em águas protegidas das costas da Índia, os serós eram exclusivos do Pegú, enquanto os jurupangos (de vela e remo) eram usados ​​no sudeste da Ásia.  As laulés, embarcações fluviais, poderiam transportar 50 a 100 homens. As panouras levariam até uns 70. Quanto às fustas, embarcações de vela e remos, os números são bastante variáveis ​​​​porque as dimensões deste tipo de navio, comumente descritas como  "pequena galé",  também variam.

        São numerosas as peças de artilharia naval referidas na Peregrinação. Fernão Mendes Pinto menciona falcões, roqueiros, esperas, meias esperas, berços, camelos e camelotes. Para além disso, em combate, os portugueses recorriam aos antepassados ​​das granadas: panelas cheias de pólvora e de cal virgem. Mostro aqui fotografias de algumas peças. 

          Este é um "berço" português.


        Eis uma "espera" de bronze


        Um camelete



        Uma colubrina



        E um "cão" , ou Peça de Braga


     Este artigo não refere explicitamente a bibliografia. No entanto, seria injusto não mencionar Rebecca Catz, americana de origem aparentemente judaica. No seu modo de ver, a Peregrinação é uma obra de filosofia moral e religiosa. A tese do livro é o pecado e o castigo.   Na opinião de Rebecca, no desabrochar da era do imperialismo europeu, Fernão Mendes Pinto teve a coragem, o discernimento e a perspicácia de pôr em dúvida a moralidade das conquistas ultramarinas, as quais condena como atos de bárbara pirataria, em ofensa a Deus. Opôs-se à ideologia da cruzada, que foi a maior força unificadora da História de Portugal.

      Escrevi há alguns anos que Camões, que era poeta, pintou os portugueses como gostaria que eles fossem, enquanto Fernão Mendes os descreveu como na realidade eram. 

Quem não concordar comigo, que a serpe tragadora da côncava funda da casa do fumo lhe consuma os dias e lhe despedace as carnes no meio da noite.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

 

        PEREGRINAÇÃO

                         IV


     O autor da Peregrinação foi um dos primeiros europeus a entrar no Japão e julgou mesmo ter sido o primeiro. Creio que desembarcou ali, pela primeira vez, em 1544. Um navio português já lá tinha estadado no ano anterior. O nosso colega José Poças desenvolverá essa narrativa.      

                                                                           


          Refiro apenas que, na ilha de Taxinumá, o senhor dela ficou deslumbrado com as espingardas. 

           Um dos portugueses, de nome Diogo Zeimoto, tomava algumas vezes por passatempo atirar com uma espingarda, na qual era assaz dextro. Os japões, vendo aquele novo modelo de tiros, deram rebate disso ao daimio. Curiosamente, uma arma de fogo obrigaria Fernão Mendes Pinto a ser o primeiro europeu a executar uma pequena cirurgia no Japão. 




        O  rei do Bungo (seria um daimio), assaz enfermo e atribulado de gota, perguntou-lhe se sabia de alguma mezinha lá dessa terra do cabo do mundo para aquela enfermidade. Fernão respondeu que não era médico nem aprendera essa ciência, mas que no junco em que viera da China vinha um pau cuja água curava muito maiores enfermidades que aquela de que ele se queixava e que se o tomasse teria logo saúde. 

       O rei mandou buscar o remédio a Taxinumá e se curou com ele e foi logo são em trinta dias.

       Mais tarde, enquanto o português dormia, um dos filhos do rei de Bungo pegou na espingarda. Não sabendo calcular a quantidade de pólvora necessária, encheu com ela o cano, apontou a uma laranjeira e disparou. A arma rebentou por três partes e lhe fez duas feridas, uma das quais quase lhe decepou o polegar da mão direita e outra acima da testa.

           E encomendando-me a Deus e fazendo (como se diz) das tripas coração, por ver que não tinha ali outro remédio, e que se assim o não fizesse me haviam de cortar a cabeça, preparei tudo o que era necessário para a cura e comecei logo pela ferida da mão, por me parecer a mais perigosa, e lhe dei nela sete pontos, mas que se fosse por mão de cirurgião quiçá que muitos menos bastassem; e na ferida da testa, por ser mais pequena lhe dei cinco somente e lhe pus em cima estopadas de ovos, e lhas atei muito bem, como algumas vezes vira fazer na Índia. E aos cinco dias lhes cortei os pontos… … quis Nosso Senhor que dentro de vinte dias ele foi são, sem lhe ficar mais mal que só um pequeno esquecimento no dedo polegar. 

