DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 21 de abril de 2020




LIBERDADE 


IV


25 de ABRIL DE 1974


 OS PRIMÓRDIOS


Estudei Medicina em Coimbra e permaneci na cidade até ser chamado para a tropa.
Ao longo da década de 60 do século passado, muitos estudantes universitários deram conta da necessidade de pôr fim à ditadura do vetusto Estado Novo, conceder a independência às colónias africanas e modernizar Portugal, transformando-o num país livre e democrático.


Cada um participou à sua maneira nesse lento processo que iria mudar a maneira de pensar de muitos compatriotas nossos. Eu estou convencido de que a convivência com os oficiais milicianos, oriundos das Universidades, contribuiu para que os militares de carreira fossem abrindo os olhos para a tristeza da realidade nacional de então.
Eu fiz pouco, mas fiz alguma coisa. Em minha casa, em Coimbra, decorreram algumas reuniões de uma célula do Partido Comunista Português. Eu não era militante e abria a portas apenas ao colega que conhecia. Os outros entravam depois. Por razões de segurança, nunca avistei os restantes.
Às tantas, pediram-me que escondesse em casa um copiógrafo do Partido. Conservei-o durante uns tantos meses.
Em 1969, decidi assumir uma posição política mais interventiva e achei que não poderia correr riscos exagerados. Pedi aos amigos do Partido Comunista que viessem buscar o copiógrafo. Como o não fizeram, decorridos alguns meses, deitei-o fora. Julgo que ainda há quem me queira mal por isso. 


Era o tempo das primeiras eleições legislativas após a queda de Salazar e a sua substituição por Marcelo Caetano. Depositávamos alguma esperança na evolução política do país. Eu, que nunca fui bom orador, defendi publicamente numa sessão na sede da CDE, em Coimbra, a independência das colónias portuguesas. Nas eleições de 1969, a oposição estava dividida, mas tanto a CDE como a CEUD convergiam na necessidade de encontrar soluções políticas para a guerra colonial. A rotura completa com as posições governamentais aconteceu apenas em abril de 1973, em Aveiro, durante o III Congresso d Oposição Democrática. Foi então exigido “o fim imediato das guerras de agressão contra os povos de Angola, Guiné e Moçambique”.
Em outubro de 1969, dei entrada na Escola Prática de Infantaria, em Mafra. Duas semanas após o início do Curso de Oficiais Milicianos, juntou-se a nós um grupo de cerca de 50 dirigentes associativos de Coimbra, obrigados a interromper os cursos e a ingressar no Exército como castigo pela participação na crise estudantil desse ano.


O nosso C.O.M. ficou assim extraordinariamente politizado.
No final de dezembro, na cerimónia do Juramento de Bandeira, ocorreu a que julgo ter sido a primeira manifestação pública contra a guerra colonial no interior da instituição militar. Findo o almoço, um grupo de cerca de 70 cadetes desfilou no grande refeitório gritando “Abaixo a guerra colonial!” e entoando canções revolucionárias. Eu já era careca e sabia que seria facilmente reconhecido, mas o entusiasmo foi maior que o medo.
Ainda receei ser incomodado pela PIDE, mas tal não aconteceu. A polícia política teria gente mais importante com quem se preocupar.



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