DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 24 de abril de 2020




A “ORA MARÍTIMA” DE AVIENO

Rufus Avienus Festus, poeta romano interessado em Geografia, escreveu no século IV a Ora Marítima (Orla Marítima), um poema épico inspirado em viagens por mar. Apoiou-se em textos anteriores e recorreu a termos geográficos já em desuso. Embora tenham surgido dúvidas quanto aos nomes, parece designar por Oestreminis o território português, enquanto usa o termo Albion para referir a Inglaterra.



Terá estudado um número considerável de escritos anteriores. Na dedicatória a Probo, faz referência a Hecateo de Mileto, Helânico de Lesbos, Fileo de Atenas, Esxilax de Carianda, Pausímaco de Samos, Damasto de Sige, Bacoris de Rodas, Cleón da Sicília, Heródoto de Turios e Tucídides de Atena. Como vemos, foi cuidadoso com a bibliografia.
Este poema descreve parte da costa marítima da Europa Ocidental, incluindo Portugal, Galiza e França. Poderá referir-se também às Ilhas Britânicas.



Avieno chama Ofiússa (Terra das Serpentes) a uma parte da Península Ibérica. A Ofiússa teria sido habitada pelos Estrimnios (Oestrimnides, habitantes do extremo oeste), provavelmente um povo integrante da cultura megalítica europeia. Teriam sido expulsos das suas terras por uma invasão de serpentes. Há quem sugira que as serpentes simbolizavam os sefes, povo celta que emigrou para a Península. A palavra sefes derivará do termo grego serpe (serpente). Serpa, no Alentejo, terá herdado o nome por inteiro.



Os povos da Ofiússia seriam os cempsos, instalados no Alto Alentejo, os sefes, que ocupariam os vales do Douro e do Tejo e os draganos que viveriam mais a norte. Os ligus, ou Lycis, poderiam corresponder aos lusitanos. Mais a sul habitariam os cinetes. Sigamos Avieno:
Os cempsos e os sefes dominam as colinas escarpadas das terras de Ofiusa; perto deles, o ágil lúcio e a raça dos draganos instalaram os seus lares sob o setentrião rigorosamente nevado. Depois, junto aos cempsos, encontram-se os povos dos cinetes. Os cónios ou cinetes habitavam as atuais regiões do Algarve e Baixo Alentejo.
Escreve Avieno um pouco adiante:
Na continuação encontra-se o imponente rochedo Sagrado, eriçado de penhascos e consagrado a Saturno. Ferve o mar agitado e a costa desprega uma frente rochosa.


       Julgo que o rochedo sagrado é a Ponta de Sagres.
Na Ofiússa, Avieno situa no atual território português diversas ilhas e cabos. O arquipélago das Berlengas seria uma ilha dedicada a Saturno, mas tal não é certo. O cabo de Ofiússa é provavelmente o cabo da Roca. O Cabo Ceprésico seria o Espichel e a ilha de Ácala corresponderia à Península de Troia, antigamente despegada do continente. Na sua proximidade é referido um largo porto, que deve ser o de Setúbal.
Avieno chama Cabo Cinético ao Cabo de São Vicente e situa ali a entrada no Oceano.
O poeta não poupa louvores aos habitantes da antiga Estrimnis, embora lhes aponte a fragilidade das embarcações:
Aqui se encontra uma raça de grande vigor,de espírito altaneiro e de uma habilidade eficiente, imbuída de uma inquietação constante pelo comércio. Sulcam com os seus patachos um mar agitado e o abismo do oceano, aventurando-se a grandes distâncias. De facto, não sabem fazer as quilhas com madeira de pinho nem guarnecem as embarcações com madeira de abeto mas, o que é algo realmente surpreendente, preparam as embarcações com peles entrelaçadas e amiúde atravessam o extenso mar salgado nesses couros. 
 Há quem considere o poema “Ora marítima” um roteiro de navegação. Trata-se de uma das fontes mais antigas de informações sobre os povos que habitaram o nosso território.