         Fernão Mendes Pinto esteve pelo menos quatro vezes no Japão com estadias, nas idas e voltas, nas costas da China. Em 1544, esteve na ilha de Tanegashima e no Bungo, uma das nove províncias da ilha de Kyushu.

        Em 1546, associado a Jorge Álvares e ao novo capitão de Malaca, Simão de Melo, desembarcou em Yamagawa, na baía de Kagoshima. Em 1551, na nau de Duarte da Gama, voltou ao Bungo onde reencontrou  Francisco Xavier que conhecera em Malaca anos antes.

      O antigo pirata tornou-se um comerciante bem sucedido e chegou a ser tido como um dos homens mais rico de Malaca.


        Influenciado pela personalidade fortíssima de Francisco Xavier, libertou os seus escravos e ingressou na Companhia de Jesus. Iria demorar-se lá pouco tempo. 

          Sobre essa parte da História, escutaremos a Maria José Leal.

          Em 1558, o aventureiro saiu de Goa para Lisboa onde chegou, segundo as suas próprias palavras, a 22 de setembro.



            De acordo com Alexandre Flores, viveu no concelho de Almada, na zona do Pragal, ali constituindo família. Integrou-se na sociedade local e foi Juiz de Vila e Mamposteiro da Gafaria de S. Lázaro e da Albergaria de Almada. Terá escrito a Peregrinação na sua quinta de Palença. Fui procurar “mamposteiro” nos dicionários. Não vem em todos. Será “procurador” ou “a pessoa que coleta esmolas para uma instituição”.  

      Analisemos agora brevemente alguns aspectos da Peregrinação. 

        Os emissários que múltiplos personagens do livro enviam para diversas entidades levam sempre, ou quase sempre, mensagens escritas. Sabe-se da grande diversidade de idiomas dos povos das regiões por onde Fernão Mendes Pinto terá andado. Ora, os intérpretes raramente são convidados para o enredo. Este é um dos aspetos que nos obrigam a duvidar da veracidade de partes do texto.

       Outra questão é de natureza religiosa. FMP descreve uma grande quantidade de ídolos e deuses locais. No entanto, quando se entrega às suas inúmeras dissertações de moral, o autor encosta-se sempre ao monoteísmo judaico-cristão.

       Falemos dos números. Fernão Mendes Pinto parece apaixonado por eles. Enumera as pessoas, as embarcações, os edifícios, incluindo os pagodes, com as colunas e estátuas que contêm. O valor das mercadorias, dos saques de pirataria e dos prejuízos resultantes dos naufrágios é sempre quantificado e cambiado para cruzados.

        Além dos cruzados (de ouro naquele tempo), havia os reais, os tostões e os vinténs (de prata) e os centis (de cobre). No tempo de D. João III, um cruzado valeria 400 reais, ou réis. Lembramos que a tença atribuída a Luís de Camões importou em 15.000 réis por ano, o que equivalia a cerca de 375 cruzados.



    A preocupação do autor com dados e números é manifestamente exagerada. Necessitaria duma memória prodigiosa para poder fixar todos os dados que aponta. Do mesmo modo, é quase impossível levar a sério a profusão de registos de medidas de áreas de povoações, rios, baías e tripulações de navios, as latitudes dos lugares, a profundidade das bocas dos rios, em braças e a largura dos esteiros em tiros de berço. 



         Um ábaco não lhe chegaria se o tivesse e estivesse habituado a manuseá-lo. Teria de ser um privilegiado em matéria de cálculo mental. O mesmo se repete quando enumera os milhares de soldados, armas, cavalos e elefantes. Faz pensar que escreve assim para aumentar a credibilidade da escrita. A intenção acaba por produzir um efeito contrário.

       Quando fala de grandes exércitos e armadas, Fernão Mendes Pinto tem tendência a exagerar. A tripulação dos navios parece demasiadas vezes sobredimensionada. Em expedições mais pequenas, o autor parece sentir menos a necessidade de ficcionar.

       Houve quem escrevesse que o exagero é um elemento essencial da Peregrinação. Faria parte do estilo da obra e serviria para impressionar os leitores. Por exemplo: ao invadir a China, o rei dos tártaros comandaria um exército de um milhão (Pinto usa o termo conto) e quarenta mil homens de armas, transportados em 16 mil embarcações. Os números são fantásticos, mesmo que tenhamos em conta a desproporção entre o número de habitantes da Europa e da Ásia. Por outro lado, quem os poderia ter contado e registado por escrito?