DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 4 de maio de 2013


                  AMÍLCAR CABRAL

                               XXIII
          
               UM TEXTO DE ALPOIM CALVÃO

              OPERAÇÃO “GATA BRAVA”
  (transcrito com modificações mínimas do livro “De Conakry ao M.D.L.P.”)


Nos primeiros dias de fevereiro de 1970, recebeu-se no Quartel General do Comandante Chefe em Bissau uma informação referente ao transporte, num barco a motor, de Boké para Kadigné, do elemento inimigo Marcel (nome de código). Dizia ainda que a data provável do transporte seria 25.
Fui encarregado de planear e executar a operação. Armou-se uma emboscada à entrada de Kadigné na noite de 24 para 25, com dois botes de borracha e oito homens. Contudo, a neblina cerrada que se verificou fez malograr a tentativa.
No princípio de março, nova informação referia o movimento inverso de Marcel, desta vez para o dia 7.
  Embarcámos na lancha de fiscalização grande “LIRA” às 19.00, largando em seguida o navio para a foz do Cacine e deu ferro junto à marca SAMBA, dia 6, às 01.30.
Foram lançados à água dois botes de borracha, sendo o primeiro comandado por mim e o outro pelo segundo tenente Barbieri, num total de oito homens. Às 03.00 os botes largaram da LIRA, que forneceu apoio radar para a entrada do canal. O percurso foi executado com os motores a trabalhar a baixo regime de rotações e depois de terminado o apoio radar, a navegação fez-se por bússola, aproveitando ainda a enchente. Pelas 05.30 atingiu-se o ilhéu Calebe, emboscando os dois botes numa abertura de tarrafo que tinha sido feita durante a Operação Nebulosa, realizada em agosto, e que se mantinha desconhecida do inimigo, como se demonstrou ao encontrar no local dois sacos de ração de combates que lá tinham sido deixados, a quando da realização da citada operação.
Os botes ficaram com as proas voltadas para o exterior, prontos a largar.
Às 08.00 a maré começou a vazar e às 08.10 contactou-se com uma parelha de FIAT`s que, depois de fazer um reconhecimento visual, informou que o N/M BANDIM não se encontrava em Kadigné.
Resolveu-se aguardar pela maré da noite e cerca de duas horas depois os botes já se encontravam completamente em seco.
Pelas 16.00 a água da enchente começou a penetrar no esteiro aonde os botes se encontravam e pelas 17.30 já estes flutuavam. Às 18.00, aproveitando o crepúsculo, aproximaram-se os botes da abertura de saída, para mais prontamente poderem entrar em ação se fosse necessário.
Às 19.00 horas ouviram-se vozes relativamente perto e o barulho de remos de uma canoa.
Às 19.10 começou-se a distinguir o ruído dum motor que se foi avolumando e pelas 19.30 avistou-se, a cerca de 200 metros, a silhueta do navio motor BANDIM que levava somente uma pequena luz acesa na casa do leme. Mandou-se arrancar com os motores. O bote nº1 colocou-se nos setores de popa do BANDIM, enquanto o nº 2 seguia a ocupar uma posição no través de estibordo. O bote nº 1 fez um tiro de lança granadas foguete (bazuca, LGF) a 150 metros de distância, tendo-se o rebentamento verificado muito perto do alvo, enquanto se abria fogo de metralhadora ligeira.  
O BANDIM respondeu com fogo de armamento ligeiro automático, guinando acentuadamente para a margem da República da Guiné.
Entretanto, continuou-se a fazer fogo de bazuca, obtendo-se um impacto em cheio ao terceiro tiro, manobrando os botes rapidamente, procurando manter uma posição desfasada de 90.º em relação ao objetivo.
Duma posição a oeste da vila de Kadigné, verificaram-se muitas tracejantes de metralhadora antiaérea – calculadas em número de seis – na direção aproximada do local do contacto, mas passando bastante altas. Desse mesmo ponto, foi feito tiro de artilharia ou de morteiro de grande calibre em vários azimutes, ouvindo-se um total de 20 rebentamentos, uns curtos, outros compridos, revelando uma certa desorientação. Simultaneamente e a norte desta posição, já na nossa ilha de Canefaque, fez fogo uma metralhadora pesada, com tiro tracejante, ao lume da água, bastante mais ajustada. Da canoa referida anteriormente, foi feito fogo de metralhadora ligeira sobre os botes, tendo contudo retirado rapidamente da zona de contacto.
O combate com o BANDIM continuou, obtendo-se outro impacto de LGF, que obrigou o alvo a começar a navegar em círculo, acabando por penetrar num esteiro, encalhando profundamente na posição e desaparecendo de vista. Perseguia-se a BANDIM por dentro do esteiro, obtendo-se novo impacto de LGF, aproximando-mos a cerca de 10 metros para o lançamento de granadas de mão. Do tarrafo foi feito fogo de arma automática, a que se respondeu com rajadas de metralhadora ligeira, abordando-se o navio.
Logo que se penetrou no N/M BANDIM, foram encontrados vários indivíduos mortos – posteriormente veio a verificar-se que eram seis – dois dos quais à entrada da casa da máquina e da casa do leme.
Procurou-se por entre os destroços as alavancas do comando da máquina, porém veio a verificar-se que o citado navio era manobrado da própria casa da máquina.
Desceu-se a esse compartimento com o intuito de engrenar os motores à ré, de forma a desencalhar o navio. Porém, depois do exame efetuado, verificou-se que a alavanca da manobra do motor não introduzia a marcha à ré, provavelmente por qualquer estilhaço que provocara o bloqueio da alavanca (uma conduta de gasóleo estava igualmente atingida por vários estilhaços, vertendo abundantemente).
Decidiu-se parar a máquina, com o intuito de rebocar o BANDIM apenas com a força de tração dos botes. Assim, foi lançado um cabo à ré do BANDIM, o outro de través, na proa do navio.
Porém, a maré já vazava desde as 20.30, pelo que o navio se encontrava perfeitamente encalhado. Face à impossibilidade de se processar o reboque, decidiu-se realizar a sua destruição.
Enquanto se procedia ao espalhar de gasolina pelos pontos inflamáveis do navio, terminaram-se as buscas ao porão, tendo-se abandonado o BANDIM com a certeza de que não transportava qualquer material. Os poucos colchões espalhados no porão deram indicação de que o navio não transportava muita gente.
O fogo foi iniciado por meio de uma granada de mão defensiva, lançada para o interior da casa das máquinas. O BANDIM começou a arder lentamente e só quando os botes alcançaram o meio do Rio Inxanxe se verificou uma explosão surda, seguida de altas labaredas. Quando se atingiu o ponto de reunião ainda se distinguia nitidamente o clarão do BANDIM.
O regresso a bordo da LIRA iniciou-se pelas 21.00. Chegou-se às 22.00 ao ponto de reunião e verificou-se que a LFG ainda não se encontrava no local. Tentou-se a comunicação, em VHF, durante duas horas, sem resultado. Pelas 23.50 ordenou-se à LFG caso ouvisse os botes para acender as luzes. Avistou-se em seguida no azimute 230 um clarão para lá do horizonte visual, cerca de 12 milhas da Marca Samba. Soltou-se um rumo para essa posição e em 070100 atracou-se à LFG LIRA, que uma avaria na máquina obrigara a fundear tão longe do local do ponto de reunião.
A destruição do BANDIM e a morte dos seis homens que o guarneciam lançaram uma certa confusão no inimigo, como se deduziu pelos seus comunicados na rádio. No espaço de seis meses tinham-se destruído dois barcos a motor do PAIGC prejudicando-lhe gravemente a frota de transporte.

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