BIBLIOGRAFIA
Ora Marítima em castellano. Cultura en Andalucía, Internet.
Ora Maritima. Wikipedia.

Imagens: Internet

quinta-feira, 23 de abril de 2020



JONAS, A BALEIA E OS DI-KISHI




O mito de pessoas engolidas por animais e depois encontradas vivas é comum a diversas culturas europeias. Os gobblers são muitas vezes repteis e fazem parte de variadas lendas europeias e mediterrânicas.
A história mais conhecida provém do Médio Oriente e ficou registada no Antigo Testamento. Curiosamente, a Bíblia (pelo menos a versão que possuo) não refere uma baleia, mas sim um grande peixe. Tendo Jonas mostrado arrependimento por ter desobedecido ao Senhor, o peixe vomitou o profeta ileso na terra, após três dias e três noites passados no seu ventre.
Na Península Ibérica, o culto da serpente parece anterior tanto ao contacto com fenícios, gregos e cartagineses, como à chegada dos povos indo-europeus conhecedores da metalurgia do ferro e geralmente designados por celtas. O intercâmbio de culturas produziu um grande número de variações mitológicas em que predominam, ora a influência céltica, ora a mediterrânica.
As velhas narrativas partilham características comuns, evoluindo ao longo do tempo.
As mais antigas estão ligadas a serpentes que guardam as fronteiras que levam ao rio flamejante que conduz ao mundo inferior. Exigem tributo, ou alimentam-se das presas. Noutros casos, protegem tesouros ocultos e chegam a engolir os incautos que se aproximam. Serão predadores e guardiões.
Há fórmulas que se repetem. Nas histórias clássicas, a serpente predadora transfere a sua sabedoria para a presa engolida, como é o caso da lenda de Santa Margarida. De certo modo, a cobra é aliada. Ao ser alimentada, compensa quem o faz com dádivas.
Com o passar do tempo, vai-se perdendo a noção de benefício e a serpente engolidora passa a ser olhada como um inimigo. O herói não obtém prendas nem favores mágicos do interior do réptil e acaba por o matar.
Uma variante consiste no padrão de duelo com a serpente ou o dragão. Chegamos assim à lenda de S. George, característica do mundo mediterrânico antigo e espalhada pelo centro da Europa. Vão sendo introduzidas inovações culturais. Uma donzela é sacrificada cada ano à serpente devoradora, que é morta pelo herói que não chega a ser engolido.
Relacionado com os anteriores, existe um terceiro padrão, o do encantamento. Em tempos históricos talvez mais recentes, nasce a figura da mulher serpente, associada a oráculos ligados a locais sagrados a que as pessoas acorrem para fazer perguntas e oferecer presentes.
A Península Ibérica era conhecida na Antiguidade como Ofiusa (terra de serpentes). Tanto em Espanha como em Portugal existe um número considerável de lendas que envolvem serpentes, dragões e rainhas ou mouras encantadas. Habitam a vizinhança de fontes ou cavernas e são geralmente associadas à água, pois a água, que seria o ambiente da serpente, remete para o sangue da Grande Deusa ancestral. Na Península, a serpente é apresentada como um ser benfazejo, que muitas vezes oferece prendas preciosas.
Voltemo-nos agora para a África subsaariana. Tive ensejo de publicar, no ano de 2003, uma seleção de contos tradicionais angolanos. Os monstros ou ogres engolidores são personagens importantes em sete das 40 histórias curtas então escolhidas.
Em Angola, a influência da cultura mediterrânica ancestral é provavelmente inexistente. Foi desenvolvido de forma autónoma um conjunto de lendas que referem monstros engolidores, encarados como inimigos.  
Em “O monstro e os dois rapazes caçadores” (recolha de Carlos Estermann) depois de aberta a barriga do monstro saíram a salvo todas as pessoas devoradas, assim como os bois, os cabritos e as galinhas. A forma física do ogre não é descrita.
No conto cuanhama “O filho do Haikali”, também recolhido por Carlos Estermann, o aspeto físico do monstro também não é referido. A história termina com a morte do ogre. Todas as pessoas que ele tinha comido puderam sair-lhe da barriga, vivas e com saúde.
Em “Ngana Samba e os Ma-Kishi” (recolhido por Héli Chatelain), uma rapariga foi raptada por um ogre que se casou com ela. Geraram três filhas.
As designações dos ogres variam conforme as regiões e os dialetos. Di-Kishi é um dos nomes do papão. Ma-Kishi é o plural de di-Kishi. Em certas zonas são descritos com tendo duas cabeças. Em toda a parte apreciam carne humana. Em geral, não são muito espertos.
Em “Os leões e Kimona-Ngombe” (recolha de Héli Chatelain), os leões com fome apareceram num povoado e deram aparência de mulher a uma leoa jovem. O dono do cercado casou com ela. A falsa mulher acabou queimada quando o amo mandou os servidores deitar fogo à cubata.
Em “A mulher devorada pelo ogre” (recolha de Carlos Estermann), os monstros deixavam pegadas. Um deles tinha cauda curta, dois enfeites de concha na barriga e usava a pulseira da mulher devorada no pulso esquerdo. Depois de o matarem, os filhos esfolaram o ogre e acabaram por encontrar a mãe viva no dedo mais pequeno do pé esquerdo. Quase todos os que são devorados por monstros acabam por sair vivos. O problema é que, para os devorados, o tempo não passa e a mãe, engolida quase vinte anos antes, tinha a idade dos filhos. 
Em “A rapariga e o papão” (recolha de J. Valente) o ogre capturou uma rapariga. Juntamente com a mulher, cortaram-na em pedaços e meteram-na na panela. Recomendaram à filha que tomasse conta da panela, mexendo a carne com uma agulha. Insistiram que usasse o fundo da agulha e nunca a ponta. A miúda ogre distraiu-se e usou a ponta. A carne que estava lá dentro uniu-se num corpo e saltou cá para fora. A ressuscitada atirou-se à cozinheira, cortou-a em pedaços e deitou-a na panela em seu lugar. Os Ma-Kishi acabaram por comer a própria filha.
Deixei propositadamente para o fim “A serpente fantasma”, recolhida por J. Valente. Uma enorme serpente engoliu uma criança. A mãe pediu ajuda a quem pôde. Os socorristas foram todos tragados. Apareceu finalmente um rapazinho com uma faca afiada. Ao ser engolido, picou e rasgou com a faca até à cauda. Todos os devorados saíram com vida. Tratava-se de uma cobra sem qualquer característica humana.
É curioso verificar como a imaginação é capaz de fabricar de forma independente, na ausência de qualquer intercâmbio cultural, mitos tão aproximados como os dos monstros que devoram pessoas e as conservam ilesas nos ventres.  Seremos mais parecidos uns com os outros do que nos habituámos a pensar.


BIBLIOGRAFIA

Bru Romo, Margarita e Vasquez-Hoys, Ana. The representation of the serpent in ancient Iberia. University of Malta Press, 1986.

Chatelain, Héli. Folk Tales of Angola. Boston, 1894.

Estermann, Carlos. Cinquenta contos bantos do Sudoeste de Angola. Instituto de Investigação Científica de Angola, Luanda, 1971.

ñez, Eloy Martos, Blanco, Antonio Castaño, García, Aitana Martos. The serpent as a Pan-Mediterranean myth. Mediterranean Journal of Social Sciences MCSER Publishing, Rome-Italy Vol6 Nº 4 S2 July 2015.

Trabulo, António. No tempo do Caparandanda. Europress, Lisboa, 2003.

Valente, José Francisco. Paisagem africana. Instituto de Investigação Científica, Luanda, 1974.


Fotografia do autor.


quarta-feira, 22 de abril de 2020





DEUSA COBRA





Adquiri há algum tempo e contra a opinião da minha mulher uma escultura em pedra  julgo que se trata de calcário  a um antiquário alentejano. Tem dois palmos de altura por três de largo e é bastante pesada. Foi com esforço que eu e o vendedor a introduzimos no porta-bagagem do automóvel.
Nunca tive uma peça tão bela e não voltarei a ter outra assim. É uma deusa serpente. Tem uma cabeça de mulher e outra de cobra. Raras pessoas terão tido o privilégio de admirar coisa parecida.
 Ao longo dos meses, conforme o tempo disponível, vasculhei a Internet à procura de informação. A bibliografia sobre deusas serpentes na Península Ibérica é abundante, mas não encontrei qualquer imagem de escultura igual ou semelhante.
Os gregos antigos chamavam à Península Ibérica Ofiusa, terra de serpentes. Em Portugal e em Espanha, abundam as lendas sobre cobras, dragões e mouras. Estas mouras (de que são bem conhecidas lendas em Mértola e em Palmela) têm muitas vezes formas híbridas, metade mulher e metade serpente e estão habitualmente relacionadas com a água (fontes e cavernas). Melusina é outra figura conhecida nas lendas europeias. Trata-se de um espírito feminino também híbrido que habita na vizinhança de rios e fontes sagradas.
Julga-se que aos habitantes originais da Península Ibérica se foram juntando, entre o oitavo e o sexto século antes de Cristo, povos indo-europeus de origem celta, conhecedores da metalurgia do ferro. Os celtas trouxeram para cá o seu panteão de deuses, incluindo nele o culto da serpente. No entanto, a serpente era já um mito pan-mediterrâneo. Tratou-se, assim, de uma reinoculação. O culto celta da serpente misturou-se provavelmente com outros rituais há muito estabelecidos na Península.
A serpente é olhada de modos diferentes nas lendas antigas. Representa, em alguns casos a evolução cíclica da Natureza. Trata-se de um animal que aparece e desaparece e que muda de pele. Oculta-se na terra durante o tempo frio, para regressar na primavera. Torna-se um símbolo da morte, antes de se associar à ideia de ressurreição. Será por isso a insígnia da Medicina.
É muitas vezes considerada um símbolo de fecundidade. Tanto é vista como uma figura benéfica (traduzindo eventualmente o culto residual da Deusa Mãe) como é apresentada como representação do diabo, na tradição judaico-cristã. Nas mitologias europeias chega a ocupar o lugar de um deus polivalente. Umas vezes reina sobre o mundo subterrâneo, o lugar dos mortos. Outras, superintende à música e à magia. Noutros locais, ajuda a cuidar do gado e a preservar a saúde.
                                                                         




 LIBERDADE


V


 O MEU 25 DE ABRIL

      Volto aqui a apresentar um artigo que publiquei neste blogue em junho de 2011.


                        O MEU 25 DE ABRIL


A 25 de Abril de 1974, levantei-me cedo. A  minha mulher tinha uma visita de estudo marcada para Coimbra e tencionava levar com ela a nossa filha mais velha. A Cláudia, que era mais nova, foi comigo para S. José. 
Cheguei ao hospital por volta das oito e meia. Estranhei ver tantos carros de colegas estacionados junto ao Serviço 10. Quando entrei na sala dos médicos, já lá estava muita gente.
- Não sabes o que se está a passar? - perguntou-me o Ventura.
Eu não tinha ligado o rádio. Disse que não.
- Está a decorrer uma rebelião militar contra o governo. Os revoltosos intitulam-se Movimento das Forças Armadas. Dizem que estão a conseguir tomar conta dos pontos estratégicos de Lisboa.
Seguimos durante alguns minutos as notícias da rádio. A situação parecia indefinida. Eu e o Carlos Durão Maurício tínhamos operações marcadas para essa manhã. Resolvemos deixar uma das marquesas do bloco vaga para uma urgência eventual e fomos trabalhar na outra. A Cláudia ficou entregue às enfermeiras.
Quando acabámos de operar, eram horas do almoço. Ouvimos as notícias. O Movimento das Forças Armadas progredia no terreno. Não tinha dado entrada no Banco de S. José qualquer ferido de guerra.
Como não sabia como estava o caminho, aceitei o convite do Maurício para almoçar em casa dele.
Havia perto um quartel da Guarda Republicana e a situação continuava tensa. Enquanto o Maurício estacionava o automóvel, toquei à campainha. A Marilda perguntou, pelo intercomunicador:
- Quem é?
Perdi uma ocasião magnífica de parecer sensato. Respondi, com voz grossa:
- É a PIDE!
Quando subi ao terceiro andar, arrependi-me da piada. A esposa do meu colega e amigo tinha perdido o controlo dos nervos e estava lavada em lágrimas. Não teria grande coisa a recear da Polícia Política, mas aquele não era um dia como os outros e as pessoas andavam nervosas.


Tentei telefonar para casa, sem êxito. Não sabia da minha mulher e da minha filha mais velha, nem elas de nós. Após um almoço improvisado mas agradável, meti-me no carro e conduzi até perto da ponte sobre o Tejo, para me inteirar das condições de trânsito. O percurso estava livre. Fui buscar a Cláudia e regressei a casa. A viagem foi normal. Parecia nada estar a acontecer no País. 
A São e a Marisa nem tinham chegado a sair de Setúbal. Chegara a notícia do levantamento militar e a visita de estudo fora cancelada.
Acho que, para compensar a gaffe do fim da manhã, me portei bem durante o resto do dia. A perspectiva da queda do velho Estado Novo entusiasmava quase toda a gente. No entanto, em vez de ficar especado em frente à televisão, que era o que me apetecia, cumpri o meu dever e fui trabalhar.Tinha umas tantas visitas domiciliárias a doentes da Caixa de Previdência à minha espera. A festa foi adiada algumas horas.

terça-feira, 21 de abril de 2020




LIBERDADE 


IV


25 de ABRIL DE 1974


 OS PRIMÓRDIOS


Estudei Medicina em Coimbra e permaneci na cidade até ser chamado para a tropa.
Ao longo da década de 60 do século passado, muitos estudantes universitários deram conta da necessidade de pôr fim à ditadura do vetusto Estado Novo, conceder a independência às colónias africanas e modernizar Portugal, transformando-o num país livre e democrático.


Cada um participou à sua maneira nesse lento processo que iria mudar a maneira de pensar de muitos compatriotas nossos. Eu estou convencido de que a convivência com os oficiais milicianos, oriundos das Universidades, contribuiu para que os militares de carreira fossem abrindo os olhos para a tristeza da realidade nacional de então.
Eu fiz pouco, mas fiz alguma coisa. Em minha casa, em Coimbra, decorreram algumas reuniões de uma célula do Partido Comunista Português. Eu não era militante e abria a portas apenas ao colega que conhecia. Os outros entravam depois. Por razões de segurança, nunca avistei os restantes.
Às tantas, pediram-me que escondesse em casa um copiógrafo do Partido. Conservei-o durante uns tantos meses.
Em 1969, decidi assumir uma posição política mais interventiva e achei que não poderia correr riscos exagerados. Pedi aos amigos do Partido Comunista que viessem buscar o copiógrafo. Como o não fizeram, decorridos alguns meses, deitei-o fora. Julgo que ainda há quem me queira mal por isso. 


Era o tempo das primeiras eleições legislativas após a queda de Salazar e a sua substituição por Marcelo Caetano. Depositávamos alguma esperança na evolução política do país. Eu, que nunca fui bom orador, defendi publicamente numa sessão na sede da CDE, em Coimbra, a independência das colónias portuguesas. Nas eleições de 1969, a oposição estava dividida, mas tanto a CDE como a CEUD convergiam na necessidade de encontrar soluções políticas para a guerra colonial. A rotura completa com as posições governamentais aconteceu apenas em abril de 1973, em Aveiro, durante o III Congresso d Oposição Democrática. Foi então exigido “o fim imediato das guerras de agressão contra os povos de Angola, Guiné e Moçambique”.
Em outubro de 1969, dei entrada na Escola Prática de Infantaria, em Mafra. Duas semanas após o início do Curso de Oficiais Milicianos, juntou-se a nós um grupo de cerca de 50 dirigentes associativos de Coimbra, obrigados a interromper os cursos e a ingressar no Exército como castigo pela participação na crise estudantil desse ano.


O nosso C.O.M. ficou assim extraordinariamente politizado.
No final de dezembro, na cerimónia do Juramento de Bandeira, ocorreu a que julgo ter sido a primeira manifestação pública contra a guerra colonial no interior da instituição militar. Findo o almoço, um grupo de cerca de 70 cadetes desfilou no grande refeitório gritando “Abaixo a guerra colonial!” e entoando canções revolucionárias. Eu já era careca e sabia que seria facilmente reconhecido, mas o entusiasmo foi maior que o medo.
Ainda receei ser incomodado pela PIDE, mas tal não aconteceu. A polícia política teria gente mais importante com quem se preocupar.



segunda-feira, 20 de abril de 2020




III


FORMAS DE LIBERDADE



Freiheit

A palavra Liberdade é rica de significados e de variantes. O conceito abrange formas adequadas a quase todas as áreas de atividade humana.
Para o Dicionário da Academia de Ciências de Lisboa, Liberdade é:
A condição de um ser que está isento de constrangimentos, atuando consoante as leis da sua natureza.
O direito de um cidadão agir segundo a sua própria determinação, dentro dos limites fixados pela lei.
A possibilidade de agir sem limitações extrínsecas. É a liberdade de ação, a possibilidade de operar sem restrições impostas por vontade alheia ou condicionalismos de natureza vária.
 O estado de quem não tem compromissos.
O estado de quem não está na dependência de ninguém.
 O estado de quem não se encontra detido, na prisão, no cativeiro.
 A ausência de condicionalismos restritivos inclui a liberdade de consciência, o direito a professar (ou não) qualquer doutrina religiosa, crença ou ideologia, a liberdade de culto, que coloca em pé de igualdade todas as religiões, a liberdade de imprensa, que é o direito de expressar nos meios de comunicação as próprias opiniões, sem censura prévia, a liberdade de pensamento (o direito a formular opiniões e a exprimi-las) e a liberdade sindical, o direito de um trabalhador aderir, ou não, a um sindicato da sua escolha. Como vemos, há aqui muito pano para mangas.
 O afastamento do que se considera a norma. Inclui a liberdade poética.
 A qualidade da vontade humana de se guiar por motivos e valores conscientemente assumidos. 
O estado do homem que se determina apenas pela razão, suprimindo qualquer interferência das paixões nas suas decisões.
O livre arbítrio, o poder de decidir sem motivos, como manifestação absoluta de vontade.
   O conjunto de regalias concedidas aos cidadãos pelas leis fundamentais do país.
Liberdades públicas são as reconhecidas aos indivíduos e aos grupos sociais.
Como vimos, é grande o poder das palavras e os dicionários podem levar-nos longe.

Libertas

No entanto, falta  referir algumas formulações do conceito de liberdade, como a liberdade académica, a liberdade científica e a liberdade económica. Recentemente, tem sido posta a questão da liberdade de escolha em termos de orientação sexual.
Existem ainda outras formas de liberdade em que não pensamos muitas vezes.

A LIBERDADE COMO CONCEITO FÍSICO


Em Física, a liberdade é usada para descrever os limites em que os processos físicos sãos possíveis. Em mecânica, o número de variáveis independentes para um sistema é quantificado em graus de liberdade. Esses graus descrevem essencialmente o número de movimentos independentes que são permitidos a um corpo, ou a um mecanismo. 
Parece-me prudente deixar esta área para os especialistas.

LIBERDADE NA TEORIA MATEMÁTICA


Em matemática, liberdade é a capacidade de uma variável mudar de valor.
Os graus de liberdade são usados em vez de dimensão em várias disciplinas matemáticas. Não sei se há matemáticos entre os leitores. Eu não serei um deles. O único conceito que me é familiar é o grau de liberdade nas estatísticas. Julgo que andará próximo da margem de erro.


A LIBERDADE POLÍTICA


Deixei propositadamente para o fim a liberdade política.
O conceito de liberdade política associa-se a autonomia, no sentido de cada povo poder escolher as próprias leis, e aos direitos e liberdades civis a exercer sem interferência escusada do Estado. Supõe a liberdade de reunião, a liberdade de associação, a liberdade de escolha e a liberdade de expressão.
Saudemos a aproximação do aniversário do 25 de Abril de 1974, dia em que o Movimento das Forças Armadas devolveu ao país as liberdades e garantias essenciais, ao mesmo tempo que dava início ao processo de libertação dos povos das nossas antigas colónias e encaminhava Portugal para a modernização e para o retorno à Europa.
                                                    (Continua)

domingo, 19 de abril de 2020



II

OS PENSADORES E A   LIBERDADE


Nos textos filosóficos, a liberdade é muitas vezes discutida em termos de livre-arbítrio e vontade própria, em equilíbrio com a responsabilidade moral. 
Os defensores do livre-arbítrio consideram a liberdade de pensamento como uma característica inerente à nossa mente, enquanto os deterministas olham a mente como o funcionamento do cérebro ditado pelas circunstâncias. 
Os pensadores que vou referir e tentar perceber escreveram entre a segunda metade do século XVI e o século XX. Poderia, naturalmente, ter feito outras escolhas. 


ÉTIENNE DE LA BOÉTIE (1530-1563)



Na sua obra “Discurso sobre a servidão voluntária”, de la Boétie ocupa-se da liberdade política e considera naturais tanto a existência da liberdade como a vontade de a defender.
Presume que os homens são livres e iguais e que qualquer divisão da sociedade em classes conduz à servidão. O filósofo associa a divisão em classes ao nascimento do Estado e procura explicar as razões que levam os homens a aceitar a obediência ao Poder.
Aponta o hábito como primeira causa. As pessoas nasceram em servidão e lembram mal a liberdade. Virá a seguir o encantamento determinado pelo espetáculo que rodeia o Poder e o faz parecer atraente. Alimenta-se da estrutura hierárquica do Poder e da distribuição das benesses. Esses fatores conduzem à transigência. O povo abdica da liberdade e aceita o poder do tirano.

BARUCH SPINOZA (1632-1677)


Para Spinoza, a liberdade identifica-se, em parte, com a natureza do “ser”. Livre será aquele que agir de acordo com a própria natureza.
Um homem realiza-se plenamente através do exercício da liberdade.
A liberdade é irmã da responsabilidade. Ser livre implica ser responsável pelos próprios atos.  

GOTTFRIED LEIBNITZ (1646-1716)


Segundo Leibnitz, as ações humanas são livres, a despeito do princípio de causalidade que rege os objetos do mundo material.
São também contingentes, espontâneas e refletidas.
Contingentes porque poderiam assumir formas diversas.
Espontâneas porque quem decide poderia abster-se de o fazer.
Refletidas porque o homem procura entender as razões que o movem.

ARTHUR SCHOPENHAUER (1788-1860)


O pensamento de Schopenhauer desenvolve-se a partir da filosofia kantiana. Immanuel Kant (1724-1804) estabeleceu a distinção entre o que existe em si mesmo (a coisa-em-si, a que chamou noumenon) e o que parece ser (fenomeno).
A coisa-em-si não poderia ser objeto de conhecimento científico. A ciência ocupar-se-ia do mundo dos fenómenos.
Schopenhauer identifica a coisa-em-si kantiana como vontade pura. Para ele, a ação humana não é totalmente livre. Todos os atos humanos e todos os fenómenos da natureza são níveis de objetivação dessa vontade pura.
O homem – passo a citar – “objeto entre objetos, coisa entre coisas, não possui liberdade de ação porque não é livre para deliberar sobre a própria vontade; não escolhe o que deseja, o que quer; logo, não é livre; é absolutamente determinado a agir segundo a sua vontade particular, objetivação da vontade metafísica por detrás de todos os eventos naturais; o que parece ser deliberação é uma ilusão ocasionada pela mera consciência sobre os próprios desejos.

STUART MILL (1806-1873)


Para Stuart Mill, liberdade é a capacidade de se fazer o que se deseja e se tem poder, ou capacidade, de fazer. O exercício da liberdade tem em consideração os direitos de todos os envolvidos e é limitado pelos direitos de terceiros.
Stuar Mill estabelece a distinção entre dois vocábulos ingleses que nós traduzimos apenas pela palavra liberdade. Freedom significa essencialmente a capacidade e o poder de pôr em prática a própria vontade, enquanto Liberty se refere à ausência de constrangimentos externos e tem em conta os direitos de terceiros. 

MIKHAIL BAKUNIN (1814-1876)


Bakunin foi um dos mais importantes teóricos e militantes anarquistas.
Em 1848 publicou o Apelo aos Eslavos, pedindo aos revolucionários eslavos que se juntassem aos revolucionários húngaros, italianos e alemães para derrubar as três maiores autocracias da Europa: o Império Russo, o Império Austro-húngaro e o reino da Prússia.
Para Bakunin, liberdade não é um conceito abstrato, mas uma realidade concreta baseada na interação com a liberdade de outros. A liberdade consistirá no "desenvolvimento pleno de todas as faculdades e poderes de cada ser humano, pela educação, pelo treinamento científico, e pela prosperidade material."
Tal conceção de liberdade é "eminentemente social, porque só pode ser concretizada em sociedade," não em isolamento. Num sentido negativo, liberdade é "a revolta do indivíduo contra todo tipo de autoridade, divina, coletiva ou individual."

KARL MARX (1818-1883)


Marx critica as conceções metafísicas da liberdade. No seu modo de ver, a liberdade não existe fora do mundo material e são os indivíduos que a exercem na prática ao transformarem as condições materiais em que vivem.
Nas sociedades capitalistas, a atividade produtiva transforma-se coercivamente no trabalho assalariado enquanto as capacidades humanas se reduzem a força de trabalho, negociada no mercado de trabalho. Nessas condições, a vida humana reduz-se à sobrevivência.
Mesmos as liberdades parciais comuns no capitalismo, como a liberdade económica, que permite vender e comprar mercadorias, a liberdade de expressão e a liberdade política, que consiste em escolher quem governa, supõem que os homens se confinem às suas classes sociais. Se a luta dos proletários tivesse êxito e permitisse abolir a propriedade privada, seria instaurado o comunismo, que Marx entende como a associação livre dos produtores.


CARLOS PECOTCHE (1901-1963)


Para o argentino Pecotche, o homem nasce livre. Mesmo que não dê conta dela, e a liberdade é um dos seus atributos naturais. Os excessos de liberdade serão evitados pela ligação ao sentimento do dever e à responsabilidade individual. O conhecimento aumenta o espaço da consciência, tornando o homem ainda mais livre.

JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)


Para Sartre, a liberdade faz parte da condição humana. Ou é absoluta, ou não existe. O filósofo francês recusa o determinismo materialista. Se tudo fosse matéria, não existiria consciência nem liberdade. Nada antecede ou justifica o ato livre. É o próprio ato que justifica tudo. O fundamento da liberdade é o indeterminismo absoluto, o nada.
O homem angustia-se por estar condenado a fazer escolhas.